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13 – OS MESTRES BISCAINHOS E A TRANSMISSÃO DE TECNOLOGIA

Raramente o minério de ferro surge com teores de metal tão elevados que a sua extracção e refino não coloquem problemas especiais, só ultrapassados pela especial habilidade de mineiros e fundidores. O mesmo se passava com o trabalho do ferro cru, ou em massuca. A distinção entre as características intrínsecas de muitos tipos de ferro diferentes, apenas era possível pela apurada percepção dos mestres, formados desde jovens nas tarefas da forja. Verdadeiro trabalho de alquimista, o ferro distinguia-se pela «grã» mostrada na sua fractura, pela cor, pelos «olhos» que integrava, pela forma como aceitava as «caldas».236Apenas uma especial habilidade, desenvolvida durante um longo treino que se iniciava como

aprendiz, se prolongava como ajudante, oficial, só terminando, quando aprovado, em mestre, permitia alcançar o resultado final com a qualidade exigida.

A ausência de tratados escritos, aliada a um analfabetismo generalizado, faziam obrigatoriamente recair no ensino prático a transmissão de conhecimentos. Trata-se pois de um moroso e difícil processo de aprendizagem e formação, numa técnica em que os segredos eram passados oralmente (e muitas vezes com relutância) pelo mestre e experimentados no trabalho quotidiano, sempre com a sua advertência e acompanhamento. Considerando a inexistência de meios e equipamentos técnicos de ensaio e medição, todo o trabalho tinha de ser desenvolvido com base na percepção visual dos processos manufactureiros e, como já dissemos, na avaliação das características dos materiais, bem como do seu comportamento no fogo e na forja. Um ferramental específico era também indispensável na oficina, bem como o domínio do seu manuseio.

A produção nacional de uma grande diversidade de ferramentas e utensílios há muito que procurava garantir a satisfação da procura interna. O mesmo havia acontecido com a fabricação de armas de fogo. No entanto, a necessidade de fabricação de elevado número de diferentes tipos destas armas, levantava novos

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234Idem, Doc.s 67 e 84. 235Idem, Doc.s 84, 89, e 91. 236Cesar Fiosconi, op. cit., p. 82.

problemas técnicos que a limitada capacidade das pequenas oficinas metalúrgicas tradicionais não tinha qualquer possibilidade de ultrapassar.

O funcionamento e manutenção de uma grande oficina unicamente vocacionada para uma produção específica, albergando grandes e dispendiosos engenhos, exigia uma diferente organização do espaço e da mão-de-obra, recorrendo à necessária divisão do trabalho, característica dos processos industriais actuais. A necessidade de constituição de um complexo e estruturado grupo de trabalho, laborando em paralelo e de forma complementar, constituía uma contradição das relações de trabalho tradicionais, nas quais a cadeia de produção se fixava verticalmente na relação directa mestre - oficial - aprendiz. Julga-se que nas ferrarias de Barcarena terá laborado, em simultâneo, um número superior a vinte e cinco mestres e obreiros,237colocando vários mestres e oficiais de diferentes especialidades na dependência do mestre

contratador. Trata-se, ao que sabemos, de uma verdadeira inovação no nosso país, em arte tão complexa. O mestre contratador, dominando todo o processo de fabricação, coordenava o labor dos forjadores, que lavravam a chapa e executavam os canos, e dos serralheiros que lhes davam o necessário acabamento (verrumagem, fecho das culatras, limagem, execução de fechos, guarnições, etc.) Os coronheiros, exteriores aos processos de trabalho do ferro, surgiam aqui num papel complementar mas essencial, com igual perfeição exigida ao seu produto.

Justifica-se assim o cuidado sempre posto pela Coroa na necessidade de formar armeiros habilitados para um novo modo de produção, aliado à preocupação de não deixar parar as oficinas por carência da necessária mão-de-obra especializada. O cuidado posto na modernização das oficinas, e a contratação de mestres estrangeiros oriundos dos grandes centros de produção, é disso prova evidente.

Os mestres biscainhos, desde o início presentes nas oficinas de Barcarena, constituíram uma evidente via de importação de tecnologia que se prolongou por quase dois séculos. O seu contributo terá sido relevante para a instalação e operação dos mecanismos introduzidos nestas oficinas, e a sua influência terá perdurado ao longo dos anos, já que encontramos a quase totalidade destes mestres e oficiais radicados definitivamente em Barcarena.

A responsabilidade de ensinar oficiais portugueses, que estava cometida aos biscainhos, encontramo-la documentada nas instruções da Duquesa de Mântua quando manda aumentar o número de oficiais que trabalham nas ferrarias, na intenção de incrementar, tanto quanto possível, a produção, remetendo para o mestre Martim Descalza o encargo de os ensinar.238 Tal situação é corroborada por Juan de

Mendizabal, sucessor daquele mestre, quando, justificando a reclamação que faz do cargo definitivo, afirma também ter ensinado à sua custa muitos portugueses.239Esta referência ao ensino «à sua custa»

é particularmente significativa, quando sabemos que nos costumes da época se incluía a possibilidade de o mestre se fazer remunerar pela formação que ministrava ao aprendiz, considerando que este, incapaz de obrar produto válido, constituía um encargo para o normal funcionamento da oficina, enquanto

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237Apêndice documental,Doc. 59. 238Idem, Docs. 51, 52 e 53. 239Idem, Doc. 59.

recebia ensinamentos fundamentais para a sua actividade profissional futura.

Muitas dezenas de portugueses terão certamente passado pelas ferrarias de Barcarena, ao longo da sua existência, contribuindo claramente para uma difusão das práticas metalúrgicas em geral, e da produção de armas em particular.

14 – CONCLUSÃO

As dificuldades verificadas na instalação das indústrias metalúrgica e siderúrgica em Portugal nos séculos XV a XVII, estão bem presentes nos conteúdos de muitos dos documentos mencionados, não se deixando, no entanto, de constatar que, não obstante as permanentes carências de vária ordem, foram sempre estas ferrarias consideradas um recurso tecnológico válido e, durante um largo espaço de tempo, capaz de contribuir para o esforço económico do país, ao qual se colocaram sempre tantos e tão complexos problemas. Vários foram os momentos em que estas oficinas tiveram acções determinantes para a nossa História, vitais para a nossa continuação como entidade política una e independente, reforçando produções, ultrapassando carências e vencendo dificuldades.

São, obviamente, ainda escassos os elementos que conseguimos recolher, e aqui apresentámos, relativamente àquilo que terá sido a existência e laboração das Ferrarias del Rey, em Barcarena. Os agora publicados só nos podem conduzir a uma conclusão: a de que ainda há ainda um longo caminho a percorrer, e que novos e mais completos estudos se tornam essenciais para o aprofundamento desta temática. O contributo que procurámos materializar neste trabalho suscita, naturalmente, um novo conjunto de interrogações que se traduzem em questões que julgamos pertinentes como, por exemplo: procurar identificar quais as razões políticas e económicas que determinaram o momento histórico em que se decide instalar as Ferrarias junto da Ribeira de Barcarena; situar o verdadeiro papel destas oficinas face ao conjunto das ferrarias portuguesas; aprofundar o conhecimento sobre a origem e a forma como foram veiculadas as técnicas aqui instaladas; e, enfim, verificar a eventual importância deste estabelecimento nos processos de divulgação e implementação a nível nacional das tecnologias industriais do ferro.

É claramente insuficiente o conjunto de dados de que dispomos sobre a constituição física deste espaço. Importa realizar estudos in situ que nos conduzam à sua completa identificação, procedendo ao respectivo levantamento e registando todos os vestígios que tenham persistido, situando, designadamente, o conjunto de construções que integraram o complexo oficinal.

O contributo da intervenção arqueológica não deixará de ser fundamental na recolha dos vestígios construtivos do edificado entretanto desaparecido, preenchendo seguramente lacunas que a pesquisa arquivística não poderá colmatar. Consideramos que a intervenção arqueológica, incidindo prioritaria- mente sobre os edifícios das forjas, bem como na área envolvente dos mesmos, poderá contribuir com novos e significativos dados de trabalho, definitivamente, vitais para estudos futuros.

um não lugar, algo que, fisicamente desaparecido, permanece no campo do imaterial, do inexistente. Os dados que pudemos reunir e aqui apresentámos, forçam-nos a concluir o contrário. Importa pois continuar este trabalho, prosseguindo a tarefa de identificação dos vestígios ainda conservados, mesmo edificados, reforçando o acervo de dados, físicos e documentais, que nos permitam uma reconstituição tão fiel quanto possível daquelas oficinas.

Não é menos importante aprofundar o conhecimento sobre os homens que tantos anos ali trabalharam e viveram. É essa memória que dá sentido e alma àquele local, importando recuperar as experiências, as relações laborais, as práticas de trabalho, os momentos de conflito ou de entreajuda, ou seja tudo aquilo sobre o que se constrói a vivência humana: de alguns desses momentos este trabalho dá já conta.

Aspecto importante que se impõe estudar adequadamente é o que se refere às produções, nomeadamente à tipologia das armas que, ao longo de dois séculos, se manufacturaram em Barcarena. O presente trabalho permitiu-nos referenciar novos tipos de armas produzidas naquelas oficinas, das quais importa identificar eventuais exemplares sobreviventes.

O valor patrimonial do conjunto designado por Ferrarias del Rey é, segundo cremos, evidente. Importa valorizá-lo nas diversas vertentes, realçando os planos histórico e técnico, e devolver-lhe o lugar que, por direito, lhe pertence na história das artes, dos ofícios e das técnicas, num dos campos mais ignorados das indústrias portuguesas.