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2 BAIRRO PORTUÁRIO: SEU COTIDIANO, SEUS HABITANTES E

2.2 A CONDIÇÃO DE HIGIENE: O QUE PRECEDE AS OBRAS DE

2.2.2 As lutas contra as doenças e o alerta médico

Havia uma preocupação social com relação à condição da cidade. Foi dentro dos jornais que começou a circular a existência de formas com que o poder público pudesse atuar eficazmente, assim, podendo vir a melhorar a salubridade da cidade. Foi invocado no dia 30 de novembro, pelo jornal Correio do Recife, o Decálogo de higiene integral de Tolstoi122, que havia sido publicado recentemente pelo autor em sua terra. Tal atitude do jornal mostrava a apreensão que existia com os hábitos, maneiras e costumes de sua população. Usava-se das palavras para evitar as doenças e, principalmente, um surto epidêmico que pudesse acontecer. Os periódicos, às vezes, ironizam a condição sanitária, já que de tanto haver reclamações e não surtir efeito o que restou foi satirizar da situação com termos como “Muito limpo”, para relatar localidades como a do beco da rua do Apollo que desemboca no oitão da Caixa Econômica, e dizia que era um local merecedor da visita da limpeza pública. Há também reclamações de outras localidades que se tem uma condição de higiene precária, precisando urgentemente de uma provisão do poder público123. A ironia era forma que se encontrava para denunciar os problemas que pareciam não ter resolução.

Era notório, ao se ler as páginas dos jornais, que existia na população um pavor, a de ser afligidos por um novo surto epidêmico. Levando em conta as condições na qual a cidade se encontrava, que pudemos verificar nos periódicos da época, não era de se estranhar que houvesse proliferações de tal mal. Deste modo, não demorou muito para o Recife atravessar um novo surto que fez com que a cidade se contaminasse de “vírus” e diversas moléstias contagiosas. Com um porto aberto e ao aguardo da chegada dos navios com mercadorias e pessoas, encontravam-se, infelizmente, no bairro que se ligava a região portuária, muita sujeira, falta de saneamento e um grande número de pessoas nas ruas, desta forma tendo um franco acolhimento paras as novas demandas de pestes que viam nas embarcações, nos passageiros e mercadorias, que terminava se espalhando pela cidade.

122 O decálogo de Tolstoi eram os seguintes: “1º Viver no ar fresco dia e noite; 2º Fazer exercícios todos os dias

ao ar livre, trabalho ou passeio; 3º Beber e comer moderadamente e simplesmente. Leite em vez de álcool; 4º Preparar-se contra o frio, levando se em água gelada. Banho quente na segunda feira; 5º Usar roupas leves e largas; 6º Habitar uma casa seca, espaçosa, isolada, ser proprietário! 7º Asseio rigoroso, mesmo no moral, remédio conta as epidemias; 8º Trabalho regular intensivos, consolador na desgraça preservativo das doenças do corpo e do espírito(depressão?); 9º Depois do trabalho evitar as distrações bulhentas. Ócio em família, Noite para dormir; 10º Fazer ações benfazejas.”

Além da entrada das doenças pelo porto, Wissenbach124 nos alerta que as epidemias batiam de frente com a organização das classes populares: para o controle das doenças, dever- se-ia levar em conta a fixação dos moradores em suas residências, já que os pobres não passavam muito tempo no mesmo lugar, sendo que, muitas vezes, o problema não era o poder público e sim a falta de higienização dos domicílios, ou de quando eram submetidos às campanhas de vacinação obrigatórias e não eram imunizados. As autoridades faziam o que estava ao seu alcance, mas para a população não faziam relativamente nada que pudesse resolver ou pelo menos amenizar a situação, enquanto a morte andava pelas ruas da capital.

A condição sanitária das ruas, segundo o discurso da época, terminou se alastrando de um bairro para outro, chegando a atingir os bairros mais centrais. O poder público fazia o que estava dentro de suas possibilidades, fazendo campanhas mensais de vacinação e revacinações, visitas aos domicílios, como também da polícia sanitária, nas residências e estabelecimentos comerciais para ver como guardavam os produtos alimentícios, além de produzirem um grande número de vacinas para ser aplicados tanto no Instituto Vacinogênico125 do Recife quanto nas residências, como podemos constatar nos quadros (7, 8 e 9) da Repartição de Higiene do estado.

Quadro 7 Atuação mensal da

Repartição de Higiene do Estado 1909

Mês V isi ta do m ici lia re s V isi tas da p ol íc ia san it á ri a V isi tas da vi g ilânci a m edi ca V aci naçõ es R evac ina çõe s D es inf ec ções D ist ri bu ídos tub os d e l inf a vacc ín ia Int im ões p ara m ed idas de hi g iene Inuti lizaç ã o de gê nero s al im en tíc io s R em oçã o Int er d içã o de c asa Janeiro 805 759 46 700 60 110 - 176 3 - -

124 WISSENBACH, Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: Dimenção de uma privacidade possível. In.:

SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada do Brasil 3 – República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo. Ed. Companhia das letras. 2006. p. 106.

125 Segundo Monteiro “Em 1896 foi criado, no governo de Barbosa Lima, o Instituto Vacinogênico. Inaugurado

por Otávio de Freitas, o instituto era mais bem equipado e com melhores acomodações. Localizava-se na rua Fernandes vieira com quatro chalés, um para estábulo e mesa de inoculação; outro para máquinas de trituração da vacina e enchimento dos tubos; outro para a inoculação das pessoas e, por fim, o quarto chalé preparado para ser a moradia do Zelador. O instituto era anexo à Inspetoria de higiene. A princípio, o funcionamento do Instituto ficou prejudicado devido às medidas econômicas inauguradas no governo do Conselheiro Correia de Araújo. A situação só melhorou no governo de Desembargador Sigismundo Gonçalves, que destinou um crédito orçamentário para o órgão em questão”. In.: MONTEIRO, Op. Cit. p. 41.

Fevereiro 780 733 47 675 92 112 1051 217 5 - - Março 948 895 53 968 91 136 1398 279 4 - 1 Abril - - - - Maio 848 775 73 889 103 80 1142 229 2 - - Junho 848 777 71 693 130 69 651 191 2 - - Julho 801 695 106 920 150 73 934 200 2 - 5 Agosto 886 786 100 739 159 115 1630 259 4 3 - Setembro 876 780 96 966 86 92 1072 275 1 - 1 Outubro 110 0 986 112 820 87 263 1896 476 3 - - Novembro 819 705 114 54 81 245 240 787 4 - - Dezembro 866 761 105 587 101 229 - - 3 - - TOTAL 9.5 77 8.652 923 8.011 1.140 1.524 10.014 3.089 33 3 7

Fonte: Jornal A Província de fevereiro de 1909 a janeiro de 1910. Quadro 8

Desinfecções por doenças durante o ano de 1909

Quadro 9

Utilização de linfas vacínicas durante o ano de 1909 pelo instituto vacinogênico

Preventivas 782 Produzido 15.081

Varíola 478 Vacinação 809

Tuberculose 157 P/ repartição geral de higiene 13.072

Bubônica 33 Consumido no instituto 2.009

Sarampão 21 Inoculação de vitelo 100

Febre Amarela 10 Fonte: Jornal A Província de fevereiro de 1909 a

janeiro de 1910.

Gripe 4

Fonte: Jornal A Província de fevereiro de 1909 a

janeiro de 1910.

Como podemos analisar nos quadros (7, 8 e 9), existia uma ação do poder público, uma tentativa de combater os problemas relacionados às doenças que assolavam a capital pernambucana e o bairro do Recife pela vacinação. Mesmo que houvesse uma produção de 15.081 vacinas, 8.011 vacinações durante o ano e 1.140 revacinações, além de todos os outros trabalhos feitos pela Inspetoria de Higiene do estado, não era o suficiente para resolver os problemas se for comparado com a população da cidade do Recife, mesmo sendo um grande esforço do governo. Quem se aproveitava dessa dificuldade eram os jornais para divulgar o lado frágil da política pública.

Os veículos de comunicação mostravam o sofrimento dos moradores da localidade, tentando fazer matérias apelativas para a comoção do governo e dos órgãos responsáveis: “...entristece-nos o descaso que merecem as causas, os factos que revertem em benefício desse povo que paga para viver eternamente amargurado, nú, faminto, implorando a misericórdia

dos seus irmãos, filhos dos demais estados da Federação126”. Entre as doenças que assolam o Recife nesse momento, a peste bubônica é uma das que mais levou pavor à sociedade, deixando um rastro de morte. Segundo Octavio do Freitas, no boletim demográfico correspondente a quinzena de 1 a 15 de outubro do corrente ano, faleceram 320 pessoas no Recife, sendo 7 de peste bubônica, 27 de varíola, 8 de sarampo e 10 de gripe, não comentando as demais doenças127.

A varíola era outra doença que acometia a cidade e fazia-se preocupar, já que normalmente as suas epidemias sucedia-se em intervalos de tempo relativamente grande, entre anos, sendo que nenhuma tão devastadora quanto a observada entre os anos de 1908 - 1909, causando um total de 9.046 óbitos por febre eruptiva128. As doenças se alastram pela cidade de acordo com a falta de higiene que encontram nas ruas e nas residências, situação propicia para qualquer mal se transformar em epidemia. Mas, segundo Octavio de Freitas, o caso da varíola era diferente:

“Em primeiro logar está a varíola: - só contrae esta molestia quem quer pois, todo o mundo sabe (taes e tanto são os escriptos vulgarisadores a respeito) que a vaccina immuniza-nos da variola, não se conhecendo contra indicação de monta a sua inoculação.

Como já disse em artigo anterior, a Inspectoria de Hygiene de Pernambuco está convenientemente apparelhada a respeito deste meio prophilatico: - a vaccina e preparada a larga manu; doze a dezeseis vitellos vacciniferos fornecem três a quatro mi tubos de polpa vaccinica glycerinada, mensalmente, podendo cada tube preserva cinco a seis pessoas, ou seja 20 a 24 mil vaccinados por mez, alem dos que desejarem receber o liquido immunisante diretamente do animal inoculado, o que têm o direito de fazer tres vezes por semana.

Mais do que sufficiente, vê-se, é o material fabricado...129”.

Com os argumentos que foram apresentados a partir desse recorte de jornal, mostrou- nos que nem todas as doenças que afligiam a época possuíam relação direta com a insalubridade da cidade, mas que havia também um problema de conscientização da população. O médico Octávio de Freitas, em conjunto com Afrânio Peixoto, organizou estudos que diziam que o problema sanitário não era uma simples questão de meteorologia, de condições atmosféricas e geológicas, de influências telúricas, mas sim que se poderia chamar

126 CORREIO DO RECIFE, 18 de novembro de 1909. p.1.

127 Dados retirado do Jornal Correio do Recife do dia 18 de outubro de 1909. 128 DIARIO DE PERNAMBUCO, 11 de junho de 1911. p. 1.

mesologia social a todos os maus hábitos, vícios e prejuízos que dominavam o espírito de grande parte da população130. Sabendo dessa situação, o médico Octavio de Freitas preocupando-se com a mortalidade elevada que a cidade apresentava escreveu ao jornal o seguinte: “Morre-se muito, é certo e, o que é mais interessante e mais deve empolgar a nossa atenção, esta alta letalidade de há muito se vem conservando constantemente nos cimos, sem intermitências de baixas desopressoras ou desasphixiantes131”. A sua preocupação com os óbitos ficou clara nos boletins de falecimento da capital pernambucana do ano de 1901 até 1910, que o mesmo apresenta no jornal como denuncia: em 1901 houve 6.498 óbitos; em 1902 – 6.424; 1903 – 6.148; 1904 – 10.210; 1905 – 9.857; 1906 – 6.976; 1907 – 8.068; 1909 – 7.472; 1910 – 9.043132. A população do Recife, entre o período citado, variava entre 190 a 200 mil habitantes, deixando claro o elevado índice de mortalidade.

Outro levantamento de dados apresentado por Octavio de Freitas foi dos coeficientes de mortalidade do período citado, este que oscilara em semelhante período da seguinte maneira: 1901 – 34,2 óbitos para cada mil habitantes; 1902 – 33,6; 1903 – 32,0; 1904 – 52,9; 1905 – 50,8; 1906 – 35,7; 1907 – 41,1; 1908 – 38,5; 1909 – 37,3; 1910 – 45,2. A elevada taxa de mortalidade tem como seu principal meio de propagação a falta da higiene, tanto das ruas quando das residências, mas haveria algo que o governo poderia fazer para resolver o problema? O saneamento do Recife apresentou-se como solução que faria diminuir os óbitos dentro da cidade.

“veremos que aqui, onde o coefficiente de mortalidade tem oscillado, em media, de 35 a 36 obitos por milhar de pessoas vivas, a mortalidade e reduziria a 15 ou 16, sendo assim poupadas annualmente, pela bemfazeja acção da drenagem bem feia da cidade, 4000 vidas, mais ou menos, o que me parece um facto de inestimável valor133”.

Toda a sociedade pernambucana via a necessidade de se fazer reparos no sistema de esgoto da capital, que também era sabido pelo governador e as juntas responsáveis, sendo que o empreendimento era de um custo bastante alto e a situação em que os cofres públicos se encontravam não permitia que fosse feito imediatamente. Fazer um empréstimo aparentava-se

130 VIANNA, Op. Cit. p. 115.

131 DIARIO DE PERNAMBUCO, 11 de julho de 1911. p. 1.

132 Os dados apresentados do ano de 1901 a 1904 foram retirados da página 55 do livro O clima e a mortalidade

da cidade do Recife, do médico Octavio de Freitas e dos anos sequentes foram matéria ao DIARIO de Pernambuco intitulada Cotejando os Obtos do mesmo autor, que saiu no dia 11 de julho de 1911. p. 1.

como uma solução, relativa ao esgoto do Recife e do bairro portuário, mas, ao mesmo tempo, era um problema para a economia do estado, sendo uma “faca de dois gumes”. O governo, mesmo sabendo das más condições econômicas, entendia que era preciso fazer o empréstimo para as necessárias obras. Após a decisão, a população pede que o dinheiro seja realmente empreendido para as obras, uma vez que é de grande importância para a saúde dos recifenses, e que não seja esbanjado e nem usado para beneficiar amigos dentro da política134. Antes do governo de Herculano Bandeira, já se via a necessidade de se sanear a cidade, como afirma Miranda135: “Em 1907, devido à precariedade do estado sanitário da cidade, autoridades do Estado elaboraram um plano no sentido de sanear o Recife”. O primeiro plano para o saneamento da capital pernambucana é feito ainda no governo de Sigismundo Gonçalves, que antecede o de Herculano Bandeira, e já se havia discutido a proposta de revitalizar o sistema de esgoto da capital:

“Escolhida uma comissão chefiada pelo distinto engenheiro DOUGLAS FOX, este no devido tempo, apresentou circunstanciado relatório e se logo não se deu início as gigantescas obras, muito se discutiu o assunto, considerado por todos de vital interesse, aplainaram-se dificuldades, de modo a torna-lo esplendida realidade em curto prazo.

Efetivamente, foi um dos primeiros atos do atual governador, o exm. sr. HERCULANO BANDEIRA, a objetividade deste insofreável ideal e por uma feliz e rara inspiração, coube ao laureado dr, SATURNINO DE BRITTO a chefia do serviço136”.

As elites locais já pressionavam o governo para que o Recife se adequasse aos padrões do progresso e “civilizador” tão almejados, assim como fez a capital federal, o Rio de Janeiro. Inúmeros intelectuais, médicos, bacharéis, engenheiros chamavam a atenção para a necessidade da realização de uma transformação da cidade, das condições sanitárias e do porto137. Ainda no primeiro semestre de 1909, houve o Primeiro Congresso Medico de Pernambuco, onde se juntou diversos médicos que puderam apresentar suas análises sobre a questão urbana, com relação à questão da saúde pública, como os trabalhos de Octavio de Freitas “Importância do registro Sanitário das habitações como instrumento de defesa hygienica nas collectividades”; Torres Cotrim “Qual o systema de Esgotos mais convenientes

134 CORREIO DO RECIFE, 06 de julho de 1909.

135 MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. Um urbanismo excludente: O caso da Capital Federal e do Bairro do

Recife no início do século XX. Revista de pesquisa histórica – CLIO. Recife-PE. EDUFPE. Volune 1 – Nº 20. 2002. p. 164.

136 DIARIO DE PERNAMBUCO, 11 de julho de 1911. p. 1. 137 MIRANDA, Op. Cit. p. 164.

a cidade do Recife” e os de Chermont “Casas para proletário”, trabalhos esses que tiveram a sua importância para incentivar o processo de higienização e modernizador da cidade. Contudo, é durante o governo de Herculano Bandeira que vai se iniciar o processo de transformação do centro recifense, sendo no ano do início da reforma que se faz os primeiros contatos com Saturnino de Brito para a feitura da nova rede de esgoto do Recife. A população recebeu esperançosa a notícia e os jornais veicularam os comentários das ruas da seguinte forma, “que se for feita a obra, será o grande feito da administração do governador e os problemas do Recife serão resolvidos138”.