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AS INTER-RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E PRÁTICAS CURRICULARES

CAPÍTULO II POLÍTICA E PRÁTICA CURRICULAR NO CONTEXTO DO COTIDIANO

2.1 AS INTER-RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E PRÁTICAS CURRICULARES

faz-se necessário o entendimento sobre “prática pedagógica”. Segundo Veiga (1989), a prática pedagógica é uma dimensão da prática social. A prática pedagógica tem um lado teórico e idealizado enquanto formula anseios onde está presente a subjetividade humana e o lado prático do cotidiano. Para a autora, a teoria e a prática não existem isoladas, estão entrelaçadas e uma influencia a outra, configurando um processo em construção permanente.

Nessa visão, a prática pedagógica é uma atividade teórico-prática, ou seja, formalmente tem um lado ideal – teórico, e um lado real – objetivo. O lado teórico é representado por um conjunto de idéias constituído pelas teorias pedagógicas, sistematizadas a partir da prática realizada dentro das condições concretas de vida e de trabalho. O lado

objetivo é constituído pelo conjunto de meios, o modo pelo qual as teorias pedagógicas são

colocadas em ação pelo professor.

Para compreensão das inter-relações entre política e práticas curriculares, consideramos que a política curricular está inserida no contexto da política cultural de uma nação e que a prática curricular está inserida no contexto da prática pedagógica, como expressão material de doutrinas, princípios e métodos educacionais.

Destacamos que a prática curricular está envolvida com o processo cultural, o qual se caracteriza como um processo fundamentalmente político, e como a política curricular está inserida no contexto da política cultural, significa que ambas são campos de produção ativa de cultura (MOREIRA, 1994).

Para Forquin (1993), a escola não se limita a selecionar a cultura, mas a torna, como conteúdo, assimilável às gerações novas, através de uma reorganização, reestruturação ou transposição didática, ou seja, através das práticas curriculares.

As práticas curriculares não atuam apenas como elementos transmissores de uma cultura produzida em um outro local, por outros agentes ou pelas políticas curriculares, mas são partes integrantes e ativas de um processo de produção e criação de sentidos, de significações, de sujeitos.

Assim, segundo Moreira (1994), o currículo é constituído como um terreno de produção, criação simbólica, e de materialização de política cultural, no qual os conteúdos funcionam como matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão. Dessa forma, o currículo pode ser conduzido pela política curricular para transmissão de uma cultura oficial, mas o resultado nunca será o intencionado, pois, essa transmissão se dá em um contexto cultural de significações ativas dos conteúdos.

Na compreensão das inter-relações entre política e práticas curriculares consideramos como Pacheco (2003, p. 15) que “a política é, ao mesmo tempo, processo e produto, envolvendo tanto a produção de intenções, ou de textos, como a realização de práticas, ou de ações concretas”.

Nessa visão, a política curricular não se reduz a um simples texto e o Estado é apenas um dos teorizadores, os textos curriculares formulados pela administração central simbolizam o discurso oficial do Estado, o qual agrega interesses diversos e alianças elaboradas a diversos níveis de ação.

Há, não obstante, outros discursos que também legitimam a política curricular e que são produzidos no contexto das diferentes práticas curriculares [...]. Nesse caso, os atores curriculares, sobretudo aqueles que se situam no contexto da escola, são produtores de discursos políticos que legitimam a dão significado ao cotidiano escolar (PACHECO, 2003, p. 15).

Considerando o papel dos professores na formulação das políticas, defendemos que os professores atuam como decisores políticos.

Essas formas de poder explícitas ou implícitas dos atores que participam na construção do currículo devem ser analisadas nos contextos das macro e micropolíticas, correspondentes, respectivamente, às intenções e à prática (Ibid.).

No plano das macropolíticas,

questionam-se os aspectos da fundamentação e organização dos padrões não só expressos nos documentos oficiais, mas também nos momentos de produção desses textos. Nesse sentido, reconhece-se o peso dos grupos socioeconômicos nas práticas de influenciarão e, mais ainda, o papel marcante da administração. O Estado não é uma unidade unitária, mas uma estrutura complexa [...] que existe em função de processos que legitimam diferenças de opinião e converte a administração, depois de elaborado o corpus legislativo, no seu veículo de regulação da política curricular (Ibid, p. 15-16).

Já nos planos das micropolíticas,

aborda-se o lugar das escolas, dos professores e dos alunos na configuração prática do currículo, lugares que nem sempre são controlados totalmente pela administração. [...] o que equivale dizer que nesse plano existem estruturas de poder, redes informais de decisão e práticas discursivas que intervêm de modo ativo na decisão curricular (Ibid., p. 16).

Com essa compreensão destacamos as dinâmicas e estratégias de interação dos professores como atores, ou seja, formuladores de políticas curriculares. Assim, a política curricular configura-se como um conjunto complexo de relações entre a escola, a experiência individual e a vida pública, como espaço de reconstrução de valores, experiências e interesses. “A política curricular não se traduz, assim, em uma decisão central substanciada a partir de parâmetros e critérios de âmbito nacional e de formas concretas de regulação da construção cotidiana do currículo” (PACHECO, 2003, p. 16).

Assim, conceituamos a política curricular como um processo complexo, interativo, multifacetado, desarticulado e menos racional, e consideramos que suas orientações são decididas através de um ciclo constituído por contextos interligados de uma forma não- hierárquica (PACHECO, 2003), segundo ciclo de políticas defendido por Bowe, Ball e Gold (1992), definidos em três contextos principais – contexto de influência, o contexto da produção de texto e o contexto da prática –, como já explicitado anteriormente.

É no contexto de influência onde normalmente as políticas públicas são iniciadas e os discursos políticos são construídos.

É nesse contexto que grupos de interesse disputam para influenciar a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado. Atuam nesse contexto as redes sociais dentro e em torno de partidos políticos, do governo e do processo legislativo. É também nesse contexto que os conceitos adquirem legitimidade e formam um discurso de base para a política (MAINARDES, 2006, p. 51).

O contexto de influência tem uma relação simbiótica, porém não evidente ou simples, com o contexto da produção de texto. O contexto de influência está freqüentemente relacionado com interesses mais estreitos e com ideologias dogmáticas. Já os textos políticos estão normalmente “articulados com a linguagem do interesse público mais geral”, ou seja, os textos políticos representam a política (Ibid., p. 52).

Bowe, Ball e Gold (1992) destacam que os formuladores das políticas não podem controlar os significados de seus textos. Políticas serão interpretadas diferentemente no contexto da prática, uma vez que histórias, experiências, valores, propósitos e interesses são

diversos. Partes do texto podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas, mal entendidas, e mesmo as reproduções podem ser superficiais. Por se relacionarem com interesses diversos, interpretações diferentes serão realizadas e contestadas. Uma ou outra interpretação predominará, embora desvios ou interpretações minoritárias sejam importantes. Ball (1994, p. 16) corrobora com esse entendimento:

[...] While that is important – authors cannot control the meaning of their texts – policy authors do make concerted efforts to assert such control by the means at their disposal, to achieve a “correct” reading. We need to understand those efforts and their effects on readers and to recognize the attention that readers pay to the writers’ context of production and communicative intent [...]. But, in addition, it is crucial to recognize that the policies themselves, the texts, are not necessarily clear or closed or compete. The texts are the product of compromises at various stages (at points of initial influence, in the micropolitics of legislative formulation, in the parliamentary process and in the politics and micropolitics of interest group articulation). They are typically the cannibalized products of multiple (but circumscribed) influences and agendas. There is ad hocery, negotiation and serendipity within the state, within the policy formulation process.

Consideramos que é no contexto da prática onde a política está mais sujeita à interpretação e à recriação, onde também,

a política produz efeitos e conseqüências que podem representar mudanças e transformações significativas na política original. [...] o ponto-chave é que as políticas não são simplesmente “implementadas” dentro desta arena (contexto da prática), mas estão sujeitas à interpretação e, então, a serem “recriadas” (MAINARDES, 2006, p. 53).

Nossa pesquisa toma como base o ciclo de políticas defendido pelos autores Bowe, Ball e Gold (1992) acima citados, por permitir a análise das políticas curriculares inter- relacionando os processos macro e micropolíticos, através da formulação de um referencial teórico que incorpora ambas as dimensões. O nosso foco de análise incide sobre a formação do discurso da política curricular nos contextos de influência e da produção de texto e sobre a interpretação ativa que os professores, que atuam no contexto da prática, fazem para relacionar o discurso da política à prática curricular. “Isso envolve identificar processos de resistência, acomodações, subterfúgios e conformismo dentro e entre as arenas da prática, e o delineamento de conflitos e disparidades entre os discursos nessas arenas” (MAINARDES, 2006, p. 50).

Assumimos que os professores exercem um papel ativo no processo de interpretação e reinterpretação das políticas curriculares, dessa forma, o que eles pensam e no que acreditam têm implicações para o processo de implementação das políticas, que são materializadas no cotidiano escolar pelas práticas curriculares.

Portanto, faz-se necessário compreender as implicações desse processo de implementação das políticas no cotidiano escolar, enquanto relações estabelecidas entre as estratégias da política e seus efeitos nas práticas curriculares.

Ball (1994) expandiu o ciclo de políticas acrescentando outros dois contextos ao referencial original: o contexto dos resultados/efeitos e o contexto da estratégia política. “As políticas normalmente não nos dizem o que fazer, elas criam circunstâncias nas quais o espectro de opções disponíveis sobre o que fazer é reduzido ou modificado ou nas quais metas particulares ou efeitos são estabelecidos” (BALL, 2006, p. 26).

O quarto contexto do ciclo de políticas – o contexto dos resultados ou efeitos – preocupa-se com questões de justiça, igualdade e liberdade individual.

Nesse contexto, as políticas deveriam ser analisadas em termos do seu impacto e das interações com desigualdades existentes. Esses efeitos podem ser divididos em duas categorias: gerais e específicos. Os efeitos gerais da política tornam-se evidentes quando aspectos específicos da mudança e conjuntos de respostas (observadas na prática) são agrupados e analisados. [...] Tomados de modo isolado, os efeitos de uma política específica podem ser limitados, mas, quando efeitos gerais do conjunto de políticas de diferentes tipos são considerados, pode-se ter um panorama diferente (MAINARDES, 2006, p. 54).

Mainardes (Ibid.) esclarece que essa divisão apresentada por Ball sugere que a análise de uma política deve envolver o exame

(a) das várias facetas e dimensões de uma política e suas implicações (por exemplo, a análise das mudanças e do impacto em/sobre currículo, pedagogia, avaliação e organização) e (b) das interfaces da política com outras políticas setoriais e com o conjunto das políticas. Isso sugere ainda a necessidade de que as políticas locais ou as amostras de pesquisas sejam tomadas apenas como ponto de partida para a análise de questões mais amplas da política (Ibid., p. 54-55).

Ball (1994) apresenta ainda a distinção entre efeitos de primeira ordem e de segunda ordem. Os efeitos de primeira ordem referem-se a mudanças na prática ou na estrutura e são evidentes em lugares específicos ou no sistema como um todo. Os efeitos de segunda ordem referem-se ao impacto dessas mudanças nos padrões de acesso social, oportunidade e justiça social. Segundo Moreira (1995, p. 106),

Não há Estado de direito, não há justiça social, quando se quer atribuir ao mercado o poder de legislar sobre tudo. O mercado não sabe de justiça social: atém-se ao lucro e sua maximização. Ou caminhamos na direção selvagem do reinado ilimitado do mercado ou na direção da justiça social. A opção precisa ser feita.

O último contexto do ciclo de políticas é o contexto da estratégia política. Esse contexto envolve a identificação de um conjunto de atividades sociais e políticas que seriam

necessárias para lidar com as desigualdades criadas ou reproduzidas pela política (BALL, 1994).

Com relação às desigualdades provocadas pelas políticas, Moreira (1995, p. 105) argumenta a favor da constituição “de novos saberes que melhor atendam aos interesses e necessidades das camadas populares e que melhor se articulem a um projeto de construção de uma sociedade menos marcada por desigualdades”.

Diante do exposto, consideramos que na análise da política e prática curricular é necessária uma compreensão que se baseia não no geral ou local, macro ou microinfluências, mas nas relações de mudança entre eles e nas suas interpenetrações.

The challenge is to relate together analytically the ad hocery of the macro with the ad hocery of the micro without losing sight of the systematic bases and effects of ad

hoc social actions: to look for the iterations embedded within chaos. As I see it, this

also involves some rethinking of simplicities of the structure/agency dichotomy (BALL, 1994, p. 15).

Nessa relação de mudanças entre macro ou microinfluências, destacamos a necessidade de compreensão dos efeitos de primeira ordem como provocadores de mudanças na prática curricular e na estrutura da escola, dos efeitos de segunda ordem referentes aos impactos das mudanças nos padrões de acesso ao projeto escolar, e a identificação das estratégias políticas delineadas para lidar com as desigualdades e promover a inclusão social.

Reconhecendo-se a importância de o espaço escolar ser utilizado para fortalecer e dar voz aos grupos oprimidos na sociedade, impõe-se como tarefa primordial dos educadores trabalhar no sentido de reverter essa tendência histórica presente na escola, construindo um projeto pedagógico que expresse e dê sentido democrático à diversidade cultural (SANTOS; LOPES, 1997, p. 36).

Em síntese, nossa pesquisa preocupa-se em compreender os discursos dos professores sobre as mudanças provocadas pela política nas práticas curriculares; para isso, partimos da análise das inter-relações entre o contexto de influência, o contexto da produção de texto e o contexto da prática, priorizando o entendimento sobre os efeitos de primeira ordem da política que provocam mudanças nas práticas curriculares e na estrutura da escola, e sobre os efeitos de segunda ordem referente aos impactos dessas mudanças nos padrões de acesso ao projeto escolar, na redução das desigualdades e na promoção da inclusão social, como também, os novos ordenamentos que o contexto da prática pode promover nas estratégias da política curricular.

2.2 O DISCURSO PEDAGÓGICO NA RECONTEXTUALIZAÇÃO DA POLÍTICA