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As instituições de educação infantil como parte do sistema básico de

CAPÍTULO 2............................................................................................................. 74

2.2. As instituições de educação infantil como parte do sistema básico de

como espaço responsável pela materialização de um dos direitos fundamentais das crianças, o de acesso à educação e cultura. Nesse sentido, há todo um movimento político-acadêmico que se envolve na construção de novas formas institucionais de atendimento educacional público para as crianças menores de 7 anos. Essas instituições passam a ser reivindicadas não mais como um mal necessário, mas sim como direito das crianças e das famílias.

Esse movimento não acontece sem contradições, permanecendo concepções, políticas e modelos de atendimento precários, emergênciais e compensatórios. Esses modelos são, inclusive, incentivados pelos organismos multilaterais que influenciam diretamente na constituição da educação infantil nos países periféricos, dentre eles o Brasil.

2.2 As instituições de educação infantil como parte do sistema básico de ensino

No sentido de compreender as instituições de educação infantil como local de trabalho e, portanto, como lócus da construção da identidade política de suas trabalhadoras, é de fundamental importância remeter a uma análise da recente história dessas instituições. É no contexto da recente configuração das instituições de educação infantil como parte dos sistemas básicos de ensino que se pode fazer considerações a respeito da organização burocrática e das múltiplas formas de envolvimento de trabalhadores docentes nessa etapa da educação de uma maneira mais sistemática e organizada. Até então, como foi exposto anteriormente, essas instituições têm-se pautado pelo atendimento emergencial e descontínuo e pelo voluntariado de mulheres.

Fruto de um contexto social afetado por profundas transformações de ordem política, cultural, ideológica, econômica, social e do mundo do trabalho, a educação infantil, que em determinado momento fora identificada como atendimento educacional aos filhos das classes privilegiadas e amparo aos filhos de trabalhadores (KUHLMANN JR., 2001), torna-se não só um direito das crianças como também uma necessidade dos pais trabalhadores (ROSEMBERG, 2002a; OLIVEIRA, 2002; HADDAD, 2002) que, diante do crescimento do desemprego, miséria e exclusão, lançam quase que a família inteira ao mercado de trabalho e, dentre esses, a mulher que, para além das suas lutas pela igualdade de direitos, é duplamente explorada no processo de produção e reprodução do capital.

O debate nos âmbitos internacional e nacional, desencadeado em meados da década de 1950, em torno da criança e dos seus direitos que culminaram em declarações internacionais (a Declaração Universal dos Direitos da Criança foi estabelecido em 1959) e

ações políticas importantes deram suporte à busca de uma reorientação do atendimento educacional da infância vinculado aos preceitos do Estado de Bem-estar.

Com a profissionalização da assistência pública e das políticas sociais desenvolvidas durante o século XX, constrói-se uma determinada “consciência” da criança como ser, portadora de potencialidades criadoras e de necessidades objetivas. Dessa forma, passos importantes foram dados na esfera das intenções em relação à infância, inclusive instalando um processo de reelaboração da declaração dos direitos da criança “adotada pelas Nações Unidas, em 1959 – e, depois, a Convenção da ONU pelos Direitos da Criança, de 1989.” (MARCÍLIO, 1998, p. 86).

Essa perspectiva partiu de uma concepção de infância, em processo de construção, como um momento específico da vida, rico em interações e aprendizagens, na qual a criança em seus diversos aspectos (físico, psicológico, social, político e cultural), constitui-se como sujeito de direito.

Sob esse ponto de vista,

As crianças participam das relações sociais, e este não é exclusivamente um processo psicológico, mas social, cultural, histórico. As crianças buscam essa participação, apropriam-se de valores e comportamentos próprios de seu tempo e lugar, porque as relações sociais são parte integrante de suas vidas, de seu desenvolvimento (KUHLMANN JR, 2001a, p. 31).

Mesmo diante desse contexto, o atendimento à infância pobre vinculou-se quase que exclusivamente a uma ideologia assistencialista, abordada como favor e como políticas de assepsia social mediante uma proposta pedagógica clara de educar para a submissão, o conformismo e a exclusão. O processo histórico de constituição das instituições de educação infantil é marcado pela destinação social dessas vinculadas às classes populares, com um projeto educativo claro de educar para a submissão as famílias e crianças pobres.

Para Kuhlmann Jr. (2001a), essas instituições educativas foram estruturadas a partir de uma “[...] concepção preconceituosa da pobreza e que, por meio de um atendimento de baixa qualidade pretende preparar os atendidos para permanecer no lugar social a que estariam destinados.” (idem. p. 183). O projeto educativo dessas instituições é então assinalado por “[...] uma educação assistencialista marcada pela arrogância que humilha para depois oferecer o atendimento como dádiva, como favor aos poucos selecionados para o receber. (idem. p. 182, grifos meus).

A criação dessas instituições se estabeleceu então como um mal necessário que serviria de resposta às problemáticas sociais evidenciadas pelo modo de produção capitalista.

Assim, as instituições de educação infantil são criadas sob um forte caráter assistencialista, que têm como projeto pedagógico a educação para a submissão e reprodução da situação a que a classe trabalhadora está submetida.

Segundo Faria (2002), Kuhlmann Jr. (2001a), Kramer (2001) e Barbosa (1999), essa vinculação das instituições de educação infantil ao atendimento das necessidades de guarda e cuidado das crianças, permeadas por concepções ideológicas (preconceituosamente convenientes para as classes dominantes) de incapacidade e incompetência das mães e famílias pobres prover sua prole, marcam decisivamente as políticas para esse campo e, conseqüentemente, a sua prioridade ou não.

Nesse sentido, Barbosa (1999, p. 2) observa que:

[...] a proposta de atendimento aos filhos de mulheres trabalhadoras, de viúvas e mulheres abandonadas por seus maridos, foi conjugada historicamente à idéia de

“incompetência” feminina para a maternidade. Dessa forma, paradoxalmente, a mesma instituição que deveria servir para auxiliar na liberação da mulher para o trabalho, condenou-a a sentir-se culpada, assumindo para si a responsabilidade de

“fracasso”. Concomitantemente, justificou-se a necessidade de entregar seus filhos à creche, para que ali fossem guardados, protegidos das mazelas da pobreza. [...] A tarefa moralizadora da Creche esteve, dessa forma, atrelada a uma falsa idéia de

“prestação de favor”, de “doação”, distanciando-a da esfera dos direitos. Tal versão sobre a sua função acarretou, sem dúvida, o descomprometimento de alocação de recursos oficiais para esse tipo de lócus educativo, tomando-o como uma proposta assistemática e puramente emergencial, de caráter educacional paliativo.

Além dos objetivos de instruir as famílias sobre como educar e cuidar de seus filhos49, a partir da perspectiva de universalização de valores sociais a respeito de família, mãe-mulher e criança particulares de uma classe social (a classe dominante), essas instituições também, e principalmente, buscam adaptar a infância pobre nesses mesmos comportamentos e valores. Nesse sentido, as instituições de atendimento à infância pobre caracterizaram-se por uma política de adequação das crianças das camadas populares aos ditames da ordem que se impunha, ou seja, preparando-as para o mundo do trabalho e para a submissão.

As instituições pré-escolares nasceram no século XVIII em resposta à situação de pobreza, abandono e maus tratos de crianças pequenas cujos pais trabalhavam em fábricas, fundições e minas criadas pela Revolução Industrial que se implantava na Europa Ocidental. Todavia, os objetivos e formas de tratar as crianças dos extratos

49 - Essa perspectiva de instruir as famílias pobres (especialmente as mães, pois os pais quase não são envolvidos) sobre as formas “corretas” de cuidar e educar de seus filhos é um caráter permanente nas instituições, mesmo após as recentes mudanças de concepção e legislação. Como poderemos ver mais adiante, os projetos educativos das quatro instituições de educação infantil pesquisadas tem como uma de suas metas, desenvolver palestras para as mães com vários especialistas, especialmente da área de saúde (pediatras, enfermeiras, odontólogos).

sociais mais pobres das sociedades não eram consensuais. Opondo-se à ideologia criada naquele período histórico dentro de alguns setores da elite e que defendia a idéia de que não seria bom para a sociedade como um todo que se educasse as crianças pobres, alguns reformadores protestantes defendiam a educação como um direito universal. Todavia, aos mais pobres era proposta a educação da ocupação e da piedade. (OLIVEIRA, 1996, p. 15-16).

Durante grande parte da história brasileira, as políticas de atendimento à infância seguem essa orientação. O trato público da educação infantil, histórica e constitucionalmente, tem estado alocado aos órgãos do governo responsáveis pelas políticas de assistência e amparo, que possuem uma perspectiva de que as classes trabalhadoras e suas crianças são sujeitos da intervenção, ou seja, que são carentes e heterônomos, e necessitam da intervenção estatal para que sejam resolvidas as suas carências, escamoteando assim o cerne de seus problemas.

É necessário identificar as políticas educativas para a infância como um subsetor do conjunto de políticas sociais que busca atender as demandas de assistência aos trabalhadores/as e de educação e cuidado das crianças. Essas políticas sociais podem ser definidas como “[...] intervenção do poder público no sentido de ordenamento hierárquico de opções entre necessidades e interesses explicitados pelos diferentes segmentos que compõem a sociedade.” (ROSEMBERG, 2002b, p. 29).

Essas políticas se dão em um quadro em que a intervenção social é objetivada no sentido de garantir a acumulação e legitimar os meios de reprodução social, regulando o acesso e/ou exclusão aos bens, social e historicamente produzidos, seja no campo dos produtos imateriais (bens simbólicos e culturais) sejam os produtos necessários à própria subsistência. Tais políticas, ao reproduzir os processos de apropriação ou socialização dos meios de produção e de seus produtos, também refletem as práticas sociais e as representações sobre os sujeitos dessa intervenção.

Sendo assim, entendemos que as praticas sociais desenvolvidas no campo das políticas sociais públicas correspondem, no plano ídeopolítico, a representações acerca de seus destinatários, num complexo processo de constituição do reconhecimento social desses sujeitos. Isto significa que a institucionalidade da vida em sociedade, ao definir as práticas sociais que a orientam, definem também o lugar dos sujeitos que vão, ao longo de sua existência social, integrá-las. E esta integração começa nos primeiros anos da primeira infância. (NUNES, 2005, p. 73).

Ainda segundo o raciocínio dessa autora, as políticas sociais brasileiras para a infância têm se constituído como um processo de estranhamento da infância pobre e de suas possibilidades. As crianças, nesse sentido, são percebidas não como sujeitos históricos que

produzem a realidade mediante as relações estabelecidas com os outros e com o mundo, mas sim como coisas, objetos da ação de adultos.

Tais posições, aliás mostram-se coerentemente articuladas à concepção de infância heterônoma, construída no desenvolvimento da pedagogia moderna que concebe a criança como um ser frágil, dependente da ação dos adultos e da educação para transformar-se rumo à autonomia, à liberdade e independência. Ou seja, as crianças passam a ser tratadas apenas como receptoras de cuidado e proteção, como um vir-a-ser, reduzindo suas possibilidades de realização ao futuro, quando tornar-se-ão cidadãos, pessoas capazes de pensar e de produzir sua própria história. (ALVES, 2002, p. 28).

As orientações assistencialistas, que têm marcado as políticas educacionais voltadas para as crianças menores de 07 anos, seguem uma perspectiva dualista sob a qual a Educação brasileira tem se materializado. Tal dualização reflete-se no apoio aos setores privatistas da área e à elitização da educação, bem como a exclusão das maiorias do direito à educação. Esta exclusão não diz respeito somente ao acesso, mas também ao modelo precário e sucateado que tem caracterizado a educação pública no país, ou seja, uma educação “pobre para pobres”.

A política educacional no país é, historicamente, caracterizada pelo descaso para com a educação das maiorias e um amplo favorecimento da constituição de instituições educativas privadas que, ao longo da história, tem tido um apoio significativo do Estado brasileiro (VIEIRA e FREITAS, 2003). Dessa forma, a promessa de democratização e publicização da educação no país tem se conformado em um engodo das políticas oficiais que, quando tensionado pelas forças populares, colocam na ordem do dia alguns pontos, cedendo, com limites claros, às reivindicações e necessidades da população.

A promoção e incentivo ao atendimento educacional privado para a pequena infância são uma das suas características centrais desde a gênese dessas instituições. Esse caráter permanece até o momento, mesmo diante das mudanças provocadas pelas novas legislações pós-redemocratização do país. Em pesquisas que vêm sendo realizadas sobre políticas públicas de educação infantil em Goiás, Barbosa et.al. (2005) observam essa permanência como um dos grandes desafios políticos postos ao processo de democratização da educação infantil, sintetizando com a seguinte reflexão:

A pesquisa sobre as políticas públicas para a Educação Infantil em Goiás e em Goiânia tem indicado que as discussões políticas acerca dessa etapa educativa ainda a contemplam como um “problema” e um grande desafio político para as prefeituras em geral e, especificamente, para as secretarias municipais de educação.

No caso específico das instituições de Educação Infantil, observa-se que os serviços passam a ser terceirizados. Muitas vezes a iniciativa privada assume o atendimento,

mas o dinheiro público é repassado às empresas. Essa é uma das formas de materizalização da privatização do público, que se apresenta como diretriz para as políticas públicas sob a orientação dos organismos multilaterais. Além disso, essa diretriz se acentua quando se delineiam intervenções com base em Programas Emergenciais, que passam a caracterizar a forma principal de atuação do poder público municipal no campo da educação infantil. Esse tem sido segundo dados de 2004, o caso de Goiânia, porém não é uma característica apenas dela ou do Estado de Goiás.

As recentes pesquisas divulgadas pelo INEP explicitam o caráter ainda eminentemente privado das instituições de educação infantil no país.

Tabela 1

Estabelecimentos de Creche e Pré-Escola, por Dependência Administrativa, segundo o Número de Alunos

Brasil\ e Regiões – 2000

Estabelecimentos por Dependência Administrativa

Creche Pré-Escola Público Municipal Privado Público Municipal Privado

Brasil e Regiões

Total

(%) (%) (%) Total

(%) (%) (%) Brasil 24.014 57,1 55,0 42,9 85.786 73,3 67,2 26,7 Até 10 Alunos 3.388 34,7 34,1 65,3 15.993 90,8 88,8 9,2 De 11 a 30 Alunos 7.228 52,5 50,9 47,5 26.588 76,1 69,7 23,9 De 31 a 50 Alunos 4.847 64,7 61,8 35,3 14.634 60,3 51,3 39,7 De 51 a 100 Alunos 5.853 67,4 65,0 32,6 16.461 61,5 54,5 38,5 Mais de 100 Alunos 2.698 61,4 58,5 38,6 12.110 76,0 69,5 24,0

Norte 955 72,9 68,1 27,1 6.234 84,9 72,1 15,1

Nordeste 7.131 74,8 72,0 25,2 39.141 80,9 77,4 19,1

Sudeste 9.410 43,8 42,7 56,2 22.502 58,2 56,0 41,8

Sul 5.055 55,3 54,6 44,7 13.146 74,6 58,8 25,4

Centro-Oeste 1.463 51,9 44,2 48,1 4.763 64,2 52,4 35,8

Fonte:MEC/INEP/SEEC, Censo da Educação Especial 2000 (resultados preliminares).

Nota: o mesmo estabelecimento pode oferecer mais de um nível de ensino.

Fonte: MEC/INEP/SEEC, Educação infantil no Brasil: 1994-2001.

Este quadro se reproduz nas diversas unidades da federação como é o caso de Goiás onde, dentre as 2.560 instituições de educação infantil existentes50, 912 são privadas, 1.440 municipais, 3 federais e 205 estaduais (BRASIL/MEC/INEP, 2001).

Na cidade de Goiânia, esse grande contingente de instituições privadas também é uma tendência que permanece. Um estudo organizado para a construção do Plano Municipal de Educação de Goiânia aponta para um baixo número de crianças atendidas por instituições de educação infantil frente à população dessa faixa etária (sobretudo na faixa de 0 a 3 anos), e apresenta um número muito grande de creches e pré-escolas privadas.

Segundo o documento Situação da Infância Brasileira – 2001 divulgado pelo UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), em Goiânia existem 123.035

50 - Esse número se refere ao total de instituições de atendimento à infância sem distinção entre creches e pré-escolas. Esses dados são aproximados do atual quadro por se referir ao censo realizado pelo Inep no ano de 2001.

crianças de 0 1 6 anos, sendo que 57% delas são de 0 a 3 anos, 28%, de 4 e 5 anos e 15%, de 6 anos. Desse total, apenas 30% das crianças são atendidas em instituição de educação infantil. Desses 30%, 17, 3% correspondem àquelas que se encontram na faixa de 0 a 3 anos, 57, 4%, a 4 e 5 anos e 25, 3%, a 6 anos. [...] Em relação ao universo de crianças de 0 a 3 anos, o atendimento encontra-se assim distribuído:

1,5% na rede municipal, 0,4% na rede estadual, 0,06% na rede federal, 4,2% na rede filantrópica e 2,9% na rede particular. Quanto ao universo de crianças de 4 e 5 anos, o atendimento se encontra distribuído da seguinte forma: 13,5% na rede municipal, 2,4% na rede estadual, 0,04% na rede federal, 11,6% na rede filantrópica e 33,6% na rede particular. Em relação ao universo de crianças de 6 anos, o atendimento na educação infantil encontra-se assim distribuído: 1% na rede municipal, 7,2% na rede estadual, 0,2% na rede federal, 1,6% na rede filantrópica e 40,4% na rede particular. (GOIÂNIA, 2004, p. 14-15, grifos meus).

Estudos mais recentes, baseados em critérios mais qualitativos, demonstram que, apesar do avanço do debate acerca da educação infantil na promoção da educação e ampliação do universo cultural das crianças de 0 a 6 anos, o cenário das instituições marcadas pelo atendimento privado e filantrópico ainda é uma realidade e que as iniciativas do setor público tem ido muito mais no sentido de reafirmar um tipo de atendimento assistemático e não-formal do que efetivar modelos qualificados, formais e duradouros de educação infantil (ROSEMBERG, 2002b; 2003). São elementos caracterizadores dessa situação as seguintes questões: a indefinição do financiamento da educação infantil; as taxas de cobertura insuficientes e anacrônicas dessas instituições, especialmente, junto às famílias mais pobres; o incentivo às políticas de focalização na pobreza por meio de atendimentos não-formais e de baixo investimento público; e a baixa qualidade da oferta.

Nesse sentido, a perspectiva de democratização da educação infantil foi algo efêmero que privilegiou programas emergenciais de caráter assistencial e médico-higienista, objetivando mais controlar e subjugar as crianças das classes trabalhadoras do que efetivamente implantar um projeto educacional, no mínimo, de qualidade. Assim, até meados da década de 1960,

[...] as poucas creches públicas foram criadas juntamente por órgãos voltados exclusivamente para o assistencialismo, com medidas de promoção de saúde, de combate à desnutrição, de prevenção à marginalidade e à criminalidade entre crianças e jovens da população mais pobre. (ALVES, 2002, p. 28).

A permanência de elementos de precariedade e baixo investimento público na educação infantil brasileira são produtos da sua constituição como campo de conhecimento e de política social em processo de construção e sua história contemporânea é marcada por conflitos de interesses, que envolve os setores populares que buscam uma alternativa educacional de qualidade para as crianças menores de 7 anos, diferentes governos e projetos políticos e também o envolvimento dos organismos internacionais na definição das políticas

públicas para esse setor. Esses diferentes interesses e objetivos marcam profundamente o tipo de educação infantil que vem sendo delineado desde o final dos anos de 1970, ora avançando, principalmente com o atendimento das pressões advindas das organizações populares, ora retrocedendo, mediante a capitulação frente aos novos senhores do mundo.

Fúlvia Rosemberg (2002b; 2003) afirma que a história recente da educação infantil pode ser dividida em três períodos, cujos resquícios e influências são elementos constituintes das políticas que vêm sendo desenvolvidas para o setor. A autora divide os períodos e as características do atendimento à infância da seguinte forma: a) primeiro período, situa-se entre o final dos anos de 1970 e final dos anos 1980, que corresponde à implantação de um modelo massificado de educação infantil alinhado às diretrizes pensadas pela UNICEF e UNESCO, baseado nas teorias da privação cultural e na perspectiva compensatória; b) o segundo período também inicia-se paralelamente ao anterior, no processo de redemocratização do país, e se caracteriza pela entrada dos movimentos sociais no cenário político nacional e das intervenções e contribuições desses no campo da infância. Esses movimentos são fundamentais na definição dos novos parâmetros legais na educação infantil que alocam-na nas legislações referentes à educação, buscando superar os limites impostos pela influência administrativa e ideológica do assistencialismo; c) o terceiro período dar-se-á a partir de 1996, momento em que o advento das políticas neoliberal toma conta do Estado brasileiro, provocando um retrocesso sobre os rumos adotados na construção de uma educação infantil de qualidade no país, especialmente por causa das determinações dos organismos financeiros (especialmente o Banco Mundial) sobre as políticas para o campo que tem como eixo de ação as políticas focalizadas nas populações pobres.

O período que envolve o final da década de 1970 e meados da década de 1980 é marcado pela ditadura militar e suas políticas econômicas de transferência do fundo público para o capital internacional para pagamento da dívida externa contraída em função do modelo de desenvolvimento adotado51. Há nesse momento uma redução estatal nas políticas públicas e ao mesmo tempo uma ampliação dos seus aparelhos no controle político e ideológico sobre a sociedade civil. A expansão caótica do ensino público, o arrocho salarial da massa trabalhadora brasileira, em especial do funcionalismo público, a ofensiva violenta e cooptativa sobre os movimentos sociais, são exemplos concretos do caráter ditatorial do Estado Militar (GERMANO, 2005, passim) nesse período.

51 - Uma versão interessante sobre o modelo econômico adotado pelo Estado brasileiro e seus impactos na educação pública durante a década de 1970 e início da década de 1980 podem ser conferidos em Romanelli (1997) e em Germano (2005).

Durante os anos de ditadura, a modernização do Estado e o incremento do crescimento da economia pautado pelas políticas de investimento exterior buscaram um alargamento do Estado nacional e de sua intervenção na sociedade civil. Sob a pretensa intenção de implementação do Estado de bem-estar (que escamoteava o horror provocado pela ditadura), o Estado brasileiro buscou intervir numa série de setores com políticas sociais, caracterizadas pela compensação das mazelas do sistema, que velavam as contradições econômicas e políticas do modelo adotado.

No período supracitado, nota-se uma diversidade de influências no campo educativo e no atendimento à infância, pautada pelas políticas imperialistas estadunidenses materializadas pelo acordo MEC-USAID. A infância pobre fora marginalizada e criou-se as instituições policialescas (Funabem – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) de vigilância e punição da infância pobre. A infância passa então a ser denominada por um termo comum à linguagem policial, a saber, os menores.52

Entre as décadas de 1960 e início da década de 1980, houve a disseminação de duas diretrizes no atendimento educativo voltado à infância: 1) a continuidade e extensão do lar e da família: 2) a assistência aos trabalhadores pautada pela ideologia da privação cultural53. Assim, as trabalhadoras que ali atuavam assumiam como função o papel de mãe, guardiã do cuidado e educação das crianças.

Juntamente com a força do Estado repressivo, o bloco histórico brasileiro do período da ditadura militar54 articulou medidas políticas de envolvimento da sociedade em políticas sociais focalizadas. Essas políticas se caracterizavam pelo baixo custo e pela responsabilização da sociedade e dos movimentos populares para o atendimento de demandas que estavam se configurando como bandeiras de luta e organização política dos trabalhadores brasileiros, tais como, o analfabetismo, a moradia, a reforma agrária e as creches.

As políticas sociais utilizadas como forma de responder e controlar os conflitos sociais, bem como de velar o caráter extremamente violento do regime, são marcadas pela intervenção internacional principalmente sobre os aparelhos do Estado. Os tratados de cooperação entre MEC e USAID na formulação das políticas para o ensino básico e superior e do Banco Mundial e da Unesco e Unicef na educação pré-escolar são exemplos disso.

52 - Ver Marcílio (1998, p. 224-229).

53 - A teoria de privação cultural estabelece uma relação mecanicista de causalidade entre pobreza material e pobreza de estímulos na infância, que decorreria em uma formação cultural deficiente, e conseqüentemente geraria o fracasso escolar das crianças oriundas das classes populares (KRAMER, 2001).

54 - Baseado no conceito gramsciano de bloco histórico, o trabalho de Germano (2005) aponta para o fato de que o Estado Militar resultou numa síntese que expressou os interesses do capital internacional, das grandes empresas nacionais e das estatais formando um bloco dirigido pelos militares e apoiado por setores tecnocráticos.

Diante da crise política e econômica que ameaçava a hegemonia do Estado Militar no final da década de 1970, esse passa a desenvolver uma série de políticas sociais de caráter compensatório, baseada na chamada “participação comunitária”. Tais políticas foram muito influenciadas pelos organismos multilateriais, sob a estratégia “reformista conservadora”. Segundo Germano (2005, p. 231), “Tal estratégia visa, no essencial, promover mudanças sociais sem ruptura, através da obtenção do consenso, motivo que levou o Banco Mundial a aumentar os seus financiamentos para os chamados programas sociais.”.

Dentre essas estratégias, a política do pré-escolar foi sendo caracterizada pelo atendimento focalizado na pobreza, marcada pelas teses da teoria da privação cultural e pelo envolvimento comunitário. Fortemente influenciadas pela Unicef e pela Unesco, as políticas de educação infantil no período entre 1970 e 1980 são parte de um ideário que propugna uma

“naturalização” da subordinação cultural dos países subdesenvolvidos em relação às nações centrais do capital e são ironicamente caracterizadas por Rosemberg (2002b, p. 35 ) da seguinte forma:

A educação infantil para os países subdesenvolvidos tornou-se a rainha da sucata. O modelo redundou numa sinergia perversa entre espaço inadequado, precariedade de material pedagógico e ausência de qualificação profissional da educadora, resultando em ambientes educacionais pouco favoráveis ao enriquecimento das experiências infantis.

Continuando a análise, a autora aponta como essa perspectiva foi assumida nos planos de educação do período como diretriz oficial.

O novo modelo de EI foi incorporado pelo segundo Plano Setorial de Educação e Cultura. Esse Plano concebeu a EI na perspectiva de compensação de carências de populações pobres, especialmente residentes em periferias urbanas, visando o combate à desnutrição e a sua preparação para o ensino fundamental (ROSEMBERG, 1998). Porém, os programas foram implantados apenas no final dos anos de 1970 e início de 1980, quando apresentávamos, segundo o modelo de Cochran (1993), condições demográficas e políticas para expansão da EI:

urbanização acentuada, redução das taxas de natalidade, despertar do ideário feminista contemporâneo, crises econômicas e políticas em nosso contexto, do regime militar. (ibidem).

Embora as políticas de educação infantil nesse período sejam identificadas por suas limitadas e limitantes concepções e práticas, houve também uma série de estruturas que colaboraram posteriormente para o avanço de concepções, idéias e formas de intervenção no campo. Dentre os legados positivos desse período podemos, apontar os seguintes: a organização de uma estrutura administrativa específica no interior do Ministério da Educação