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Como proposta para alcançar o objetivo dessa dissertação, que é “compreender e analisar

como as relações raciais se manifestam e são vivenciadas por trabalhadores industriais negros, a partir de suas histórias de vida”, foram gravadas as histórias de vida de Clóvis

e Leila. Compreendendo que a utilização das histórias de vida vai além de um simples instrumento de pesquisa, mas também representa uma forma de ver o mundo, ela se apresenta como um meio de reflexão, intervenção e transformação social (COLOMBY et al, 2016). Desse modo, uma discussão prévia acerca desse método foi feita considerando seus elementos teóricos e especificidades em relação a outras formas de coleta de relatos orais.

Essa é uma pesquisa de caráter qualitativo. Gibbs (2009) destaca que a definição desse tipo de pesquisa não é simples, contudo, os enfoques de pesquisas qualitativas possuem em comum o fato de permitirem explorar de forma mais profunda experiências individuais ou de grupos, podendo estar relacionadas a histórias biográficas ou práticas cotidianas e profissionais. Essa é uma das maneiras com que a pesquisa qualitativa se apresenta como possibilidade para explicar fenômenos sociais vistos “de dentro” (GIBBS, 2009, p. 8). O autor ainda cita a possibilidade de investigação de documentos e o exame de interações de comunicações.

As histórias de vida permitem captar o que acontece na interseção entre o individual e o social, permitindo também que elementos do presente se entrelacem com questões do passado. O que me interessa nesse sentido é o que aponta Bosi (1994): a narrativa da vida de cada um e a forma como ela é reconstruída e como é narrada. Lopes (2015) complementa essa visão ao apontar que contar a vida é um modo de se refazer, complementando que “o que se busca em um relato de vida não é um espelho do social, e sim o modo como o indivíduo se apropria dele, projetando a sua subjetividade” (LOPES, 2015, p. 73)

Como apresentei no tópico anterior, utilizar as Histórias de Vida pressupõe que uma série de questões sejam levadas em consideração ao longo da construção da pesquisa. Uma dessas questões é que se trata de um trabalho progressivo:

Ao considerarmos a pesquisa em história de vida não como uma busca de leis, mas como uma busca de conhecimento sobre determinadas situações, contextos, temáticas, como um trabalho de elucidação progressiva de uma realidade no movimento histórico das relações sociais, as questões metodológicas devem se seguir às pesquisas e não lhes preceder (BARROS; LOPES, 2014, p. 54).

Nesse sentido, a cada encontro com Leila e Clóvis, a pesquisa se constituía. Nas entrevistas de histórias de vida, ocorre o que Thiollent (1982, p. 86) chama de “situação flutuante”, que permite ao entrevistador estimular o entrevistado a explorar seu universo próprio, sem questionamentos estritamente direcionados.Essas entrevistas possuem como característica a empatia, ocorrendo uma relação mútua entre entrevistado e entrevistador. Por fim, cabe ressaltar que “o recolhimento das histórias de vida ocorre de fato quando há a transferência” (BARROS, 2015, p. 69), ou seja, quando de fato ocorre uma conexão entre o pesquisador e o narrador. Optei por apresentar um relato mais profundo da relação desenvolvida com cada um dos entrevistados na próxima seção, na qual serão apresentadas e analisadas as histórias de vida. Porém, destaco a seguir algumas características gerais de cada um dos sujeitos da pesquisa.

Foram, ao todo, 14 encontros para entrevistas. Desses, 6 encontros com Clóvis, que significaram 8 e 26 minutos de gravação, que foram integralmente transcritas. Os outros 8 encontros foram realizados com Leila, com um total de 7 horas e 30 minutos de gravação. Os nomes que apresento nesse trabalho, seja de Leila e Clóvis, sejam de outros personagens que se apresentem em seus relatos, são fictícios, no intuito de preservar a identidade dessas pessoas que se dispuseram a se abrir e contar suas vidas para que fossem analisadas.

Destaco também que Nathália, à época estudante de Ciências Econômicas na Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista de iniciação científica orientada pelo professor Luiz Alex Saraiva, me acompanhou em todos os encontros e foi parte fundamental desta pesquisa. Sua relação será melhor descrita nas seções que seguem, contudo, em muitos momentos, foi sua relação com os sujeitos desta pesquisa que proporcionaram uma aproximação efetiva, que marcou de fato a coleta das histórias de vida.

O primeiro contato para realização das entrevistas foi feito com Clóvis, ele tem 54 anos e à época da entrevista trabalhava em um clube vinculado ao Sindicato dos Metalúrgicos.

Clóvis tem uma filha de 24 anos, um filho de 22 anos e é casado com Maria. Cheguei a Clóvis por meio da indicação de Márcio, um colega de trabalho, na Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social – SEDESE. O primeiro contato foi realizado via telefone, para assim marcarmos o primeiro encontro presencial. Interessante ressaltar que Clóvis e este colega que fez a indicação trabalharam juntos, na Prefeitura de Contagem/MG. Neste momento da vida de Clóvis, ele já não trabalhava mais como metalúrgico, contudo, Márcio conheceu sua história e quando soube do trabalho que seria desenvolvido o indicou.

Logo no segundo encontro com Clóvis, entendendo a proposta da pesquisa, ele nos indicou que falássemos com Leila, com quem havia trabalhado ao longo de sua trajetória como metalúrgico. Leila tem 48 anos e atualmente trabalha em uma das sedes do sindicato dos metalúrgicos. Ela tem um filho de 14 anos e uma filha de 4 anos, atualmente mora com seu companheiro.

Não há um padrão definido para estimar o número de entrevistados quando se trabalha com histórias de vida. Colomby et al (2016) destacam, ao observarem as pesquisas desenvolvidas nos últimos anos na área dos Estudos Organizacionais, que consideravam como método as Histórias de Vida, que não há um padrão no número de entrevistados, com pesquisas que chegam ao número de 66 entrevistas. Porém, aquelas pesquisas que contaram com mais de 10 participantes, em sua maioria, utilizaram entrevistas semiestruturadas e não a concepção das Histórias de Vida em sua essência. Após o início da coleta das entrevistas, percebi a densidade de cada relato. Por isso, acredito que coletar apenas essas duas entrevistas foi ideal para os objetivos a que me propus.

Ainda tomando como base a pesquisa empreendida por Colomby et al (2016), ressalto as estratégias de análise mais utilizadas quando se tratam de Histórias de Vida, sendo a Análise de Conteúdo a que mais aparece nas pesquisas, com 13, seguida da Análise de Discurso, com 14 estudos. Como indicação, os autores apontam que “a utilização da Análise do Discurso e da Análise Interpretativa permite um maior detalhamento das histórias narradas bem como suas relações com o tempo e o espaço do sujeito preservando deste modo o seu protagonismo” (COLOMBY et al, 2016, p. 36).

É nesse sentido que proponho a utilização da análise de discurso em sua vertente francesa para a análise das histórias de vida que serão apresentadas. Trata-se de uma análise que considera também aspectos sociais de produção do discurso, sendo a palavra, conforme

aponta Bakhtin (2006, p. 99), o “produto da interação entre o locutor e o ouvinte”. Também considero que o discurso não é de forma alguma neutro, sendo necessário ir além da simples categorização dos dados, identificando e analisando os discursos enunciados explicitamente, implicitamente ou mesmo silenciados (FIORIN, 2003). Ao tratar das histórias de vida, Carvalho; Costa (2015 p. 28) destacam que “ a fim de compreender a relação que o indivíduo possui com sua história, é imprescindível que se analise o sistema social ao qual integra, o tempo em que se encontra e o espaço que ocupa, condicionando-o como ser histórico-social”. Questão que considero fundamental para optar pela análise francesa do discurso, por considerar que ela auxilia nessa compreensão, a partir dos pontos de análise que propõe.

A teoria apresentada por Bakhtin (2006) é uma das influências dessa vertente de análise de discurso e considera seu sentido dialético, uma vez que não existe um enunciado isolado. Fiorin (2003, p. 77) destaca que “as determinações últimas do texto estão nas relações de produção”. Tendo em vista esse sentido dialógico, o enunciado é elaborado em função do ouvinte, sendo o discurso uma prática social (SOUZA; CARRIERI, 2014). Mais uma vez, aparece aqui a importância do momento da entrevista, pois a relação que vou criar também irá influenciar no modo como o discurso que envolve a narrativa vai se desenvolver.

A análise de discurso da linha francesa não considera, portanto, o discurso de forma isolada, pois se torna um elemento da realidade social, construindo e sendo construído de forma dialética. Nesse ponto, acredito que exista uma convergência em relação às histórias de vida, possibilitando o uso dessa análise de discurso, mesmo considerando seu caráter estruturalista. Para Fiorin (1998, p. 78), a análise de discurso deve desfazer “a ilusão idealista de que o homem é senhor absoluto de seu discurso”. Acredito, assim, que a utilização da análise de discurso se dá com o objetivo de complementariedade em relação às histórias de vida, uma vez que sua análise não se esgota no próprio discurso, projetando- se na história (FIORIN, 2003).

Seguindo esta linha que escolhi, para a operacionalização dessa análise, destaco os procedimentos a seguir, propostos pelo Professor Doutor Antônio Augusto Moreira de Faria, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e sistematizados por Saraiva (2009, p. 90-91), que podem ser utilizados em conjunto ou separadamente, de acordo com o que for enunciado. O primeiro ponto tratado é a “identificação e análise dos principais aspectos da análise lexical”, que é descrito por Saraiva (2009) como o

vocabulário a ser utilizado. Faria (2009) complementa ao destacar que é a partir da escolha do vocabulário que se desenvolvem os demais aspectos linguísticos, como os personagens e temas. Dando continuidade à análise, o segundo ponto se trata da “identificação e análise dos principais temas e figuras (explícitos ou implícitos) dos discursos”, considerando assim os elementos mais abstratos e mais concretos do discurso. A partir desses temas e figuras, são estruturados os “percursos semânticos”, que podem ser figurativos ou temáticos, isso quer dizer, predominantemente concretos ou predominantemente abstratos.

Como quarto ponto, Saraiva (2009, p. 91) apresenta a identificação e análise dos “principais aspectos interdiscursivos”. Esse nível interdiscursivo representa as relações de apoio ou oposição, é a relação entre um discurso especifico e um conjunto de outros discursos que se apresentam. O quinto ponto elencado é a identificação dos principais aspectos da “sintaxe discursiva”, sendo esse a forma como discurso é construído estruturalmente, podendo incluir figuras de linguagem. Outro ponto de análise se refere à identificação dos principais “aspectos refletidos e refratados” nos discursos; nesse ponto, é importante compreender a ressignificação de temas exposta em Bakhtin (2006), a partir daí, todo aspecto é refletido linguisticamente, preservando seu sentido socialmente estabelecido e reinterpretado, isso é, refratado, de acordo com as ressignificações de seus enunciadores

Ainda Saraiva (2009, p. 91) aponta como sequência da análise do discurso a “identificação dos principais aspectos das condições de produção dos discursos”, nesse ponto o que se busca é a definição das condições sociais sob as quais o discurso foi produzido.Segue a esse passo, a identificação dos principais “discursos presentes no texto”, discurso, nesse sentido, compreendido como a produção social de textos, identificando e analisando assim os discursos que se inserem nessa produção social dos textos. Tendo em vista que não há discurso neutro, o passo que se segue é a identificação dos principais “aspectos ideológicos defendidos nestes discursos” e também dos principais “aspectos ideológicos combatidos nestes discursos”. Por fim, Saraiva (2009, p. 91) propõe a identificação da “proposição do discurso hegemônico em cada um dos textos em relação aos discursos hegemônicos na sociedade em que se situa”, com o intuito de verificar se esse discurso se apresenta alinhado ao que é dominante em termos sociais ou se apresenta como marginal.

Segui esse roteiro estruturado para a análise de discurso da vertente francesa, destacando que em alguns momentos foram considerados apenas parte dos pontos elencados. Além disso, destaco que, para melhor compreensão e apresentação dos dados, optei por apresentar

as histórias de vida de Leila e Clóvis de forma separada, também estruturando os discursos a partir de seus percursos semânticos, temas e figuras.

Ademais, como tanto as histórias de vida em seus pressupostos quanto análise de discurso da vertente francesa não consideram apenas o nível individual, ou o que será enunciado, o referencial teórico se apresenta com um papel importante ao debater os aspectos sócio- históricos da formação das relações raciais no Brasil. Como vimos, são relações complexas e muitas vezes silenciadas, por isso um entendimento de sua dimensão é fundamental para compreender o contexto no qual as histórias de vida se inserem, sem deixar de considerar a reflexividade e a historicidade presente nas histórias de vida, já que os sujeitos não são apenas influenciados por essas relações, mas também as modificam.

Compreender essa dimensão dialética das histórias de vida é essencial para que os aspectos apresentados nessa seção não se tornem meros procedimentos metodológicos, mas constituam de fato uma pesquisa na qual os protagonistas são os trabalhadores negros que irão narrar suas histórias.

5 AS HISTÓRIAS DE CLÓVIS E LEILA

Leila e Clóvis serão os sujeitos que tomarão as páginas a seguir com suas histórias de vida. Foram muitos os encontros com cada um deles, fato que permitiu não apenas a coleta dos dados apresentados nessa dissertação, mas também uma troca de experiências fundamental, destacada em Barros e Lopes (2014). Isso tornou a análise dos dados ainda mais rica, e os passos seguidos para a análise de discurso da vertente francesa, conforme roteiro estruturado por Saraiva (2009) e apresentado na seção de metodologia desse trabalho, auxiliaram para que essa análise se desse de uma forma mais estruturada, sem desconsiderar as vidas que ali se apresentavam.

Ao realizar a gravação destas histórias de vida, sempre estive acompanhado de Nathália, que realizava um trabalho de iniciação científica com o professor Luiz Alex Silva Saraiva, orientador deste trabalho. Nathália estava em seu último período para a conclusão de sua graduação em Ciências Econômicas e vivia seu primeiro contato com uma pesquisa que envolve histórias de vida. Ao longo das entrevistas, a presença de Nathália se tornou um elemento fundamental, pois ela contribuiu ativamente para a aproximação com Clóvis e especialmente com Leila, como veremos nos tópicos que seguem.

Para expor de forma mais detida alguns pontos da vida de cada um, optei por dividir essa seção em duas partes: uma primeira tratando especificamente da história de vida de Clóvis e uma segunda retratando e analisando a história de vida de Leila. A despeito de considerar a singularidade de cada história, a forma como apresentei as narrativas foi estruturada em um mesmo formato, por acreditar que esses elementos apresentados auxiliariam na leitura e na apresentação do trabalho, sem o intuito de tecer comparações diretas entre as histórias de vida.