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1 MARCO HISTÓRICO: O MOVIMENTO

2.1 AS LÍNGUAS NEOLATINAS

Línguas neolatinas, também denominadas novilatinas, românicas, ou simplesmente latinas, são todas aquelas que se desenvolveram com base no latim falado nas diversas regiões conquistadas pelos romanos a partir do século I a.C., por isso, sua história está intimamente ligada à do império romano. O termo Romania seria de origem popular e foi documentado pela primeira vez, no século V, por Paulo Orósio, discípulo de Santo Agostinho. Mais tarde, o termo passou a ser usado com o sentido de oposição à Barbaria, indicando que o mundo dos romanos estava se desintegrando e que os godos pretendiam sobrepor-se a eles, com a construção da Gothia. Ao longo dos séculos, Romania assumiu vários significados, geográficos, linguísticos e políticos, vindo a se consolidar nos estudos acadêmicos a partir do século XIX, com a divisão de Friedrich Diez (1794-1876) em România oriental e România ocidental. Posteriormente, Gaston Paris, em 1872, definiu-a como “conjunto dos territñrios onde se falou latim42

, ou onde se fala atualmente uma língua românica, incluindo-se as respectivas literaturas e a cultura de seus povos.” (BASSETTO, 2001, p. 178)

À medida que as migrações e conquistas foram se expandindo, não só em terras europeias mas também em outros continentes, as línguas românicas foram modificando os mapas linguísticos do mundo, como, por exemplo, o português no Brasil, em partes da África, Ásia e Oceania; o espanhol na América Latina; o francês no Canadá e nas colônias da Ásia e da África. Inclusive, mais recentemente, fatores como a conscientização dos povos, a reivindicação de direitos linguísticos, o desejo e a necessidade de codificar as falas diversas fizeram com que o número das línguas neolatinas que compunham o cânone estabelecido, e

42 Em alguns territórios, o latim dominou apenas enquanto durou o poder dos romanos. Por isso hoje já não fazem parte da România.

vigente até meados do século XX, fosse alterado, com a inclusão de mais línguas. (BADIA I MARGARIT, 2007, p. 31)

O que caracteriza as línguas românicas, ou neolatinas, e difere-as dos conjuntos de línguas de outros ramos, é o fato de que elas têm uma base comum conhecida, o latim vulgar43, ao contrário de muitas outras línguas, que também são continuações históricas de um protótipo antigo, mas cuja existência deste é apenas hipotética44. Além disso, estas línguas, ou algumas delas, contaram com uma tradição escrita comum, transmitida pelas instituições medievais e reforçada a partir do Humanismo renascentista.

Embora existam hoje mais de vinte línguas neolatinas, aqui são abordadas apenas quatro delas: francês, italiano, espanhol e português, porque são as que começaram a ter reconhecimento entre os séculos XV e XVI, na tradução literária e no uso escrito em geral. A partir desta época, através de um “processo de dignificação” (MICÓ, 2004), estas línguas tiveram suas literaturas reelaboradas, começaram também a ser padronizadas e consideradas aptas para cumprir todas as funções que até então haviam sido atribuídas quase exclusivamente ao latim. Algumas línguas literárias deste conjunto, tais como o occitano, o catalão e também o romeno tiveram seus movimentos de valorização só na segunda metade do século XIX, outras ainda nem os tiveram. Por isso, os textos que compõem o nosso corpus, cuja ênfase é o papel da tradução renascentista, referem-se ao grupo das que mais traduziram naquela época.

Até aquele momento, em relação ao poder e ao prestígio concedi- dos ao hebraico, grego e latim, todas as diversas línguas vernaculares eram, de igual modo, tratadas com certo menosprezo e consideradas por muitos intelectuais como falares dos “bárbaros” e dos “incultos”; mes-

43 A denominação convencional de “latim vulgar” foi dada pelos romanistas europeus do século XIX a uma modalidade de língua oral dos romanos, reconstruída através do método histórico-comparativo e confirmada com auxílio de fontes antigas, como inscrições em muros, tabuinhas e fragmentos de falas populares inseridas em textos literários. (SILVA NETO, 1946) No século XX, o filólogo brasileiro Theodoro Henrique Maurer Júnior publicou a

Gramática do latim vulgar (1959), com base nos materiais fragmentários,

confirmando os elementos através da análise estrutural das línguas românicas. 44 É o caso do indoeuropeu, do qual existem reconstruções comparativas, mas

mo as que já possuíam obras literárias, eram depreciadas e tidas como formas “corrompidas” do latim45

.

A situação mudou quando algumas das línguas vulgares começaram a ser vistas como instrumentos capazes de substituir o latim, principalmente na literatura, após um processo envolvendo ações de enriquecimento e reconhecimento. No caso das quatro línguas referidas nesta tese, são as que obtiveram, naquela época, por parte de alguns de seus usuários, um tratamento mais ou menos parecido com o que era dado às línguas clássicas. De modo geral, foi durante o Humanismo renascentista, compreendido, com algumas variações locais, entre 1300- 50 e 1600 (KRISTELLER, 1993), que ocorreram as grandes transformações que elevariam o status destas línguas, reforçando, a partir de então, a sua latinidade culta, resgatada diretamente das obras clássicas.

As línguas às quais se refere nosso corpus foram construídas gra- dativamente e atingiram sua suficiência no uso escrito a partir dos sécu- los XV e XVI, quando se afirmaram suas literaturas e sua utilização no setor administrativo e jurídico, em meio a uma série de acontecimentos, cujo conjunto constitui, conforme demonstrado no capítulo precedente, o movimento cultural denominado Renascimento. Neste momento, al- gumas das línguas oriundas do latim falado, que há muito vinham se diversificando, reaproximaram-se pela via literária. Antes de ganharem a forma escrita, cada uma delas havia sido um daqueles latins provinciais, falados na Gália, na Itália e na Hispânia, mas nenhuma estava muito próxima do latim culto, conservado pelas elites e difundido pelas escolas e pela igreja cristã.

Dentre todas as variedades do latim, apenas algumas tornaram-se, mais tarde, línguas reconhecidas como nacionais46, aquelas cujos

45 Calvet (2001, p. 34) chama atenção para a organização “piramidal” das línguas nos séculos XV e XVI, que revela a relação social hierarquizada que havia entre elas: o hebraico, língua original, no topo; o latim e o grego, em ambos os lados, como línguas sagradas e também veiculadoras do cânone literário nobre; e, na base, todas as outras línguas, naquela época chamadas de “bárbaras”, que ainda não eram reconhecidas. O confronto entre os vernáculos e as línguas clássicas é o tema principal do Dialogo della lingua, de Speroni (1542), que consta na presente antologia. O latim era a língua dita “perfeita”, “divina”, e os vernáculos, que descendiam do latim, mas porque haviam se misturado com os falares de outros povos, dizia-se que estavam “corrompidos”.

usuários, em geral um grupo de elite, com o apoio de alguma liderança política, passaram a utilizá-las em sua produção literária e em seus documentos legais e administrativos. Outras ficaram à margem, não por falta de algum elemento em seu interior, mas por não haver um projeto político que visasse à sua dignificação. Assim sendo, enquanto alguns vernáculos desenvolveram-se na escrita, com a difusão da imprensa e com a promoção de ações de interesse cultural e político, outros ficaram confinados, cada vez mais, à oralidade.

Schlieben-Lange (1993, p. 76) cita, como exemplo, o occitano (provençal), que foi a primeira língua moderna descrita em forma de gramática, e às vezes de poéticas, entre os séculos XIII e XIV, tendo se tornado modelo para o italiano e o catalão. No século XVI, porém, coincidindo com a difusão da imprensa, decretou-se o francês como língua de âmbito administrativo e judicial e o occitano foi, aos poucos, ficando restrito à literatura menos estilizada e ao uso oral.

Fato semelhante ocorreu na península ibérica: Na Espanha do século XIV, o catalão, que era literariamente superior à língua vulgar castelhana, acabou sendo desvalorizado devido às opções políticas e à hegemonia de Aragão e de Castela. (BURKE, 2010a, p. 23) Também o galego, que, nos séculos XIII e XIV, havia produzido uma literatura comum à Galiza e Portugal e que, através dos cancioneiros, deu uma contribuição notável à cultura europeia, com sua literatura, valorizada até na corte castelhana, posteriormente perdeu o prestígio. Sua minorização, segundo Cristóvão (2004), teria sido acelerada pela ausência da imprensa e dos processos de gramatização; e também pela ausência do Humanismo vulgar e das traduções dos clássicos, fatores estes que foram fundamentais para a promoção das línguas neolatinas majoritárias.

Apesar das semelhanças estruturais das variedades latinas, devido à origem comum, o romanice fabulare, umas se diferenciaram das outras. Enquanto algumas permaneceram relegadas à condição de

46 Na falta de um termo adequado para este grupo de línguas, na época renascentista, usa-se “nacional”, entendendo-se, porém, que o termo se refere a um papel provisório, sustentado pela literatura das elites. Pois, no século XVI, elas estavam recém começando a ser impostas, sendo, portanto, ainda cedo para aplicar-lhes denominações políticas como “línguas nacionais”, “majoritárias”, “hegemónicas”, as quais sñ caberiam mais propriamente a partir dos séculos XVII e XVIII.

minoritária47, a outras, que acabaram sendo ideologicamente mais valorizadas, foi atribuído o status de língua nacional. Porém, do ponto de vista da história interna48 das línguas neolatinas não há, entre elas, nenhuma razão para considerar quais são línguas apropriadas para o uso e quais não são, pois todas contêm todos os elementos necessários à comunicação entre seus usuários. As diferenças de status são devidas a fatores culturais e, sobretudo, políticos vigentes nas suas comunidades. Também o latim havia sido apenas um dialeto itálico igual aos demais; seu grande papel posterior49, como lembra Bourciez (2000, p. 15), “se explica menos por virtudes intrínsecas do que pelos sucessos políticos do povo que dele se serviu.”

O prestígio alcançado pelas línguas neolatinas contou, em grande parte, com três fatores básicos: o latim, o cristianismo e, em especial, a literatura, que promoveram certa unidade cultural no ocidente50, sobretudo na constituição das quatro línguas aqui abordadas, ainda que isso não deva ser considerado como o único critério.

Assim, o espanhol, começando pelo empenho de Afonso X e as traduções bíblicas, estabeleceu-se junto ao poder central com o apoio dos reis católicos e a obra de Nebrija. O francês, que depois se expandiu graças ao sistema escolar, teve como elemento indispensável também a sua famosa literatura. O português consagrou-se como língua literária a partir de Camões. E o italiano, que se consolidou mais tarde (no século XIX), contou com os esforços de Manzoni e de um grupo de intelectuais que reforçaram a tradição literária, já existente desde o final da Idade Média e ampliada no século XVI.

47 Ou ainda denominadas dialetos ou patoás (etimologicamente, falar com as patas), com sentido pejorativo, como algo corrompido e provinciano, considerado degeneração da bela “Língua”. Estas discriminações teriam se originado na França, a partir dos séculos XVI e XVII, quando o uso cortesão tornou-se a norma linguística. (ZABALTZA, 2006, p. 47)

48 A descrição dos aspectos estruturais da língua que não leva em conta os fatores sociais, culturais, geográficos, políticos etc.

49 Sem desprezar, é claro, o valor das suas obras literárias, que também constituem motivo de interesse, visto que em nossos dias continuam a ser estudadas, traduzidas e apreciadas.

50 Na parte oriental, há o romeno, que, além de se diferenciar das outras “irmãs” devido à incorporação de elementos eslavos, teve uma histñria política marcada por sucessivas dominações estrangeiras, tendo conseguido a sua relatinização e sua notoriedade nas letras só no século XIX.

A partir do Renascimento, por um lado, estas línguas reaproximam-se e convergem quanto à latinidade51 clássica que é resgatada; por outro lado, cada uma, na sua comunidade, individualiza- se e torna-se “neo-latina” no sentido de que é reconhecida pelos seus letrados como o novo latim daquele lugar; um latim “vivo”, capaz de dar conta das necessidades comunicativas e expressivas do seu grupo de usuários, e assim é instituída para substituir o latim “morto”52 que até então havia sido a língua principal.

Em todos estes fatores, a tradução exerceu um papel fundamental. Primeiro, a tradução dos textos gregos ao árabe e ao latim e do latim às línguas vernáculas, que funcionou como o principal elemento de continuidade cultural do passado greco-romano no ocidente. Depois, as traduções bíblicas em vernáculo, e, sobretudo, a revalorização das letras clássicas e os modelos traduzidos da Antiguidade, que influenciaram o desenvolvimento e a consequente autonomia da produção literária própria de cada país.

Isto posto em linhas gerais, porque se está aqui focalizando a influência da tradução renascentista nas variedades linguísticas dominantes. É claro que, no interior de cada comunidade, havendo muitas línguas, há histórias diversas que se entrecem em diferentes momentos.

A partir do Renascimento, como observa Burke (2010a, p. 105- 6), a disputa ocorre entre aqueles vernáculos que, depois de terem se tornado línguas cultas, começam a lutar pelo lugar de “melhor das melhores”, alimentando a ideia de unidade de um povo, que mais tarde iria fomentar a relação de equivalência “língua/nação”. Esta relação, junto ao “desejo de fixidez” culmina com a fundação das academias, que se tornaram as autoridades máximas da regulamentação linguística da Europa.

51 Por causa da latinidade, característica do Humanismo renascentista, damos preferência aqui ao emprego do termo “neolatina”, por parecer mais adequado do que “românica”, cujo uso soa melhor em referência à romanidade resgatada pelo movimento romântico do século XIX, que visava à valorização da literatura medieval.

52 Nos textos renascentistas, em que há uma relação estreita das línguas com a natureza, é frequente a referência à oposição entre as línguas vivas, os vulgares, e as mortas, latim, grego e hebraico. (SPERONI, 1542; DU BELLAY, 1549; GELLI, 1551)

2.2 AS PRIMEIRAS TRADUÇÕES NA ESCRITA NEOLATINA

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