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PARTE 3 : EIXO Z TRANSPARÊNCIA

5.2 AS LUZES DO CINEMA

Assim como para o homem primitivo, no Cinema, a primeira fonte de Luz foi o próprio Sol. E essa não era uma escolha propriamente estética. Na verdade, não havia outra opção. Como comenta Blain Brown (2008, p. 03), "as primeiras emulsões eram tão lentas que apenas a luz do Sol era forte suficiente para uma exposição adequada". Em função dessa necessidade de Luz, os filmes tinham que ser expostos ao ar livre, durante os poucos períodos do dia em que havia intensidade de Luz suficiente para sensibilizar as películas.

Com o tempo, as películas fotográficas se tornarem mais sensíveis do que apenas à Luz intensa do Sol. Do exterior/dia com sol, as produções poderão acontecer em qualquer horário e local, mesmo no interior dos ambientes. E mais do que isso: o controle sobre a Luz irá permitir ao Diretor de Fotografia a exploração de todo um novo e vasto campo de possibilidades estéticas no uso artístico da Luz.

Assim, toda narrativa que o uso da Luz irá permitir está ligada diretamente ao desenvolvimento técnico dos equipamentos de iluminação. Desenvolvidos inicialmente para atender uma demanda comercial dos estúdios, que precisavam produzir mais e melhor seus filmes, esses equipamentos são incorporados pelo fotógrafo ao conjunto de possibilidades estéticas da imagem.

A importância de se falar das técnicas de iluminação e de como esses equipamentos foram sendo desenvolvidos e alterados historicamente no Cinema têm dois fundamentos: um objetivo (as propriedades físicas da Luz ligadas ao desenvolvimento da iluminação para a fotografia) e outro subjetivo (os resultados estéticos influenciados pelos modos como a Luz passa a ser percebida).

Por exemplo, sabemos que a Luz no período próximo ao meio-dia é bastante intensa e de cor clara. No final da tarde, percebemos uma luz mais alaranjada e menos intensa. Analogamente, o Diretor de Fotografia tenta repetir essas percepções da Luz, quando representa tecnicamente esses períodos do dia nos filmes, "traduzindo" essas percepções com o uso de refletores e acessórios cujas características físicas permitam produzir Luzes como aquelas vistas nesses horários do dia.

Cientificamente, a Luz se altera de maneira variada de acordo com os meios físicos que a produz. Se a Luz do Sol se altera em intensidade e cor a partir da passagem pela atmosfera e do ângulo de incidência em determinada região da Terra, então essas propriedades físicas precisam ser levadas em consideração quando da definição de quais equipamentos são capazes de criar luzes com temperaturas de cor similares àquelas encontradas na luz do Sol nessas horas do dia. Falando tecnicamente, de nada adianta, por exemplo, se utilizar de uma lâmpada com filamento de tungstênio, que gera uma Luz de cerca de 3200K (3200 graus Kelvin), de tom mais alaranjado, e imaginar que ela possa propiciar uma percepção da Luz como se fosse uma luz branca, intensa, ao sol do meio-dia, que tem temperatura de cor acima de 5000K. Culturalmente, se associa essas características físicas da Luz aos diferentes momentos do dia e aos eventos sociais a eles associados. Ao repetir isso na fotografia, se cria uma percepção naturalista da Luz, correspondente ao que se experiencia no cotidiano.

Toda discussão a respeito de interferências estéticas nessa percepção, alterando essas referências, passa também pelo entendimento de como as características físicas da Luz variam a partir de sua fonte geradora. Até hoje, e parece que isso nunca irá mudar, sempre se precisará de uma infinidade de recursos "tradutores" para a produção da Luz no Cinema, um para cada tipo de luz pretendida, na sua cor, intensidade, direção, entre outros fatores.

O desenvolvimento desses equipamentos revela apenas mecanismos de adaptação às características físicas da Luz e fornecem meios para que ela seja criada. No resultado, diferentes equipamentos criam luzes com diferentes características físicas, só isso. O resto é papel da cultura, que vem antes e depois disso. Antes, no entendimento científico que se fez da Luz e na escolha física dos materiais que emitem luzes com características específicas. Como traduzem. Depois, nos códigos de usos, nos modos de simbolização dessas luzes, na iluminação das diversas situações cênicas em que são aplicadas no Cinema. Por que traduzem.

Modernamente, durante as transformações por que passou o Cinema, o desenvolvimento de recursos técnicos de produção e controle da Luz permitiu ao fotógrafo a verificação de que esses meios permitiriam também uma gama variada de novas possibilidades estéticas. Da Luz natural, insuficiente para a fotografia do Cinema, já no início do século XX os filmes começaram a ser produzidos com

iluminação artificial, o que consolidou a importância do fotógrafo de cena, agora diretor de fotografia. Se por um lado, ele precisaria estudar e definir tecnicamente o uso da Luz, por outro, teve ampliada sua importância no resultado estético da imagem.

No Cinema, discutir a Luz é quase como discutir o próprio conceito de Cinema. Cinema é Luz. E triplamente: no efeito luminoso que causa a imagem durante sua projeção; no uso dos equipamentos de iluminação para a produção das imagens do Cinema; e também nos aspectos estéticos que o uso da Luz propicia para a narrativa.

Neste capítulo, o interesse é pela discussão a respeito da produção material da Luz na imagem do Cinema, mais precisamente, como o desenvolvimento de diferentes equipamentos de iluminação, capazes de produzir Luz com características físicas variadas, permitiram ao Diretor de Fotografia, por conseqüência, ampliar as possibilidades da concepção fotográfica e o modo de se iluminar uma cena.

Mas, o desenvolvimento desses equipamentos de iluminação nunca se deu de forma isolada ou apenas pautada pela necessidade artística do fotógrafo. Ao contrário, sempre esteve associado a um conjunto de outros fatores contextuais, dentro e fora do Cinema, e que demandaram ou ofereceram soluções para as questões de iluminação, como a mudança, por exemplo, do uso da Luz solar, nas produções do início do século XX, para a luz elétrica, e que viabilizaram comercialmente a expansão da produção de filmes.

Parte disso porque o rápido desenvolvimento de materiais fotográficos mais sensíveis, da química de revelação, das câmeras, dos mecanismos de iluminação e de projeção, entre outros, foi o que deu corpo ao conjunto de condições necessárias e favoráveis para que o Cinema surgisse e se expandisse naquele momento. Assim, o início do Cinema é pautado pelo desenvolvimento técnico e científico, atrelado a razões comerciais (o Cinema estava se mostrando um grande negócio) e também pelo experimentalismo estético e artístico dos primeiros realizadores. Além disso, toda experiência técnica da fotografia, surgida na primeira metade do século XIX, podia ser usada nos processos fotoquímicos de sensibilização e revelação da película cinematográfica.

A fotografia traz também à tona duas questões fundamentais: a primeira, a imputação imediata, na representação, da idéia de mimese, isto é, a representação fotográfica como uma cópia fiel do objeto real, um duplo perfeito do mundo. Essa

idéia foi dominante na fotografia no século XIX e adentrou o século XX. Outra discussão importante, e que vai servir de base para o fortalecimento de uma oposição entre técnica e arte, baseada na idéia de mimese, é a da não participação do fotógrafo como agente na produção da imagem, pela máquina. Com isso, abriu- se campo para uma crítica feroz da técnica e da máquina no campo da arte, rejeitando completamente o aspecto artístico das imagens fotográficas, uma vez que seus detratores questionavam: como poderia uma imagem ser artística sem a manipulação e o controle direto do suporte e dos componentes materiais da imagem pelo artista? É a distinção e a separação entre Arte e técnica que faz Baudelaire, ao classificar a fotografia como "simples instrumento de uma memória documental do real e a arte como pura criação imaginária" (DUBOIS, 2010, p. 29-30):

Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e devolva a seus olhos a precisão que falta à sua memória, que orne a biblioteca do naturalista, exagere os animais microscópios, fortaleça até com algumas informações as hipóteses do astrônomo; que seja finalmente a secretária e o caderno de notas de alguém que tenha necessidade em sua profissão de uma exatidão material absoluta, até aqui não existe nada melhor.[...] Mas se lhe for permitido invadir o domínio do impalpável e do imaginário, tudo que só é válido porque o homem lhe acrescenta a alma, que desgraça para nós! (BAUDELAIRE47 apud DUBOIS: 2010, p. 29).

Essa discussão, hoje superada, foi um fantasma que assolou a fotografia durante muito tempo. E, se a fotografia estática poderia ser essa testemunha ocular inquestionável, o que não dizer do Cinema, que, para além da imagem estática, oferecia a imagem expandida no tempo, recuperada e transcorrida diante dos olhos? É nesse contexto de discussão sobre a fotografia que o Cinema, enfrentando a mesma questão, irá surgir, mas, aos poucos, também revelar sua vertente artística.

Quanto às suas especificidades, e é isso que interessa aqui, o surgimento da representação cinematográfica irá exigir também a pesquisa e o desenvolvimento de equipamentos e tecnologias específicas para atender as demandas da fotografia de cena, sempre com o intuito de aumentar o realismo das representações, tornando sua ilusão (AUMONT, 2004) mais efetiva.

Isso significa que, da mesma maneira como nas imagens anteriores, em que as técnicas tornaram a representação mais realista, esses equipamentos e estratégias são também os potencializadores da imagem cinematográfica, tendo a

47 Charles Baudelaire, "Le public moderne et la fotografia", em Salon de 1859. Retomado em Ch. B.,

função de tornar a representação mais "transparente", aproximando-a daquilo que mostra.

Agora se tratará de definir o conceito-chave da tese: transparência cultural, pois é a partir dele que se discutirá o uso dos equipamentos e recursos de iluminação como "tecnologias tradutoras", bem como o estabelecimento de uma linguagem de uso da Luz no Cinema.