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12 – AS MATÉRIAS-PRIMAS E O SEU APROVISIONAMENTO

Constituindo as Ferrarias do séc. XVII um estabelecimento transformador, ou seja, produtor de artigos elaborados a partir de uma matéria-prima base, previamente extraída e refinada, importa procurar conhecer quais as vias de aprovisionamento dos diversos materiais necessários à fabricação.

As Ferrarias incluíam-se no universo de estabelecimentos industriais que eram propriedade da Fazenda Real. Instalados por decisão régia, a principal motivação para a sua criação era, naturalmente, de carácter económico. Visavam evitar ou atenuar as constantes despesas que quotidianamente se faziam para apresto e aprovisionamento das armadas do rei, quer no tocante à Carreira da Índia, às armadas de guarda costa, ou para navegação das restantes rotas do Império, destacando-se a navegação para o Brasil. A Ribeira das Naus, a Cordoaria de Belém, os Fornos de Biscoito de Vale do Zebro, as fundições de artilharia do Cais do Carvão, a Casa da Pólvora, constituíram uma verdadeira cintura industrial em torno da cidade de Lisboa. O fomento real foi determinante para o estabelecimento destas manufacturas, assumindo a Coroa os custos de instalação e manutenção da totalidade dos exemplos referidos.

Noutras zonas do território procurou-se também colmatar necessidades, como é o caso das feitorias do linho cânhamo de Coimbra e Moncorvo, as tecelagens da Maia e de Vila do Conde, as ferrarias de Tomar e Torre de Moncorvo, a fábrica do breu em Leiria, etc.

Mestres e obreiros eram contratados no país, e incluídos nas folhas do Conselho da Fazenda. Nos casos em que as tecnologias eram inexistentes e a sua importação vital, diligenciava-se a contratação de especialistas no estrangeiro que, em regra, se radicavam no nosso país. No caso das indústrias com tradição no Reino, como a construção naval ou a tecelagem, essa dependência de tecnologias estrangeiras não se verificou, mas no tocante à metalurgia essa necessidade manteve-se ao longo de vários séculos.

Dos materiais necessários às Ferrarias, encontrava-se, em primeiro lugar, o ferro. Este provinha do Armazém do Reino, principal depósito dos metais adquiridos pela Coroa, quer por compra directa nos circuitos comerciais internos, quer por assento com os contratadores que o intermediavam a partir de países estrangeiros. Também o quinto dos metais, cobrado a todos quantos recebiam alvará para desenvolver actividade mineira, era encaminhado, à excepção do ouro e prata, para este Armazém. O produto da exploração desenvolvida nas Ferrarias de Tomar, que se dedicariam, numa primeira fase, exclusivamente à extracção, fundição e refino do ferro proveniente das diversas jazidas identificadas na região, era também, na sua totalidade, encaminhado para o Armazém do Reino, e disponibilizado para as diversas necessidades (pregadura para a construção naval, ferros de cadaste, fateixas, armas, etc.).225

Não obstante a importação de ferro da Biscaia, França ou Inglaterra ser prática habitual, as ferrarias de Tomar foram ganhando um particular protagonismo, com produções crescentes tanto em quantidade como em qualidade. De referir que o ferro ali extraído, com particular destaque para o obtido na mina da

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Ribeira Velha, era considerado de excepcional qualidade para o fabrico de canos para armas de fogo.226

Nunca se atingiu, no entanto, a auto-suficiência, quer na produção interna dos quantitativos de metal necessário, quer na capacidade de manufacturar produtos específicos como as grandes âncoras ou a artilharia de ferro, indispensáveis ao apresto das naus e galeões e que eram aprovisionadas em grandes quantidades e a altos preços nos mercados estrangeiros. A importação foi uma constante, e conhecem-se momentos em que se verificou a compra de prancha e chapa de ferro destinada a Barcarena.227 Também o indispensável aço era importado, havendo referências a compras, para estas

oficinas, do famoso aço de Milão.228

Outra matéria vital para o funcionamento das Ferrarias era o carvão vegetal. Apenas este tipo de carvão, produzido a partir da madeira, podia ser utilizado. Embora já se conhecessem, no séc. XVII, as propriedades caloríferas do carvão de pedra, com particular destaque para a hulha, e a vantajosa utilidade da sua queima nas fundições, o seu uso na forja de canos para armas de fogo era evitado pela experiência dos mestres. Sabia-se da possibilidade de o carvão mineral transmitir enxofre ao metal,229durante as

caldas necessárias ao acto de forjar, alterando-lhe as características e tornando-o falível.

O carvão de madeira era assim o combustível exclusivo, não obstante as constantes dificuldades na sua obtenção. A este respeito não devemos esquecer a forte pressão a que a floresta nacional estaria sujeita, considerando que a madeira de qualidade era matéria prima a preservar para a construção naval, a construção civil, o mobiliário, etc. O consumo doméstico, a indústria vidreira, a fundição, a saboaria entre outras actividades exigiam quantidades enormes de lenhas, que mesmo uma gestão atenta dos recursos florestais dificilmente conseguiria satisfazer.

As Ferrarias buscavam carvões elaborados a partir de madeiras duras, como o sobro ou o azinho, que garantiam a qualidade e o rendimento necessários. O abastecimento era assegurado a partir das matas régias, com particular destaque para a Serra de Sintra, cujo recurso está documentado ao longo de um largo período.230 Vários documentos atestam a prioridade dada aos mestres e superintendentes no

acesso às matas daquela serra, para obtenção de cargas de combustível que, em 1686, se contabilizavam em sessenta sacas mensais.231A frequência dos cortes indispunha os couteiros e criava conflitos, que

apenas a intercessão real e os bons ofícios do monteiro-mor conseguiam dirimir.232Com o aparente

esgotamento da floresta real na região de Sintra, outros locais passaram a garantir o abastecimento de carvão às oficinas de Barcarena como é o caso das matas do termo de Coruche.233

Tradicionalmente, a indústria de armaria elege a madeira de nogueira como material de excepção para

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226Cesar Fiosconi, op. cit., p. 74. 227Apêndice Documental,Doc. 50. 228Idem, Doc.s 72 e 73. 229Cesar Fiosconi, op. cit., p. 103.

230Apêndice Documental,Docs. 49, 67, 71, 72, 73, 87 e 88. 231Idem, Doc. 104.

232Apêndice Documental,Docs. 71, 72 e 73 233Idem, Doc. 76.

a execução de coronhas. Da árvore, de crescimento lento, apenas era utilizada a parte interior do tronco, que garantia madeira sã, de nervuras corridas. A resistência desta madeira, aliada ao seu baixo peso e a uma docilidade que facilitava o trabalho, eram características ideais que justificavam a escolha. Madeira nobre, requintada, insubstituível nas produções de grande qualidade, foi também utilizada em grandes quantidades pelos mestres coronheiros de Barcarena.234 A necessidade periódica de grandes lotes de

pranchas terá certamente dificultado o seu aprovisionamento corrente, pelo que encontramos, já durante a segunda metade do séc. XVII, o recurso a madeiras de qualidade inferior tais como o amieiro ou o freixo.235 São conhecidos repetidos pedidos para o corte de paus de amieiro, expressamente destinados à

execução de coronhas. A colheita destas madeiras realizava-se nas regiões de Coruche e Alcácer.