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6. O PERCURSO DO VÍNCULO FAMILIAR: o impacto da prisão

6.2. Os vínculos familiares durante a prisão

6.2.3. As mulheres presas e os filhos

A maternidade é compreendida, nas ciências humanas, como uma construção social que varia segundo diferentes épocas e contextos. Isso significa retirar da ordem da natureza as relações entre mãe-filho, posto que historicamente a maternidade e todo o simbolismo que ela representa nem sempre portaram o mesmo sentido e nem gozaram do mesmo valor social (ARIÈS, 1986). São os discursos sociais e científicos de cada época que tematizam as formas e os sentidos do “amor materno” e Badinter (2011) compreende a propagada realização da mulher através da maternidade como um mito construído pela “ideologia maternalista”.

Apesar dos esforços de estudiosos, desde meados da década de 1980, em desmistificar e historicizar a experiência da maternidade, a ideia do “instinto materno” e da negação da subjetividade das mulheres em prol de uma suposta natureza inata e maternal, ainda é majoritariamente presente em nossa sociedade. Este tipo de concepção sobre o destino feminino ligado à maternidade é responsável por cimentar a ideia de que o cuidado com os filhos é tarefa exclusiva das mulheres, afinal elas nasceram para isso (Badinter, 2011). Muitas das mulheres entrevistadas foram mães muito jovens. Observa-se que percebem nos filhos seu principal espelho, a partir do qual podem vislumbrar seu próprio lugar na sociedade. Para a grande maioria das mulheres pesquisadas, os filhos constituem o principal aporte de reconhecimento e construção identitária dentro do grupo familiar: elas são, antes de tudo, mães.

Juntamente com a relação entre as mulheres presas e suas mães/avós, a relação delas com seus filhos completa o eixo intergeracional sobre o qual se estrutura o vínculo familiar no grupo pesquisado. A distância em relação aos filhos é a fonte de sofrimento mais expressiva citada ao longo das entrevistas com mulheres presas, especialmente devido à preocupação com seu bem-estar.

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Todas as mulheres entrevistadas possuem filhos, via de regra mais de dois. As idades variam entre bebês de um ano e meio e adultos com 25 anos, porém a maioria das entrevistadas tinha, no momento da entrevista, mais de dois filhos em idade de grande dependência – como aqueles com menos de dez anos. Poucas entrevistadas mantinham proximidade com os filhos durante o cumprimento do regime fechado. As visitas eram mais frequentes por parte de filhos já mais velhos, especialmente aqueles maiores de idade: três entrevistadas recebiam visitas dos filhos na prisão.

Eles sempre estiveram junto comigo. Meus filhos são uns guerreiros. Tanto é que quando eu fui presa, o M. tinha dezessete, ele não podia entrar. Só com a autorização judicial. Aí o L. foi, correu, pegou toda a documentação judicial pra levar o M.. Entrevistada 7, 40-45 anos.

Duas entrevistadas relataram acesso ao dia-a-dia dos filhos por meio de outras vias que não a visita, especialmente por meio de telefone e da internet. Segundo elas, este contato foi fundamental para que mantivessem o vínculo com os filhos e também para que encontrassem maior tranquilidade durante o cumprimento da pena. Ter acesso a telefone e internet, porém, mostra-se uma exceção entre as entrevistadas: apenas aquelas que mantinham outros vínculos fortes com pessoas fora do sistema penal, e que também contavam com recursos financeiros oriundos da família ou acumulados no período anterior à prisão, encaixam-se neste grupo.

Ah, eu tinha os meus meios! Mas tem gente que não tem, né, não tem. Eu tinha os meus meios, eu tinha um telefone, entendeu? Então, eu ficava perto deles, eu via foto das minhas filhas, sabe, devagarinho, devagarinho, elas já tão grande; então elas interagem comigo. Elas me mandavam foto, sabe (...) Eu tinha um pouco de medo [de sofrer represálias por ter acesso a telefone]. Mas, às vezes, a tua necessidade como mãe, como filha, tu é obrigada! Tu é ser humano, acima de tudo tu é ser humano! Tu tá com uma mãe no hospital, tu vai fazer o que for preciso pra saber dela! Tu não tem como sair dali mesmo, entendeu? Entrevistada 02, 35 a 40 anos.

Eu conseguia falar com eles por telefone (...) eu dava meu jeito, né, eu tinha meus contatos ali dentro [da prisão]. Isso pra mim foi o que me ajudou a passar o tempo e não ficar louca, né... eu via as gurias lá arrancando os cabelos de preocupação com os filhos, mas não tinha o que fazer (...) Entrevistada 16,

30-35 anos.

Aquelas entrevistadas que não tinham meios para acessar telefones dentro da prisão, e tampouco recebiam visitas, viam suas possibilidades de contato com a família reduzidas. Uma das interlocutoras narra períodos de grande tensão na cadeia devido à falta de notícias da mãe e dos filhos, estes sob cuidados daquela. Para ela, a convivência com outras presas não era um

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grande desafio, pois se dava com todo mundo. Mas como sua família morava distante da prisão e sua mãe tinha muitos problemas de saúde, a entrevistada não recebia visitas e consequentemente não obtinha informações sobre a situação da família.

A minha relação era tranquila, eu mantenho paz, eu não tenho briga, eu sou bem tranquilona! Mas, aí, a dificuldade é porque tu não tem visita, né, porque tu não, como é que eu vou te dizer? Os atendimentos são precários. Faltava psicólogo, faltava tudo, tudo! Em geral, em Guaíba falta tudo! Tudo, tudo! Eles não te auxiliam em nada! Entendeu? É muito ruim, tu quer ter, tu quer falar com um psicólogo, tu quer falar com a assistente social pra saber notícia da tua família, eles não, se tu não usar os teus meios, tu não tem como saber da tua família! Eles não deixavam usar um telefone, e eu precisava saber dos meus filhos! Entrevistada 24, 25-30 anos.

A realidade da grande maioria das mulheres, porém, era de quase completo alheamento da vida dos filhos. Mesmo entre aquelas que recebiam visitas de mães ou avós, as visitas dos filhos – especialmente dos filhos pequenos – era mais rara. Contudo, embora sofressem com a distância, todas disseram que preferiam isso a submeter as crianças ao ambiente da prisão33.

A minha filha foi visitar uma vez, foi depois de um ano que eu já tava presa. E aí na hora de ir embora que é triste, né? E aquilo não era lugar pra criança também, daí eu não quis mais que ela fosse. (...) Quando eu saí de lá, minha filha já tinha sete anos. [Após sair da prisão] quando eu passava ali na frente [com a filha], ela gritava, olha mãe, teu trabalho. Eu dizia que era meu trabalho. E as pessoas no ônibus ficavam me olhando. E depois eu tive que contar pra ela. Uns dois anos depois, eu contei. Entrevistada 9, 30-35 anos.

Algumas das entrevistadas mostravam-se bastante fragilizadas no momento da entrevista devido à preocupação com os filhos. Dentre os principais pontos de tensão podemos destacar a incerteza do bem-estar dos filhos pequenos – muitos deles “espalhados” entre mais de um cuidador (avó, madrinha, irmã), e a preocupação com filhos adolescentes com histórico de uso de drogas ilícitas e envolvimento no tráfico. Aqui percebemos que os reflexos do encarceramento de mulheres repercutem sobre todos os membros do grupo familiar e, de modo ainda mais sensível, sobre os filhos pequenos. Estes, assim como as mães, tendem a sofrer as consequências do rompimento do vínculo nas dimensões da proteção e do reconhecimento.

Eu não consigo comer, eu não consigo dormir... saber que teu filho tá na rua, com dez anos.... sabe, eu sempre criei, sempre cuidei bem, nunca deixei faltar

33 Na amostra desta pesquisa, não encontramos nenhum caso de presa que tenha dado à luz e convivido com o

filho dentro da prisão. Uma das entrevistadas foi presa quando estava grávida de quatro meses, mas aos nove meses foi beneficiada por prisão domiciliar concedida justamente em função da gravidez e da iminência do parto. Pouco mais de um ano após dar à luz, porém, a mesma entrevistada foi presa novamente, e sua filha passou aos cuidados da avó.

167 nada... (...) eles tão espalhados, cada um tá com uma pessoa (...) a minha mãe tá com o menor, mas ele é doente da cabeça, não obedece, aí ele foge pra rua, maltratam ele. Entrevistada 4, 35-40 anos.

A minha filha tá com a madrinha, parece que ela tá bem, mas eu não tenho contato com ela mais, a madrinha dela acha que não tem que ficar tendo contato, vir visitar, nada, por que é ruim pra ela né, pra cabecinha dela (...)

Entrevistada 4, 35-40 anos.

Não, nesse tempo não [não teve contato com as filhas durante o regime fechado]. Eu fico sofrendo por que tenho meus filhos, pra mim tá sendo difícil, eu tenho cinco filhas né. Todas meninas... elas tão com as avós delas (...) duas tão com a minha mãe, e as outras tão com a avó por parte de pai (...) mas eu não tenho contato com elas, não sei... a gente fica preocupada, né, guriazinhas... cada coisa que a gente ouve falar, a gente se preocupa, é muita violência. Entrevistada 10, 30-35 anos.

O mais novo tem 8 anos. A minha guria tem 12 anos. Bah, a guria, faz tempo que eu não tenho contato com ela, que ela mora com o pai dela. (...). Eu não tive mais contato com ela. Uma hora, eu quero ir até lá quando eu sair daqui, ver ela. Entrevistada 3, 35-40 anos..

As famílias que já eram monoparentais devido ao abandono do cônjuge ao longo da trajetória das entrevistadas, sofrem outra ruptura com a prisão das mulheres: na ausência de estrutura para que outra mulher (normalmente a mãe ou avó) assuma a responsabilidade por todos os filhos da mulher presa, os filhos são “distribuídos” entre uma rede de cuidados que pode ou não propiciar a manutenção do vínculo dos filhos com a mãe. Quando é a mãe da mulher presa quem fica com todos os filhos desta, a manutenção do vínculo é mais evidente.

Porém, em qualquer dos arranjos encontrados, a frequente sobrecarga da cuidadora substituta pode expor os filhos das mulheres presas a situações de negligência e risco. Stella (2006), em um dos poucos trabalhos brasileiros sobre a implicação do encarceramento materno sobre a vida dos filhos, aponta que a invisibilidade das mulheres presas perante a sociedade e o poder público se estende aos seus filhos: há poucas informações sobre quem são e como vivem. Além disso, não existem políticas públicas de apoio para estas crianças e adolescentes, tampouco para amparar as pessoas que se responsabilizam por elas quando da prisão da mãe (Silva, 2015). O vínculo familiar e sua função de proteção e reconhecimento, a partir da prisão da mulher, é fragilizado a priori pela ausência da mulher junto ao grupo familiar e a impossibilidade de desempenhar seu rol dentro da dinâmica da economia do cuidado.

Como já observamos anteriormente, em parte dos casos observados na pesquisa, os filhos das entrevistadas tendem a ficar sob os cuidados da avó – especialmente a avó materna.

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Nestes casos em que as crianças permaneciam vinculadas à linha de filiação feminina da família, são maiores as chances de as mulheres encarceradas manterem contato e receberem notícias dos filhos, posto que são as mães das presas aquelas que mais frequentemente faziam visitas à cadeia. Além disso, em alguns casos, as entrevistadas trabalhavam no período em que cumpriam pena no regime fechado e parte (ou todo) o dinheiro que recebiam era destinado à mãe, de modo a auxiliar nas despesas destas para com os filhos que estavam sob seus cuidados. Assim, o fluxo de informações, de afeto, de recados, de recursos financeiros, etc. concentrava- se nos vínculos entre avós, mães e filhos.

Por outro lado, encontramos muitos relatos de arranjos em que os filhos eram “distribuídos” entre mais de um cuidador – ou cuidadoras, posto que, via de regra, se tratava de mulheres. Especialmente quando o número de filhos é mais elevado – três ou mais – este tipo de rearranjo da rede de acolhimento tendia a se fazer necessário para equilibrar as possibilidades estruturais e financeiras das famílias. Uma das nossas entrevistadas, por exemplo, tem cinco filhos. Destes, dois são maiores de idade e três são crianças. A mãe da entrevistada, com histórico de doenças incapacitantes, pôde acolher apenas um dos netos, de 10 anos. A filha de quatro anos ficou sob responsabilidade da madrinha da criança – uma amiga da entrevistada. Já o outro filho menor, de 12 anos, passou a morar junto com o irmão, que na época já vivia em sua própria casa.

Quando os filhos são separados em distintas residências, fragiliza-se também o vínculo entre os irmãos. Embora esta seja uma preocupação aparentemente secundária para as entrevistadas, uma vez que o bem-estar material e físico se coloca como mais importante, nota- se em algumas narrativas um temor que esta separação torne mais difícil a reunião da familia (mães e filhos) no futuro.

Eu não queria que eles ficassem assim, né, cada um pra um lado... mas não tem jeito, também se não fosse assim, se eu não arrumasse quem ia cuidar, era até capaz de me tirarem... a minha comadre cuida da pequena, cuida bem, cria do jeito dela, que eu sei que eu tenho que deixar ela criar do jeito dela, né, agora ela tá com ela... mas e depois quando eu sair? Entrevistada 15, 40-45

anos.

A distribuição dos filhos entre diferentes cuidadores também pode desencadear situações em que a mãe fique longos períodos sem ver e sem ter notícias de alguns dos filhos. Há casos em que filhos passaram a viver com o pai – ou com a avó paterna – em outra cidade que não a cidade de origem da entrevistada. Nestas situações, não raro há um rompimento profundo do vínculo, como por exemplo, a situação da entrevistada que está há seis anos sem

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receber notícias da filha que mora em outra cidade. Ou, ainda, da informante que perdeu o contato com os dois filhos que vivem em outro estado, já há 10 anos. O tempo decorrido desde que perderam contato com os filhos, tende a coincidir com o tempo que as entrevistadas estão presas.

Eles moram com o pai deles, os dois moram com o pai deles, eu tenho dois guris e uma guria. A menina mora com a minha mãe, e os dois guris moram com o pai deles... na verdade quem cuida mesmo é a avó deles, né [refere-se à avó paterna]... Faz dez anos que eu não vejo eles, só uma vez, que foi por vídeo-conferência, mas já faz muito tempo, quando eu tava no fechado.

Entrevistada 2, 30-35 anos.

O pai dela [da filha] morreu quando ela era bebezinha ainda, e eu nem tinha mais relação com a minha ex-sogra e com a família dele... só que quando eu caí na cadeia, minha mãe não tinha como ficar com os três né (...) a minha mãe cuida dos meus dois guris maiores e da minha vó, que é de cama. Deu um AVC nela, ela é surda, não caminha, usa fraldas. E ela faz tudo na cama, e a minha mãe não tem ninguém pra cuidar dela. Ainda mais final de semana, final de semana ninguém quer ficar cuidando de uma senhora. (...) daí era muita sobrecarga pra ela, e a gente achou melhor que a minha filha ficasse com a outra vó. Só que agora, desde que eu tô puxando cadeia, eu não tenho mais notícia dela. Entrevista 28, 40-45 anos.

A minha [filha] de dezessete já é casada, tem a casinha dela. Quem mora com a minha mãe é a de doze e a de cinco anos. E as gêmeas moram com o pai delas, com a avó. Na verdade, com o pai não, porque o pai tá preso também. Moram com a avó, mas com elas eu tenho quase nada de contato desde que eu cheguei [na prisão]. Entrevistada 30, 36-40.

Quando mesmo com o suporte de mais de um cuidador não garante que os filhos estejam todos em segurança, livres de sofrimentos físicos e de escassez de recursos básicos, as entrevistadas consideram a situação quase insustentável. Uma das mulheres que entrevistamos encontrava-se à beira do rompimento institucional. Depois de cumprir sua pena no regime fechado, estava no semiaberto, mas ainda sem direito a saídas periódicas. A situação dos filhos, especialmente de um deles, lhe era desesperadora: devido a problemas de saúde do filho de 10 anos, a convivência com a avó estaria sendo conflituosa. Além de agressões físicas, a criança estaria passando períodos fora de casa ou em casa de terceiros, o que acarretaria ainda mais riscos. Para a entrevistada, apenas ela poderia cuidar bem do filho doente. Além disso, outro filho usuário de drogas estaria internado em uma clínica de reabilitação, mas nenhum familiar preocupou-se em garantir que tivesse acesso a itens básicos que, segundo ela, não são fornecidos na clínica.

170 Eu tenho um filho de 10 anos, ele tem problema mental... aí ele fugiu... ele vai um pouco pra casa da vó dele, um pouco pra casa da madrinha, assim, ele fica que nem um cachorrinho, sabe? Eles brigam com ele, eles maltratam ele... e eu tenho um guri de 20 (anos) que agora se internou das drogas. Ele tava abandonado, ninguém levou nada, nem de higiene, nada pra ele... eu vou conversar aqui pra ver se elas me ajudam (as assistentes sociais do CAF).

Entrevistada 1, 45-50 anos.

E tem esse de 20, que se internou né? Ele tá em são Leopoldo, diz que é uma fazenda... há uns anos quando eu tava presa, ele fumava pedra, daí ele parou... quando eu saí da cadeia ele tinha parado, só fumava o baseado dele num canto... aí agora ele começou de novo (recomeça a chorar). Começou a fumar a pedra junto com a maconha, não sei como é que é lá... só que ninguém levou nada pra ele... Entrevistada 1, 45-50 anos.

O abandono dos filhos – especialmente do mais jovem, parece ser o limite do suportável para a entrevistada. Durante nossa entrevista, confessa que está pensando em evadir do semiaberto, caso não consiga acesso imediato a uma tornozeleira eletrônica, o que lhe permitiria ficar em casa com os filhos. Ela sabe que o risco de fugir do semiaberto é alto: no mínimo, o provável retorno ao sistema fechado. Correr esse risco, porém, ela vê como inevitável: “o que que eu posso fazer? Não tem o que eu fazer, só ir pegar meu filho!”.

Um das mulheres que entrevistamos sofreu um aborto e perdeu os filhos gêmeos enquanto estava na prisão. Grávida de quatro meses, a entrevistada foi presa enquanto estava em uma casa onde se vendia drogas, juntamente com outras sete pessoas. Embora também realizasse pequenas atividades no tráfico à época, conta que a boca não era dela, apenas estava no local quando a operação foi desencadeada. Ela permaneceu na cadeia por quase um ano, ao passo que todas as outras pessoas presas na mesma ocasião foram soltas nos primeiros meses. Segundo a entrevistada, isso aconteceu porque ela não tinha condições financeiras de pagar por um advogado. Seu maior pesar, porém, reside no fato de ter perdido os filhos. Esta perda repercutiu ainda na separação do companheiro com quem estava casada à época:

Ah, o que tem foi que quando eu vim presa eu tava grávida de gêmeos e eles deixaram eu perder meus nenês na cadeia... lá não tinha nada, não deram assistência nenhuma pra mim. A juíza que me prendeu nem sabia que eu tava grávida! Ela nem sabia que eu tinha perdido os nenês! Aí, isso tudo eu peguei os papel e dei pra advogada, aí ela pegou e alegou, porque tinham soltado todo mundo e só tava eu presa. Eu tava de 4 meses [grávida]. Mas eram uns bebês planejados, aquela coisa assim, eu e meu marido, nós era casado já há quatro anos, eu tenho os meus, ele não tinha nenhum. Isso causou a minha separação.

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Os vínculos sociais, segundo Paugam (2009), são fonte de proteção e reconhecimento social. A proteção diz respeito aos recursos que podem ser mobilizados diante de situações de crise, de necessidade financeira, de situações que demandam cuidado pessoal, etc. O reconhecimento social refere-se à dimensão do vínculo que permite ao indivíduo descobrir-se uma pessoa valorizada, respeitada, digna de afeto e carinho, útil socialmente, etc. Quando analisamos as trajetórias das mulheres entrevistadas, dado o contexto social de que são oriundas, percebemos que o laço familiar é o laço preeminente enquanto fonte de proteção e reconhecimento. Essa configuração de vínculo é chamada por Paugam (2017) de configuração do tipo familialista, e é fundada sobre uma moral doméstica. Nossa pesquisa sinaliza a possibilidade de caracterizar esta moral doméstica enquanto marcada profundamente pela questão de gênero: os papéis e as expectativas de gênero, especialmente aquelas que recaem sobre as mulheres no interior do grupo familiar, são a força motriz que garante – ou não – a permanência do laço e a coesão do grupo familiar.

O papel das mulheres no interior da economia dos cuidados é a manifestação mais potente de sua atuação na manutenção do vínculo familiar. Mesmo quando suas trajetórias

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