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Ao viver como vivíamos, na margem, acabamos desenvolvendo uma forma particular de ver a realidade. Olhávamos tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora... compreendíamos ambos (HOOKS, 1984, p. 9).

Até aqui apresentamos elementos que tratam das relações raciais de forma geral, desde aspectos históricos, passando por elementos que marcam a condição dos trabalhadores industriais, até chegar no que chamei de “construção das identidades negras”. Dentro desta seção, a discussão do mito da democracia racial se fez importante para a compreensão da complexidade dessa identificação das pessoas negras no Brasil. Além disso, outros fatores influenciam esta complexidade e se somam às discriminações muitas vezes consideradas veladas, mas que marcam os “lugares” das pessoas negras no país.

Antes de iniciar as conversas com os sujeitos desse trabalho, pararia por aí, já que havia pensado o referencial teórico apenas tratando da questão racial, sem fazer nenhuma distinção de gênero ou tratar da aproximação entre outras categorias. Porém, já na primeira entrevista, percebi que tratar dos elementos relativos à mulher negra seria muito importante, uma vez que o processo de opressão que vivenciam as mulheres negras em suas vidas combina fatores de gênero, raça, classe e sexualidade de forma muito clara. Para as mulheres negras, em sua vivência cotidiana, existe a percepção de que mesmo reduzindo uma certa opressão, isso ainda pode significar que serão oprimidas em outras dimensões (COLLINS, 2016).

Rodrigues (2013) também destaca que a raça não era uma categoria comum nos estudos que focalizavam a questão das mulheres. Complementando essa visão, Gonzalez (1983) destaca que estudos que focam apenas nas discriminações de gênero e classe acabam por contribuir para a perpetuação da condição das mulheres negras, que vivem assim um contexto de tripla discriminação. Ribeiro (2017) utiliza a expressão “o outro do outro”,

para marcar a convergência de opressões que ocorre. Nesse sentido, é importante ressaltar, assim como trata Davis (1997), que não existe uma hierarquização das opressões:

Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a classe é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras. (DAVIS, 1997, p. 8).

Nesse sentido, Gomes (2011) destaca que cada vez mais, ao observarmos a realidade brasileira e mundial, pode-se perceber que não é possível empreender uma luta contra o racismo, o sexismo, a homofobia, o neoliberalismo e a exclusão social de forma isolada. Além das questões relativas à inserção nos movimentos feministas e a luta das mulheres negras, Carneiro (2003) também chama atenção para a violência invisível que ocorre contra as mulheres negras, em especial no que tange ao tema da sexualidade.

Esse cenário que revela um ponto de vista único às mulheres negras, fez com que elas fossem as primeiras a perceberem a necessidade de articular as formas de opressão, sem criar uma hierarquia entre elas. Partindo desse ponto de vista, que trata Collins (2016), é possível perceber a mudança de abordagem promovida por estudos que se pautam no feminismo negro, mudando o foco da investigação, que antes tratava de explicar elementos de raça, gênero ou opressões de classe, para tratar dos elos entre esses sistemas de opressões.

No Brasil, assim como nos lembram Malta e Oliveira (2016), trabalhos de feministas negras brasileiras com Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Matilde Ribeiro, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Djamila Ribeiro, e tantas outras, como Juliana Teixeira E Josiane Oliveira, no campo dos Estudos Organizacionais, têm focado em aspectos da intersecção entre raça, gênero, classe e sexualidade e além de destacarem o aspecto da marginalização e da opressão que esse cenário oferece às mulheres negras, também apontam estratégias políticas de resistência à essa situação (SANTOS, 2007).

Rodrigues (2013) também destaca um maior número de trabalhos que tratam da interseccionalidade nos últimos anos, devido ao maior acesso de mulheres negras ao âmbito acadêmico, havendo uma mudança pequena, porém contínua no cenário das pesquisas de gênero, raça e classe no país. Porém, o autor ressalta como fator de preocupação a falta de continuidade e diálogo entre os trabalhos. Hooks (1995) destaca que intelectuais negras

sofrem com as suspeitas sobre a sua intelectualidade, uma vez que existe uma imagem construída a partir de ideias sexistas e racistas, que negam a possibilidade de ver mulheres negras como intelectuais.

Para esse trabalho é importante compreender a discussão trazida por Collins (2016), que apresenta o conceito de outsider within30, ou seja, a representação do lugar da mulher negra como alguém que se insere em diversos âmbitos, como insider, mas isso não se dá de forma plena devido ao seu ponto de vista específico, como ocorre no movimento feminista, por exemplo. Ribeiro (2017) aponta esse lugar como uma possibilidade e uma necessidade de tirar proveito dessa visão mais ampla que se configura devido às mulheres negras ocuparem esse lugar de marginalidade na sociedade. Bairros (1995) também trata dessa questão, apontando que esse lugar ocupado pelas mulheres negras não deve ser visto como subordinação, mas sim uma potencialidade, apresentada por esse ponto de vista distinto, devendo ser potencializada afirmativamente por meio de reflexão e ação política.

Aprofundando o conceito de outsider within, Collins (2016) destaca que por muito tempo mulheres negras participaram dos mais íntimos segredos da sociedade branca nas américas. A percepção de autoafirmação das trabalhadoras negras demonstra o poder branco sendo desmistificado, não sendo uma questão de superioridade intelectual ou mesmo talento o que sustentava suas condições desiguais, mas sim o racismo. As mulheres negras vivenciavam, portanto, uma situação de insider, mas também eram outsiders, ao perceberem que nunca fariam parte das famílias brancas.

O feminismo negro norte americano surgiu em um contexto de resistência e organização. Collins (2016 p. 101) define o pensamento feminista negro como “ideias produzidas por mulheres negras que elucidam um ponto de vista de e para mulheres negras”. Com isso, se torna inseparável a construção do conteúdo ao pensamento e às condições materiais daquelas que o produzem. É fundamental pontuar que por mais que o pensamento feminista negro possa ser registrado por outras pessoas, ele é produzido por mulheres negras.

Um segundo pressuposto dessa definição é que essas mulheres possuem uma visão singular, que possui pontos em comum quando falamos do grupo de mulheres negras. Nesse sentido, embora a vida enquanto mulher negra possa apresentar elementos comuns, a diversidade de

30 Tendo em vista que não existe uma correspondência que seja inquestionável acerca do termo na língua

portuguesa, assim como em Collins (2016), optei por manter o termo em inglês. Contudo, uma possível tradução apontada poderia ser “forasteiras de dentro”.

orientações sexuais, classe, idade, religião, entre outros fatores, acabam por moldar a vida dessas mulheres, apresentando resultados diferentes nesses elementos comuns. Portanto, temas considerados comuns podem ser vivenciados de formas diferentes. Por fim, Collins (2016) destaca que embora o ponto de vista de mulheres negras exista, ele pode não ter seus contornos claros para todas elas, sendo este o papel das intelectuais negras: trabalhar na difusão e estudo dessa questão, para uma maior percepção e combate desse cenário.

Também é importante destacar o conceito de autodefinição e autoavaliação apontado por Collins (2016), que se mostra importante para a criação de um próprio ponto de vista das mulheres negras acerca de sua condição, situação muitas vezes negada e silenciada, com a imagem do “normal” sendo definida pelo homem, branco, heterossexual. Além disso, trata também da rejeição da opressão psicológica internalizada. Se trata assim, de uma questão de sobrevivência.

Já no Brasil, Carneiro (2003) destaca a luta das mulheres como uma referência, apontando que, a despeito das inegáveis desigualdades que ainda se apresentam no mercado de trabalho, em especial no que se tratam as diferenças salariais, não se pode deixar de notar o avanço na diversificação em termos ocupacionais das posições que hoje ocupam as mulheres, fruto da luta dos movimentos feministas.

Ainda a autora aponta que durante muito tempo os próprios movimentos feministas se fechavam em uma visão eurocêntrica que fez com que “as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo continuaram no silêncio e na invisibilidade” (CARNEIRO, 2003, p. 118). A autora aponta o dado de que 48% das mulheres negras estavam no serviço doméstico, como um exemplo de que, mesmo com a expansão do mercado de trabalho, as mulheres negras sentem menos os impactos desses avanços.

Com relação ao trabalho doméstico, Teixeira, Saraiva e Carrieri (2015) apontam que culturalmente esse é um emprego feminino, marcado historicamente pelo processo de abolição da escravidão, uma vez que representou uma das ocupações nas quais foram alocadas as então escravas. Outra questão que os autores destacam em relação ao trabalho doméstico é sua baixa valorização em relação a hierarquias profissionais e sociais, em especial por ser um trabalho manual, que não está ligado ao “pensar”, não sendo exigido um alto nível de escolaridade.

Para lutar contra as opressões que marcam as vidas das mulheres negras, é destacada a ideia de “enegrecer o feminismo” (CARNEIRO, 2003, p. 118). Bairros (2000), ao apresentar um pouco do pensamento de Lélia Gonzalez, corrobora essa visão, ao destacar que o fato de não considerar a centralidade da raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade desconsidera-se toda uma história de resistências e lutas empreendidas a partir de uma dinâmica que envolve uma cultura ancestral que em nada tem a ver com o eurocentrismo presente em visões que tratam de uma mulher “universal”.

Ainda sobre essa discussão, Carneiro (2003, p. 120), aponta que, no momento em que as mulheres negras perceberam que a articulação de gênero não geraria uma “solidariedade racial intragênero”, isso levou-as ao embate no interior do próprio movimento feminista. O mesmo ocorreu dentro dos movimentos negros, que muitas vezes desconsideravam o aspecto feminino e as desigualdades das mulheres. Ribeiro (2017) destaca a importância da discussão empreendida por Carneiro (2003), mas chama atenção para a relevância de percebermos a heterogeneidade que circunda a categoria criada em torno das mulheres negras. Bairros (1995) também destaca que conceitos feministas que desconsideram questões de raça, classe e sexualidade, favorecem discursos e práticas voltadas para as necessidades das mulheres brancas, heterossexuais de classe média.

Outra questão levantada quando falamos das lutas das mulheres negras é o aspecto da representação, posto que são poucas as mulheres negras que ocupam cargos considerados de destaque (CARNEIRO, 2003). De um modo geral, assim como aponta Bruschini (2007), nos últimos anos, as trabalhadoras brasileiras têm experimentado avanços no que diz respeito às posições experimentadas no mercado de trabalho, em especial pelo avanço dos níveis educacionais. Contudo, quando adicionamos a categoria raça a essa análise, as mulheres negras são aquelas que possuem os menores índices. Portanto, é necessário pensar essas categorias de forma conjunta, sem buscar uma hierarquização das opressões, mas compreendendo suas relações.

Importante destacar, assim como apontam Malta e Oliveira (2016), que as plataformas digitais estão se tornando um meio de difusão de histórias sobre as discriminações vivenciadas por mulheres negras, criando uma rede de compartilhamento dessas histórias que foram silenciadas durante séculos. Hooks (1995) complementa essa visão em seu artigo sobre intelectuais negras, ao dizer que a atuação conjunta do racismo e do sexismo perpetuam uma imagem na consciência cultural coletiva, de que a mulher se insere na

sociedade com a principal função de servir; destacando assim, que as mulheres negras são tratadas como se fossem mais ligadas ao corpo que ao pensar. Contribuindo com o debate acerca da condição das mulheres negras no Brasil, Nascimento (1990) também destaca a hipersexualização da mulher negra como um elemento dessa dinâmica, na qual a mulher negra é vista como mais erótica ou ardente sexualmente, mas não é vista como alguém com quem é desejável estabelecer uma relação formal e institucionalizada.

Essa maior possibilidade que as redes sociais proporcionam de narrar suas histórias por parte das mulheres negras, demonstram como a população negra têm reivindicado o papel de protagonista de sua própria história. Essa questão também passa a se tornar mais forte no âmbito da academia, uma vez que as ações afirmativas têm possibilitado maior acesso da população negra à universidade (MALTA; OLIVEIRA, 2016). As autoras ainda acreditam que a utilização dessas mídias alternativas geram uma maior pressão na grande mídia, que cada vez mais pauta questões raciais.

Sendo assim, a possibilidade de narrar suas experiências contribui ativamente para desvelar o mito da democracia racial, uma vez que traz à tona a percepção de que o racismo, aliado ao machismo, não são representados por casos episódicos, mas é uma questão estruturante da sociedade. Escrever esse tópico representa uma exposição importante da questão do feminismo negro, a partir dos estudos de feministas negras. Acredito que essa questão seja fundamental para o desenvolvimento desse trabalho, uma vez que também será exposta a experiência de uma mulher negra, ao narrar sua história de vida. Porém, antes de tratarmos das análises, a próxima seção trará um detalhamento acerca da construção da pesquisa em termos metodológicos.

4 A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA

Essa seção irá tratar de aspectos relacionados à metodologia escolhida para a realização da pesquisa. Para isso, estruturei três tópicos: o primeiro trata do alinhamento epistemológico da pesquisa, já o segundo de uma contextualização sobre a utilização das histórias de vida nesse trabalho. Acredito que esse aprofundamento seja necessário para especificar a concepção que será trabalhada, em especial no contato com os entrevistados. Em seguida, apresento de forma mais detida as escolhas metodológicas que nortearam a pesquisa.

Ao longo da construção deste trabalho, inúmeras foram as questões que emergiram. Em um primeiro momento, entrar no mestrado, ter contato com novas (e variadas) perspectivas gerou um certo deslumbramento e também uma confusão muito grande. Neste sentido, Gaulejac (2004/2005, p. 65), ao tratar sobre a aproximação entre a Sociologia e a Psicologia e Psicanálise, aponta uma reflexão que se fez fundamental no caso específico desta dissertação: “Muitos pesquisadores apresentam uma contradição interessante, qual seja, admitem a necessidade de se abrir para a Psicologia e a Psicanálise, ao mesmo tempo que defendem firmemente um ponto de vista estritamente sociológico”

E era este o movimento que estava fazendo: tratar as histórias de vida como simples método para a coleta de dados, com um caráter quase alegórico, frente à análise macroestrutural das relações raciais que se impõem aos indivíduos. Tomar esta consciência, mesmo que de forma tardia para um processo de dois anos que se trata do ciclo da formação de um mestrando, mostrou-se fundamental. É neste sentido que acredito ser importante apresentar uma seção que apresente de forma mais detida apontamentos referentes ao alinhamento epistemológico que optei por seguir, antes de me aprofundar na metodologia trabalhada.