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As múltiplas agendas das mulheres negras soteropolitanas

4.3 Pensamentos de algumas Mulheres Negras na cidade de Salvador

4.3.7 As múltiplas agendas das mulheres negras soteropolitanas

As entrevistadas vêm descortinando que a intersecção mulher negra permite uma amplitude de ações que vai além das tensões de gênero. Elas demonstram que questões como educação, infância negra, saúde, entre outras são alvos de preocupação e mobilização, expondo, assim, que o movimento de mulheres negras, em Salvador, no seu início buscou se articular nacionalmente e pautar várias demandas que afligiam a população negra.

A entrevistada Saran fala sobre a necessidade de o movimento negro pautar a educação em sua pauta de reivindicações:

Tentamos discutir dentro do movimento negro a necessidade de trabalhar a questão da educação na escola, não só a questão da história e cultura africana e afro- brasileira, mas a questão da educação, o que acontecia dentro da educação nas escolas que a crianças não queriam ouvir falar sobre África, não gostavam do assunto, ela rejeitava essa discussão de história e cultura africana (informação verbal)134.

O tópico referente à educação vai ganhar suma importância para o movimento negro, tanto que no ano de 1988, no VII Encontro de Negros do Norte-Nordeste, o tema foi “O Negro e a Educação”, e Saran foi uma das debatedoras desse encontro no painel que tratava do “Perfil da Educação Oficial e Projeto – As escolas municipais descobrindo-se negras”.

Nesse encontro, a entrevistada fez falas fortes em defesa da educação (informação verbal)135, na qual afirmava que é a partir da educação que “[...] o poder consegue inferiorizar, dominar, separar, impedir a união do povo no Brasil. Então nós acreditamos que é através da

133 Entrevista realizada com Adeola. 134 Entrevista realizada com Saran.

135As falas estão registradas na publicação: VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste. Tema: “O Negro e a Educação”, 1988.

educação... que se dá fora da educação sistemática, que nós vamos conseguir reorganizar o povo negro”.

Saran também questiona, no encontro, se o currículo das escolas oficiais, que tem uma base eurocêntrica, favorece às crianças e aos adultos de descendência africana a construção de um pertencimento racial.

Outra entrevistada que dedica seu ativismo enquanto mulher negra ao campo da educação é Johari:

Foi meu projeto que deu origem a escola criativa Olodum, eu comecei com o falecido Neguinho do Samba136 uma coisa embrionária, mas necessária, inclusive

ele deu o insight. Ele disse: ‘a gente tem que fazer alguma coisa com essas crianças, porque elas vêm pra cá, ficam mexendo, danificando os tambores. Então tem que ensinar pra elas como fazer, como preservar, como cuidar’. Aí eu tive a ideia de escrever o projeto, fomos fazendo com recursos próprios, e depois conseguimos um pequeno financiamento do SESI, o SESI apoiou o pagamento dos professores. Você sabe ONG a maior dificuldade é você conseguir recurso para o pagamento do pessoal. Então essa coisa da sustentabilidade das ONGs eu acho uma falácia, porque a gente não tem como manter uma coisa viva, atuante sem ter como pagar. E a única coisa que eles não querem pagar às vezes é a questão do pessoal, mas recebemos recursos externos, do exterior e aí foi levando até o dia que eu saí, e continua, não acabou, continua a escola lá (informação verbal)137.

A entrevistada, ao falar da iniciativa em criar um projeto educacional para crianças no Olodum, expõe uma problemática enfrentada pelas ONGs, que é a falta de recursos para a sua manutenção. Contudo, a tenacidade fez com que o projeto tivesse continuidade até os dias atuais.

A entrevistada Nadifa traz em sua fala outras temáticas, provando a ampliação dos temas de luta das mulheres negras. Essa perspectiva é reafirmada por autoras como Hooks (1984), Crenshaw (1989) e Collins (1998), que trazem a interseccionalidade; estas apontam como possibilidades para se pensar as preocupações e a diversidade de ser mulher negra.

Participamos de muitas campanhas com relação a esta questão do direito da mulher, da saúde da mulher, a questão da saúde da mulher, as campanhas várias que nós fizemos com relação ao planejamento familiar, como essa questão do planejamento familiar era visto, a questão do aborto, a questão do corpo da mulher, das doenças que as mulheres negras especificamente estavam mais suscetíveis (informação verbal)138.

A questão do corpo da mulher negra e as várias decorrências eram também pautadas por essas mulheres. Jurema Werneck (2004), no artigo “Ou belo ou puro? Racismo, eugenia e novas tecnologias”, comenta sobre as mulheres das mais diversas etnias, excluindo

136Antônio Luís Alves de Souza, Neguinho do Samba (1955-2009), músico, criou o Samba reggae e da Escola Didá. Um dos fundadores do Grupo Cultural Olodum.

137 Entrevista realizada com Johari. 138 Entrevista realizada com Nadifa.

as brancas, que não podem experimentar a liberdade dos direitos reprodutivos. Ela afirma que a situação da mulher negra se torna mais agravante porque remete à época escravista nos continentes europeu e americano, nos quais havia um controle sobre a procriação com viés econômico. A autora denuncia que a partir do século XX, década de 1970, tanto nos Estados Unidos como no Brasil novas práticas de controle da natalidade da população negra foram realizadas (cirurgias, hormônios e pressão social). No próximo capítulo, essas pautas serão ratificadas ao analisar as discussões propostas nos Encontros Nacional de Mulheres Negras.

Nadifa fala da associação e parceria com outras mulheres, oriundas de sindicatos, cujas agendas estavam mais associadas ao mundo do trabalho. Entretanto, tais parcerias representaram formação coletiva dessas mulheres e de construção de uma identidade em raça e gênero.

Aquele momento foi muito importante para muitas mulheres daquele período não só do MNU mas de outras organizações, eu acho que conseguiram pautar essa discussão em torno da sua própria capacidade, e o que eu acho mais interessante foi que isso reverberou para outras mulheres, principalmente mulheres de novas gerações, eu acho que isso talvez tenha sido o maior ganho daquela articulação de mulheres daquele período, porque tinham outras organizações que nós éramos muito parceiras e a gente sempre estava junto, fazíamos coisas junto tipo o grupo de mulheres do Alto das Pombas, o sindicato das trabalhadoras domésticas que o MNU teve um papel fundamental na sua formação (informação verbal)139.

Na contemporaneidade, os sindicatos, partidos políticos e outras organizações têm, em sua maioria, núcleos de gênero e raça. Esses núcleos são frutos das discussões/ações pautadas pelo movimento de mulheres negras.

Saran desvenda a constituição de uma identidade política instituída em conjunto com uma identidade religiosa e que remete à África.

Mulheres negras principalmente que agora com o movimento negro de 90 pra cá passa a aceitar o candomblé, que nós viemos todos do marxismo os de esquerda e ninguém levava em consideração a questão religiosa como uma influência fundamental para a manutenção de nossa história aqui, e depois de certo tempo, não sei que milagre aconteceu, e as pessoas começaram a entender, pessoas que criticavam diziam: eu não respeito você porque você acredita em candomblé, porque você fica no Ilê Aiyê. E as pessoas do movimento negro quase todas fizeram obrigação, fizeram santo, eu fiquei não dei certo, mas eu sou iniciada, não sou reconhecida por muitos inclusive da minha própria casa porque minha iniciação é diferente, mas as pessoas mais serias como Mãe Estela me reconhece (informação verbal)140.

A entrevistada explica em que num primeiro momento o movimento negro vai preocupar-se unicamente com a questão raça/classe e com o tempo há uma percepção em

139 Entrevista realizada com Nadifa. 140 Entrevista realizada com Saran.

torno da religiosidade da matriz africana como promotora e guardiã da história e cultura da população de descendência africana.

Adeola expõe que há divergências entre as mulheres negras do Nordeste e Sul/Sudeste do país. Essa divergência de pensamentos credita-se às diferenças culturais e à forma com que foi pensado o desenvolvimento econômico do país, a partir das regiões brasileiras, o que acaba refletindo no modo de ser dos sujeitos. Abordarei esta questão brevemente, no capítulo que versará sobre os encontros nacionais de mulheres negras.

A gente vai viver também essa mesma hierarquização de dominação nesse conflito norte-sul, sul-sudeste, porque as mulheres do Sul têm a certeza absoluta de que elas são os gênios intelectuais e que as mulheres negras do Nordeste estão aqui para servi-las. Então, isso a gente vai vivendo cotidianamente aí vide o que acontece no meio do caminho, então, eu acho bom a gente começar a se debruçar pra estudar porque a gente precisa distinguir um conjunto de explicações para as futuras gerações (informação verbal)141.

Ao mesmo tempo em que a entrevistada faz uma forte crítica às ativistas negras do Sul/Sudeste do país, ela reflete sobre a necessidade de encontrar explicações para tais fatos e divulgar esses elementos. Tais divergências vão se revelar como pluralidade de pensamentos e mostrar que essas mulheres negras não são homogêneas; elas são diversas.

Percebemos que as demandas das mulheres negras de Salvador eram construídas de maneira atenta ao que acontecia no país, mas com autonomia e visão crítica. Elas se mostravam propositivas e exerciam forte lideranças enquanto ativistas. A seguir, notaremos como as ativistas de Salvador se articularam em nível nacional, participando dos I e II Encontros Nacionais de Mulheres Negras.

141 Entrevista realizada com Nadifa.

5 ENCONTROS NACIONAIS DE MULHERES NEGRAS

“Luiza Mahim Chefa de negro livres E a preta Zeferina Exemplo de Heroína Aqualtune de Palmares Soberana quilombola E Felipa do Pará Negra Ginga de Angola África liberta em tuas trincheiras Quantas anônimas guerreiras brasileiras” (Oliveira Silveira)142

No capítulo anterior, refletimos sobre a organização das mulheres negras e como elas instituíram seu pertencimento racial e ativismo a partir das relações com outros espaços a exemplo da educação formal, do movimento negro, movimento feminista, sinalizando que a luta contra as opressões as quais são submetidas têm caráter de gênero, racial e outros marcadores como: sexualidade, geracional e de classe.

Neste capítulo, serão analisados os I e II Encontros Nacionais de Mulheres Negras, ocorridos respectivamente em 1988, na cidade de Valença (RJ), e em 1991, na cidade de Salvador (BA). Esses eventos se tornaram locais de reflexão sobre a condição vivenciada pelas mulheres negras na sociedade e permitiram que elas formulassem estratégias que retroalimentassem suas lutas diárias contra todas as formas de explorações sentidas. Buscaremos também desvelar, fazendo referência à memória do poema acima, as "anônimas guerreiras brasileiras" - as mulheres negras ativistas sujeitos dessa pesquisa.

Sabemos que os sujeitos desta investigação são as ativistas baianas, no entanto, nesse capítulo além das entrevistas com as protagonistas dessa pesquisa, traremos também as falas de duas militantes da região sudeste, mais precisamente da cidade do Rio de janeiro, para que possamos apreender de que forma se dava a articulação das militantes baianas em

142 Nome completo Oliveira Ferreira da Silveira (1941-2009), poeta, escritor, professor, militante do Movimento Negro. Durante o período da Ditadura participou da criação do Grupo Palmares, no Rio Grande do Sul, e foi um dos idealizadores do Dia da Consciência Negra. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?p=31262>. Acesso em: 22 ago. 2015.

nível nacional. A escolha dessas mulheres é porque elas participaram dos dois encontros e tem representação nacional e internacional. Utilizamos nomes fictícios para as entrevistadas e coparticipantes.