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1 MARCO HISTÓRICO: O MOVIMENTO

1.1 RENASCIMENTO, CONTINUIDADES E

1.1.1 O sistema de ensino humanístico e o método

As línguas neolatinas, a partir do século VII d.C., ainda que muito próximas dos latins provinciais, começaram a ter seu uso, pouco a pouco, empregado também na escrita. E a tradução, desde os exercícios escolares do latim ao vernáculo, passando pelas versões de textos sacros e pelas vulgarizações25 de obras da literatura greco-latina, tem um aumento progressivo, tanto no volume quanto na diversidade de textos e de línguas, vindo a adquirir, desse modo, entre os séculos XV e XVI, o “status de obra de arte”. (FURLAN, 2002)

Uma série de fatores teria contribuído para acelerar o movimento que distinguiu a produção literária vernacular renascentista daquela anterior, quando os temas clássicos da Antiguidade eram utilizados pelos escritores, mas ainda sem conhecimento profundo dos textos originais, e as traduções, na maior parte, eram interpretações do conteúdo com adaptações livres, sem o domínio dos recursos artísticos formais. (HIGHET, 1954)

Entre estes fatores, destaca-se a contribuição dada pelos eruditos humanistas, especialmente em dois aspectos referentes ao âmbito das letras: a redescoberta dos princípios pedagógicos dos programas escolares da Antiguidade clássica e o contato com a filologia, que, ao resgatar a arte retórica antiga, interfere na qualidade das obras literárias, traduzidas ou criadas, bem como no aperfeiçoamento de muitas línguas vernáculas. (FURLAN, 2002)

O sistema de ensino é um dos componentes essenciais da tradição culta na Europa ocidental, pelo qual desenvolveram-se a tradução e a produção de obras literárias. Este sistema, que envolvia o estudo do latim, da gramática, da poética, da retórica e, mais tarde, do grego antigo, foi retomado, a partir do século XIV, pelos humanistas italianos, difundindo-se depois para vários outros países.

O mais estável destes saberes foi o latim, que durante vários séculos esteve na base de toda a aquisição de conhecimentos, sempre indissociado da gramática. A arte retórica passou por diversas mudanças, desde a Antiguidade até o Renascimento, sem, contudo, nunca ter deixado completamente de ser ensinada. Já o grego, cuja variante moderna era língua viva na parte oriental do império romano,

onde se manteve o estudo da modalidade clássica, ficou ausente dos programas escolares no ocidente medieval, até ser divulgado pelos humanistas. (KRISTELLER, 1993)

As páginas a seguir são dedicadas às principais etapas do desenvolvimento das referidas matérias e suas respectivas implicações para o processo de aprimoramento das línguas vernáculas aqui abordadas, em especial quanto às mudanças que ocorreram no modo de traduzir.

Os romanos haviam seguido, em linhas gerais, o modelo da enkyklios paideia26 dos gregos, que consistia em uma transmissão do saber que envolvia o ensino de gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, música e astronomia e que os preparava para o estudo da filosofia. (MARROU, 1975, p. 276)

A gramática ocupava uma parte importante dos estudos, nos quais incluíam-se os textos clássicos da literatura grega, que eram lidos e interpretados, e também lições de ortografia, sintaxe e composição. O latim medieval teria sido a continuação do latim escolar e literário do baixo-império. Desde o século III d. C., com as revoluções internas e as derrotas infligidas pelos povos germânicos aos romanos, a sociedade letrada foi se transformando pouco a pouco. Após a proclamação da liberdade das religiões pelo imperador Constantino, através do Edito de Milão, em 313, e da proibição dos cultos pagãos, em 392, pelo imperador Teodósio, o cristianismo conseguiu, finalmente, impor suas idéias e sua língua. (NORBERG, 2007, p. 4)

A educação formal, em especial o ensino do latim, ficou então a cargo dos mosteiros, sedes do pensamento cristão, onde eram feitas cópias de manuscritos, comentários e ornamentação dos códices. O latim, mesmo depois de ter perdido espaço para os vernáculos locais no uso quotidiano da Europa ocidental, continuou sendo a língua dominante da Igreja, dos intelectuais, da administração e da diplomacia; e também continuou compondo a parte mais elementar da aprendizagem, pois era o instrumento através do qual as artes liberais eram ministradas. (MARROU, 1975, p. 277)

A cultura da Idade Média organizou-se em torno das artes liberais, em oposição às atividades manuais. Por volta do século VIII, na

26 Este modelo grego de educação teria também inspirado a noção de “enciclopédia”, no século XVI, como aquisição de uma cultura geral, universal.

Europa já cristianizada, ocorreu a primeira divisão dos saberes, quando foram criados os currículos escolares. Neste período, o conhecimento passou a se apresentar em duas formas básicas, que ficaram conhecidas como triuium (gramática, retórica e dialética) e quadriuium (geometria, aritmética, astronomia e música). A gramática e o latim constituíam a base do ensino elementar. Embora não fosse dispensado o recurso eventual ao vernáculo, os exercícios e o material pedagógico eram elaborados em latim. O estudo da gramática incluía leitura e interpretação de autores latinos, a partir da imitação dos quais procedia- se à composição de prosa e verso, em língua latina. (KRISTELLER, 1970)

Depois dos estudos gramaticais, para os alunos que continuavam no programa, seguia-se o ensino da lógica e a iniciação aos clássicos, que objetivava, segundo Verger (1999, p. 80), “dar uma vaga tintura literária a uma certa parcela da população, preparar os melhores ou os mais ambiciosos para o acesso à universidade.” Na França, a gramática e os autores clássicos latinos eram estudados nas escolas, até o século XIII, quando surgiu a universidade de Paris e o escolasticismo. No final da Idade Média, as línguas vernáculas já possuíam suas obras literárias e eram faladas, inclusive, pela alta aristocracia, mas seu estatuto era completamente diferente do latim, que era a língua das disciplinas eruditas e dos estudos em geral, do menor ao mais alto grau: “Estudar era, antes de mais nada, estudar „as letras‟ (litterae), quer dizer, o latim. Aquele que havia estudado era considerado litteratus, o que significava, fundamentalmente, que ele sabia latim.” (VERGER, 1999, p. 27)

As instituições de ensino medievais haviam sido fundadas em torno da educação e do estudo de textos antigos, principalmente da filosofia de Aristóteles traduzida em latim. No século XIII, com o surgimento das universidades, e durante os séculos XIV e XV, predominou o poder eclesiástico e o emprego do método escolástico27 no estudo da filosofia e da teologia. (LE GOFF, 1989)

As matérias básicas de estudo sofreram algumas subdivisões, mantendo suas finalidades, até que os humanistas, seus herdeiros, fizessem as mudanças mais significativas. No final da Idade Média, as sete artes como somatório de conhecimentos acessíveis a qualquer

27 Estudo de forma rigorosa a que os filósofos medievais aplicavam-se, objetivando a busca da “verdade eterna”, fazendo uso de tecnicismos e um jargão especializado de difícil acesso aos não iniciados.

letrado havia dado lugar a várias disciplinas especializadas, como teologia, direito (romano e canônico), medicina, matemáticas, astronomia e astrologia, lógica, filosofia natural e, por último, gramática e retórica, que durante o Renascimento sofreriam alterações e acréscimos importantes. Nas escolas medievais, aprendia-se a gramática como instrumento para falar e escrever corretamente; e a arte retórica, ou oratória, com as regras adaptadas da retórica antiga, era estudada com objetivos predominantemente práticos, em especial pelos profissionais que precisavam redigir cartas e compor discursos. A ars dictaminis vigorou primeiro na Itália, nos meios jurídicos, depois se expandiu para outros países, aperfeiçoando os gêneros oratórios. (KRISTELLER, 1970, p. 197-208)

Os humanistas mantiveram um vínculo com os medievais quanto aos ofícios que exerciam, como secretários de autoridades, retores e professores, mas proporcionaram mudanças importantes em relação aos conteúdos, métodos e finalidades do ensino que ministravam. A respeito da atividade tradutória, por exemplo, Kristeller (1993, p. 158-9) observa que os humanistas cobriram uma área bem maior, em especial da literatura grega, preenchendo várias lacunas que haviam sido deixadas pelos tradutores medievais e disponibilizando aos leitores ocidentais, pela primeira vez, muitos autores e textos.

Os filólogos28, estudiosos das palavras, que desde a Antiguidade eram profundos conhecedores da história, da língua e da cultura greco- latina, mantinham uma tradição de tratamento dos textos que visava determinar o seu sentido exato. Os mestres bizantinos conservavam um grande número de manuscritos clássicos, dos quais faziam confrontações com suas cópias e também com estudos de seus contemporâneos. O mais importante dos filólogos desta época foi Demétrio Triclínio, que, retomando os princípios dos alexandrinos, criou um novo método de tratamento dos textos antigos e influenciou os estudos no ocidente a partir do século XIV. Segundo Gayo (1979), Demétrio foi o primeiro a trazer informações sobre as divergências existentes entre a tradição manuscrita dos antigos e dos copistas modernos, tendo restaurado e corrigido várias obras, de Píndaro, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Hesíodo e Teócrito, muitas das quais haviam sido alteradas. A partir do seu trabalho, generalizou-se

a ideia de que a crítica textual nas obras poéticas deveria fundamentar-se na métrica29.

Com base na filologia dos bizantinos e nos conhecimentos de grego clássico, os humanistas começaram a realizar versões novas e, principalmente, mais íntegras de textos já traduzidos, como de Aristóteles e de alguns comentadores. Muitas das traduções que haviam sido feitas entre os séculos XI e XII, embora tivessem sido muito úteis ao estudo da filosofia e das ciências para aquele contexto, apresentavam imprecisões na terminologia técnica, bem como nos modelos e gêneros da Antiguidade clássica, porque o conhecimento linguístico e estilístico que os tradutores tinham das obras clássicas era, muitas vezes, superficial. (HIGHET, 1954) Além disso, muitas dessas traduções haviam sido feitas em latim, através do árabe, e não diretamente do grego.

Durante a época medieval, a metodologia de ensino predominante no ocidente havia sido a hermenêutica, por meio de cujas regras eram estabelecidos os princípios, leis e métodos de interpretação textual, porque objetivava-se captar a mensagem das Sagradas Escrituras, sem grande cuidado com as questões de estilo. Mesmo quando se tratava de textos literários da Antiguidade greco-romana, a preocupação maior era com a adaptação do conteúdo a um público que não tinha acesso aos originais, e também porque os letrados da época, muitas vezes, não possuíam conhecimento profundo dos elementos formais do latim clássico, e menos ainda do grego, que lhes era praticamente ignorado. (HIGHET, 1954)

Com os humanistas, foram retomados os métodos das escolas romanas e o estudo de autores consagrados como Cícero, Horácio, Tito Lívio, Demóstenes e Tucídides, em suas línguas originais, bem como os princípios da retórica clássica grega. Nos programas escolares da Antiguidade, que foram incorporados às escolas romanas, exercitava-se a prática retórica e a tradução interlinguística, inicialmente com paráfrases literais do texto na língua comum, e depois com a elaboração de um equivalente retórico, priorizando o estilo oratório. (FURLAN, 2002)

29 Talvez daí tenha se originado a procupação dos humanistas em relação à recuperação da sonoridade nas traduções do grego ao latim e depois também aos vernáculos.

A (re)tradução de obras gregas e o (re)descobrimento dos clássicos latinos, junto à redescoberta dos princípios pedagógicos antigos e o conhecimento do método filológico, constituem um dos componentes essenciais do Humanismo, em que é favorecido, segundo Folena (1994, p. 50-5), o amadurecimento de uma nova concepção do traduzir. Para este processo de desenvolvimento e inovação também teriam contribuído outros fatores importantes que caracterizam aquela época, como a expansão das oficinas tipográficas e a elevação do status de novas línguas. (FURLAN, 2002, p. 156-7)

A gramática e a retórica, que durante a Idade Média haviam ficado limitadas ao ensino básico, começam a ser revalorizadas a partir do século XIV, vindo a integrar o esquema dos studia humanitatis, juntamente com a filosofia moral, a poesia e a história. No século XIV, a poética (arte de escrever poesia em latim com base na imitação dos modelos clássicos) foi separada da gramática, que continuou a ser o instrumento para “falar e escrever corretamente”. Como parte da retórica, ou oratória, que ajudava a compor prosa em latim nos gêneros literários carta e discurso, era estudada também a história, que preparava os historiógrafos oficiais. Por último, estava a filosofia moral, responsável pela formação dos valores morais e da intelectualidade dos jovens. (KRISTELLER, 1970, p. 197-201)

No sistema de ensino renascentista, o grego clássico representa um fator de grande diferenciação, pois as demais disciplinas da área humanística, como a gramática, a literatura latina e a retórica, embora tenham sido relegadas a um nível elementar de aprendizagem, nunca chegaram a ter seu estudo totalmente interrompido. Já os estudos de grego estiveram ausentes durante a Idade Média, em quase toda a Europa. Por isso, conforme Kristeller (1970, p. 204), a contribuição dos humanistas neste campo foi muito maior e teve como resultado a introdução do grego nas universidades e nas escolas secundárias, com estudo, tradução, interpretação e difusão de toda a literatura grega na sua língua original, desde os textos de ciências, filosofia, poesia, história, retórica, até os da patrística.

No sul da Itália, na primeira metade do século XII, textos gregos, em especial de medicina e teologia, foram latinizados por tradutores como Nicola di Reggio e Nicola di Teoprepio, entre outros, enriquecendo as bibliotecas da corte napolitana. Estas versões, embora distantes da qualidade artística das traduções renascentistas, teriam

contribuído para a manutenção da tradição tradutória do grego ao latim que seria retomada depois por Petrarca e Boccaccio. (CHIARINI, 1995)

Petrarca foi um dos primeiros eruditos a aprofundar o conhecimento dos grandes autores clássicos, mas sua preferência era pelos latinos. Já Boccaccio foi quem oportunizou o ensino da língua grega, hospedando em sua casa o grego-calabrês Leôncio Pilatos, tradutor das obras de Homero em latim, e abrindo o caminho que seria seguido, no século XV, por outros humanistas tradutores de várias obras gregas, como Leonardo Bruni e Angelo Poliziano. A Ilíada e a Odisseia e as obras de Plutarco estão entre os textos gregos mais importantes traduzidos pelos humanistas. Segundo Chiarini (1995), estas traduções, apesar de literais, indicam que se estava iniciando um novo modo de traduzir, que já não visava unicamente à divulgação de conhecimentos ou à evangelização.

Junto à atividade tradutória do final do século XIV, implantou-se o ensino de grego na Itália, com o bizantino Manuel Crisoloras (1350- 1415), que incrementou a qualidade das traduções e tornou conhecidas muitas obras originais, as quais mais tarde ganhariam edições bilíngues greco-latinas nas tipografias de Aldo Manuzio em Veneza e dos Estiénne em Paris. A partir de então, começaram as grandes mudanças no sistema de ensino europeu.

Depois de a Itália consolidar os estudos gregos, outras cidades europeias passaram a receber helenistas como professores. Além disso, muitos eruditos30 realizavam temporadas de estudo na Itália e, ao retornar, compartilhavam os conhecimentos adquiridos com cidadãos do seu país, ou de países onde eram convidados, ministrando aulas, ou escrevendo obras com as novas ideias; também mantinham contatos internacionais com outros humanistas, através de viagens, troca de cartas (em latim ou grego), livros e manuscritos; reuniam-se em círculos chamados academias31, ao modo da Academia Platônica em Atenas.

Para sua maior divulgação, os estudos humanísticos contaram com a criação de colégios, que se distinguiam pelo caráter laico, numa época em que a docência era monopólio eclesiástico e a disciplina

30 Por exemplo, Nebrija, Martín de Viciana e Pedro Simón Abril, na Espanha; Budé, Amyot e Casaubon, na França; Erasmo e Juan L. Vives, em Flandes. 31 Como a Academia platônica de Marsilio Ficino em Florença, patrocinada por

Lorenzo de Medici; a de Giovanni Pontano em Nápoles; a de Pomponio Leto em Roma e a de Aldo Manuzio em Veneza.

rígida. Ainda que alguns destes colégios estivessem ligados a uma universidade, os maiores em geral eram autônomos e ofereciam em seus programas o ensino trilíngue, latim, grego e hebraico, diferenciando-se das universidades, cuja maioria ainda priorizava a formação de teólogos. Os colégios trilíngues tiveram início na Itália, sob o patrocínio de alguns banqueiros ou membros da nobreza, como os Medici e os D‟Este. Difundidos em outros países, estes estabelecimentos contribuíram para a revisão que provocou a cisão dogmática na Europa, do evangelismo ao luteranismo, e também para a divulgação das obras literárias da Antiguidade, que constituiriam o cânone dos clássicos recuperados pela filologia. (LAFAYE, 2014)

Os patrocínios estenderam-se também às primeiras edições de manuscritos gregos e latinos resgatados do antigo império bizantino, com os quais muitas bibliotecas foram revitalizadas, primeiro na Itália, depois em outros países da Europa. Sob o patrocínio de Lorenzo de Medici, em meados do século XV, foi que Janus Lascaris trouxe de Constantinopla para Florença manuscritos de mais de duzentas obras gregas, das quais quase metade eram desconhecidas até então. Além disso, Lorenzo contratou escribas e ilustradores para copiar os manuscritos e divulgar o conteúdo da maneira mais ampla possível, oferecendo cópias a outras bibliotecas e instituições, dentro e fora da Toscana. (HIBBERT, 1993, p. 139-40)

O interesse pela língua grega não fez diminuir o valor do latim, cuja variante culta foi também uma revivificação feita pelos eruditos humanistas, através de manuscritos importantes, como as cartas familiares e outros discursos de Cícero, e também a Retórica a Herênio, ao qual era atribuída até 1491. A Retórica a Herênio, composta entre 86 e 82 a.C., é tida como a mais antiga arte retórica escrita em latim na Antiguidade e uma das que mais circulou na Idade Média, em códices que incluíam textos de Cícero, sendo-lhe atribuída a autoria, durante muito tempo, possivelmente por este motivo.

Para os medievais, o aprendizado do latim, como vimos, estava ligado a necessidades práticas, como escrever cartas (ars dictaminis), compor discursos e realizar tarefas de ordem administrativa e eclesiástica. Para os humanistas, segundo Iensen (1998, p. 93-4), além destas funções instrumentais, o latim tornou-se um meio de distinção, em que dominá-lo, no seu melhor estilo clássico, correspondia ao aumento do valor social dos seus usuários.

As obras de Cícero e os poetas, em especial Virgílio, Horácio e Ovídio, encabeçam o cânone dos modelos (exempla) dignos de serem imitados, pela sua beleza de composição, segundo os humanistas. Cada vez mais, novas gramáticas foram produzidas para o ensino deste latim renovado. Renovação linguística que, segundo Brandão (2000), não objetivava defender o latim contra o vulgar, mas contra a autoridade medieval, que impunha valores eternos e absolutos; é nesse sentido que os humanistas, com sua mentalidade crítica, “afirmam não ser o conhecimento algo já dito definitivamente, mas que se conquista e se reexamina continuamente no diálogo com os autores clássicos” (p. 34), frente aos quais se definem sem se confundir.

Por isso, se a sabedoria estava nos gregos e latinos, com cujas ideias poder-se-ia reconstruir a história, era preciso que a língua deles fosse libertada das fórmulas escolásticas. Eliminaram-se, então, no léxico, as domesticações e adaptações vocabulares e em seu lugar foram postas palavras latinas; e para os termos latinos que haviam sofrido alterações e simplificações, foram resgatadas as suas formas autênticas, como, por exemplo, os ditongos clássicos ae e oe, que haviam sido reduzidos às vogais simples [é] e [ê]. (IENSEN, 1998, p. 108-10)

A reforma do latim e a preocupação com a elegância estilística gerou algumas querelas entre os humanistas que defendiam o classicismo e os que o consideravam um tanto excessivo, principalmente em relação aos textos filosóficos, para cuja compreensão clara do sentido julgavam que o requinte formal não era relevante (KRAYE, 1998, p. 191).

Mas, apesar das objeções, o latim continuaria sendo, por muito tempo ainda, a língua culta de maior prestígio em toda a Europa, tanto que até mesmo muitos dos que se opunham a ele, em favor das línguas modernas, valiam-se dele como instrumento, quer por seu valor simbólico, quer por questões pragmáticas. (BURKE, 1995) Humanistas como Erasmo de Rotterdam e Juan Luis Vives, por exemplo, que defendiam o uso dos vernáculos, escreveram suas obras em latim para que pudessem ter suas ideias divulgadas, porque esta era, naquela época,

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