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5.1 História de vida de Clóvis

5.1.2 Histórias de trabalho, histórias de vida

5.1.2.3 Trabalho industrial

Após encerrar seu ciclo de trabalho como jovem aprendiz, Clóvis ajudou seu pai a construir uma casa, período no qual já havia abandonado os estudos e estava sem emprego. É interessante notar como esse elemento em sua vida corrobora com o estudo de Bernardes (1992, p. 28), uma vez que a autora destaca que, no contexto de famílias de camadas populares, “ao homem compete responsabilizar-se e executar atividades ligadas à conservação e construção da casa bem como de seu espaço externo”.

(28) E logo após terminar de construir essa casa eu arrumei emprego em uma indústria na cidade industrial, qual trabalhei 2 anos e 3 meses como operador de máquina, ajudante fabril depois operador de máquina depois... Aí nesse período que eu vivi um pouco os dramas, né, as dificuldades que os trabalhadores tinham de reivindicar os direitos, de você receber um salário justo pela função que você desenvolvia.

Após um período de aproximadamente quatro anos auxiliando seu pai a construir uma casa e já tendo deixado de estudar, Clóvis conseguiu seu primeiro emprego na indústria, no qual ficou 2 anos e 3 meses. No fragmento discursivo (28), já é possível notar que Clóvis percebia as dificuldades que viviam os trabalhadores.

(29) Na Belgo Mineira eu trabalhava em várias máquinas, tinha um setor que eu olhava 8 máquinas sozinho, né. E eu salário reduzido, mas a gente não reclama porque você precisa, né, adquirir mais experiência, né. Então dentro da Belgo Mineira eu adquiri muita experiência com pessoas experientes onde eu comecei a conhecer o movimento sindical, como é que era a luta dos trabalhadores, né.

No fragmento discursivo (29), também é possível perceber de forma explícita que Clóvis não convivia com as melhores condições de trabalho, mas elementos citados anteriormente nos permitem perceber que o fato de não ter experiência profissional e qualificação influenciaram para esse cenário. Também chama atenção o percurso semântico estruturado no trecho (29), que aponta para a forma como Clóvis menciona sua necessidade de se submeter a essa condição para adquirir mais experiência, relacionando-se com alguns trechos narrados ao tratar da qualificação, nos quais ele destaca que sentia a necessidade de uma melhor qualificação para viver melhores condições.

Além disso, o trecho é marcado pela referência que o entrevistado faz ao movimento sindical. A seleção lexical “onde eu comecei a conhecer o movimento sindical, como é que era a luta dos trabalhadores, né” (29) traz um aspecto interdiscursivo do Clóvis de anos à frente, o Clóvis dirigente sindical que reconhece a necessidade do movimento na luta dos trabalhadores metalúrgicos. Esse trecho tem grande influência das condições sociais de reprodução do discurso à medida em que o entrevistado relata seus primeiros anos como metalúrgico na visão atual, de um dirigente sindical próximo ao período de aposentadoria.

(30) Por infelicidade, é um dos traumas do meu trabalho, faltando 30 dias pro meu casamento, eu fui dispensado. Aí vem aquela dor, né, e agora? Casa ou não casa? Como é que faz? Aí procurei minha noiva e falei com ela: “tem um problema, a gente vai casar, mas eu tô desempregado, não tem como, vamo adiar o casamento” e ela: “não! Seja o que Deus quiser, nós vamos casar”. Aí pensei num sei se... Aí no pensar tudo isso resolvemos casar, enfrentar a vida, casamos e fui morar de aluguel na casa do meu sogro, pagava aluguel pra ele, mas tinha que batalhar.

O fim dessa primeira experiência de trabalho na indústria foi um trauma para Clóvis, fato explicitado no fragmento discursivo (30), no qual Clóvis destaca sua demissão com um dos principais traumas de sua vida. O tema da demissão e do casamento expressam um percurso da

necessidade do trabalho para a construção de família. A seleção lexical “não tem como, vamo adiar o casamento” mostra o aspecto interdiscursivo do homem que deve assumir as finanças da casa e, logo, a situação de desemprego seria um empecilho para o casamento, uma vez que cabe ao homem sustentar a nova família.

(31) Eu me lembro uma das áreas que eu me especializei foi é, na saúde do trabalhador é... e dentro do setor que eu trabalhava que é o setor fabril, que é fabricação de peças é ali onde o trabalhador sofria mais porque “a... é... o mal posicionamento, a postura porque às vezes você via um trabalhador lá operando uma máquina, ele tava sentado em cima de um caixote, ele tava com uma cadeira, mas aquela cadeira ele coloca mais uma compensação de alguma coisa pra ele dar altura, é... as chamadas gambiarra que a gente fala, né, pra ele, ele usava na máquina pra ele fazer ela produzir mais, né, as máquinas que estavam obsoletas que mesmo com ela tando em más condições de funcionamento o encarregado colocava ela pra funcionar, e o trabalhador acabava acidentando como aconteceu várias vezes, o cara perdeu um pedaço do dedo, esmagou a mão, né, fora as doenças ocupacionais por esforço repetitivo (...) Acaba atingindo o psicológico dela, que isso é o pior, que é chamada a psicossomática, que você soma a dor física com a dor mental que ela é aquela tortura, né, você tá doente o chefe fala que você tá fazendo hora, então a pessoas tinha que trabalhar doente por causa do emprego, aí ela se sujeitava as humilhações porque ela não podia perder o emprego, nesse momento ela perdia a saúde, ela perdia a... afetada o seu estado emocional e logo em seguida perdia o emprego, então era um dilema, e eu fui vendo aquilo e eu “não, tenho que fazer alguma coisa”.

Dentro do trabalho metalúrgico, uma das questões que mais chamavam atenção de Clóvis eram as condições de trabalho que eram impostas. Ver trabalhadores atuando em condições precárias de trabalho se tornou uma rotina, com isso, Clóvis sentiu o desejo de se especializar e atuar nessa área. No fragmento discursivo (31), ele reflete sobre as condições em que os trabalhadores estavam submetidos num discurso de dirigente sindical, porém aponta a persistência da “tortura psicológica” dos trabalhadores não apenas pela existência da dor física, mas pela incompreensão dos chefes e a necessidade de se manter no trabalho. Nesse trecho, o discurso da segurança no trabalho é defendido, e a indiferença dos chefes diante da saúde do trabalhador, combatido.

(32) Em 1996, você tinha 30% de uma fábrica de quase 800 trabalhadores acometidos de doença ocupacional, e a empresa não tava nem aí. Adoeceu? Ou você vai pro... ou você vai pro INSS ou você vai pro olho da rua. Uma parte foi pra rua, que não tinha condições, não tinha, conseguia provar a sua, a sua doença, né, ou os médicos negligenciavam porque não reconheciam o nexo causal, não faziam uma anamnese, que é um estudo é, dentro, é minucioso da situação daquele trabalhador e, não avaliar todo o seu histórico, os seus exames e aí ia negado aquilo até que ele perdia a paciência e acabava saindo ou era demitido. E eu abracei essa causa, mais uma coisa que eu tenho que abraçar e abracei essa causa.

Ainda no texto (31) Clóvis aponta que o setor de fabricação de peças era um lugar na empresa em que muitas pessoas eram acometidas com doenças ocupacionais, umas vez que é muito comum observar o mal posicionamento desses trabalhadores. Complementando essa visão, no trecho (32), ele aponta um dado: em 1996 quase 30% dos 800 trabalhadores da empresa em que trabalhava estavam acometidos com alguma doença ocupacional. Novamente, o tema da indiferença da empresa em relação ao trabalhador apareceu. Também chama a atenção a seleção lexical de termos como “nexo causal” e “anamnese”, termos técnicos que remetem ao conhecimento adquirido de Clóvis sobre o assunto.

(33) é dentro das oportunidade que eu tive de formação, de qualificação, é, dentro da política dentro da área sindical, eu sempre procurei estudar, ler muito, pra não poder fazer não cometer bobagem e não dar o meu direito pra empresa porque qualquer coisa que você fizer, você era suspenso, como eu já fui suspenso várias vezes, eu já levei balão de 10 dia, tomei balão de 3 dia, perdia salário porque cortava o meu salário e não era reposto, ninguém me pagava, alguma vez o sindicato pagou, teve outras que não, então é, então você coloca é, muito é... você fica exposto, mas é aquela situação ou você como funcionário da empresa dirigente sindical ou você faz o trabalho bem feito ou você é engolido ou você é engolido pela empresa ou você perde a credibilidade pelos trabalhadores, e a pior coisa que tem é quando o trabalhador que tá dentro de uma fábrica, ele representa tanto aqueles trabalhadores e ele não cumpre com o papel dele, ele cai no descrédito, a empresa não acredita nele, a empresa joga os trabalhador contra ele, e ele fica uma pessoa desmoralizada e ele não tem outra alternativa, ou ele vai embora ou ele se vende. E eu graças a Deus eu procurei enfrentar todo esse desafio.

Ao expor que “abraçou” a causa dos trabalhadores que eram acometidos às doenças ocupacionais, Clóvis já aponta para o início de sua atuação sindical. Sua atividade no sindicato é algo de que Clóvis se orgulha, por ter feito algo com o qual se comprometia, via uma razão. No fragmento discursivo (33), destaco a seleção lexical “levei balão”, que se refere a uma suspensão imposta pela empresa, na qual ele relata que já perdeu inclusive parte do seu salário, o que remete ao implícito pressuposto da importância dessa questão em sua vida, uma vez que Clóvis relata por diversas vezes suas dificuldades financeiras.

(34) É, quando te tira a possibilidade de fazer as coisas que você sabe fazer, que você pode fazer, que você tem qualificação pra fazer, quando eu fui, né, eu tive um infarto, né, e nesse infarto eu fiquei internado 9 dias no, no JK todo monitorado. Quando você ficava pensando o seguinte: “e agora?” Filho pequeno, os meus filho ainda tava pequeno, filho pequeno “E se eu não voltar pra casa?” Como que eu vou fazer? Como que vai ser o futuro da minha esposa com os filhos pequenos? Como que ela vai cuidar desses menino? Então a gente viveu um pouco disso tudo, mas a fé em Deus, ela é que nos dá força, te revigora, te dá sustentabilidade e visão de futuro, foi onde que eu falei assim: “eu vou superar, eu vou sair dessa, vou superar, vou passar por cima...”

Toda essa dedicação de Clóvis não afetou apenas sua relação com sua família, como vimos em tópicos anteriores, mas também o levou a um quadro de adoecimento, que culminou em um infarto. O fragmento discursivo (34) destaca esse episódio, no qual ele ficou internado durante 9 dias, e com isso repensou muitas coisas em sua vida, em especial em sua família. A partir dessa questão, também é possível perceber a emergência do tema do homem como o provedor financeiro da casa, a partir da seleção lexical “como vai ser o futuro da minha esposa com os filhos pequenos? (34). Remete, assim, ao implícito pressuposto do papel que Clóvis desempenhava na hierarquia familiar, sendo considerado o homem o provedor da casa, ao passo que o trabalho da mulher é bem aceito, mas visto como um “auxílio” (BERNARDES, 1992).

(35) Eu já tive que fazer isso, ir prum buteco e tomar todas e sair de lá chapado e sair de lá bêbado, é um momento de mim pra comigo mesmo, você não ter que preocupar, ninguém pra você não ter que desgastar com ninguém, aí no outro dia ressaca moral, né, aí, "ah eu exagerei", mas é aquele momento você tinha que fazer aquilo, mas tem gente que vai pra fazer isso e não volta, ele não tem a capacidade de, ele tem a condição de ir, mas ele não tem condição de voltar porque às vezes ele não é bem compreendido na própria família porque se às vezes o trabalhador que se ele tá, ele tá cansado, cobrança da chefia, te cobra produção, te, não te valoriza e quer qualidade de trabalho, mas não te dá qualidade de salário pra você ter condição de qualidade de vida porque sua família te cobra, aí você fala, mas eu trabalho aí, você chega no chefe, o chefe fala, no momento agora não, ah porque você não é capacitado, eu tô colocando isso mais no modo geral porque eu já ouvi isso aí onde que chega os problemas familiares, aí onde que chega os problemas do, do, do alcoolismo, da droga, da, do abandono da família, cara de estressa tanto que ele briga briga com a mulher, briga com os filhos e um dia ele explode e fala, quer saber de uma coisa, eu vou cuidar de mim e vai pro mundo e vai ver como a eu já tive vários companheiros conhecido assim, vai pro mundo da droga, a pressão é muito grande, é, foi pro mundo do alcoolismo e morreu no alcoolismo, tem umas que morreram, usando droga e álcool e aí é um problema muito crônico, aí perde a família e a esposa não quer, os filhos não quer e vai pro meio da rua, vai como diz o outro vai virar... aí não trabalha, é, isola dos amigos.

A sobrecarga de trabalho diante das várias funções assumidas por Clóvis - sindicato, comunidade do bairro, acólito da igreja católica - aparece no fragmento discursivo (35) como percurso para problemas psicológicos. A seleção lexical “mas tem gente que vai pra fazer isso e não volta” apresenta um aspecto interdiscursivo no momento em que Clóvis, apesar de admitir que usou o álcool como alternativa para a pressão que viveu nos anos de trabalho, distancia-se das pessoas que fazem isso com frequência e se deparam com o alcoolismo. Há um discurso de moral e de autocontrole. Nesse mesmo trecho, ele reflete sobre a dificuldade de diálogo com o chefe - “aí você chega no chefe, o chefe fala: no momento agora não” - e a influência dessa dificuldade para a instabilidade emocional do trabalhador.