• Nenhum resultado encontrado

6. O PERCURSO DO VÍNCULO FAMILIAR: o impacto da prisão

6.1 Os vínculos familiares antes da prisão

6.1.3 Os maridos que “somem”

Embora todas as mulheres entrevistadas tivessem filhos já antes de serem recolhidas ao sistema prisional e, via de regra, terem passado por mais de um relacionamento amoroso/afetivo no decorrer da vida, apenas nove dentre as 30 mulheres participantes desta pesquisa mantinham algum relacionamento no momento em que foram presas. Dentre as demais, a situações mais recorrentes eram de 1) abandono por parte do cônjuge em algum momento da sua trajetória; 2) morte precoce do cônjuge; e 3) divórcio/separação.

A entrevistada nº 1 relata que permaneceu casada durante 12 anos com o marido, e que em algum momento deste percurso ele “pegou outra mulher” [mantinha duas famílias ao mesmo

149

tempo]. A situação causava atritos entre a entrevistada e o esposo, e a partir de certo ponto, era motivo de brigas e de violência física entre o marido e o filho mais velho, que na época tinha 11 anos. Neste momento, a entrevistada relata que providenciou a separação. Segundo a informante, em represália, o ex-marido

[...] vendeu a minha casa! Vendeu tudo! Eu tinha pagado com o meu dinheiro, e ele foi lá e vendeu. Aí eu pensei: não importa. Fui nessa vila onde mora a minha irmã e construí tudo de novo. Entrevistada nº 1, 45-50 anos.

Esta ruptura marca um período de dificuldades econômicas para a família. Enquanto a nova casa não estava pronta, precisaram viver algum tempo com a irmã da entrevistada. Aqui podemos observar novamente a rede de solidariedade feminina mobilizada para prover os familiares de, especialmente, proteção diante das incertezas e infortúnios da vida.

As entrevistadas nº 4, 19 e 26 possuem narrativas muito parecidas: viviam com seus cônjuges, com os quais possuíam filhos, e em algum momento de sua trajetória esses homens simplesmente se afastaram “aos poucos” ou “sumiram” definitivamente. Na maioria dos casos, a relação com os filhos era pouco expressiva. Quando o cônjuge parte, não se observa uma reorganização significativa no arranjo familiar. Como disse uma das mulheres entrevistadas, quando perguntada se mudou muita coisa quando seu parceiro foi embora: “não mudou, eu acho que não muda muita coisa... a gente só vai seguindo, vai seguindo e fazendo aquilo que a gente já faz” (Entrevistada nº19).

A entrevistada nº26 normaliza este comportamento masculino, referindo-se à sua trajetória, à trajetória da mãe, das irmãs e de outras mulheres que conhece:

Ele arrumou uns bicos em Porto Alegre, aí passava mais tempo lá do que aqui [cidade da região metropolitana]. Então não tinha isso de esperar por ele, esperar que ele fizesse alguma coisa... a gente já tá acostumada, homem é assim mesmo... a gente cria nossos filhos tudo sozinha (...) minha mãe criou os filhos sozinha, minha irmã tá se virando pra trabalhar e conseguir ficar com a pequena [filha] quando a mãe não pode cuidar dela. Entrevistada nº 26, 20-

25 anos.

Os aportes de reconhecimento e proteção ficam a cargo das redes familiares que organizam o grupo familiar de modo a manter e fortalecer o laço social. Estas redes familiares, no caso do grupo pesquisado, são compostas majoritariamente por mulheres. Na grande maioria das vezes, quem divide a tarefa do cuidado, da proteção e do reconhecimento com as mulheres

150

que precisam criar seus filhos sem a presença do progenitor, são as mães e também as irmãs. O caso das entrevistadas nº 19 e 20 remetem a esta questão:

Minha mãe ficava com eles [filhos] pra mim quando eu fazia os meus bicos... depois que eu comecei a vender [drogas], eu ficava mais em casa com eles, mas logo ficou muito ruim isso... era um clima pesado, um entra e sai... e qualquer hora a polícia podia “baixar” lá. Eu tinha até um trato com uma vizinha minha dessa casa, que se eles “baixassem” lá em casa, ela ia direto levar meus filhos pra minha mãe... tu sempre tem medo do Conselho Tutelar, né? Imagina se eu perco meus filhos! Entrevistada nº 19, 26-30 anos Eu saí pra fazer os meus corres28, e eles [filhos] ficavam com a minha irmã...

a minha mãe também sempre ajudou a gente, nunca vou poder me queixar disso. Entrevistada nº 20, 20-25 anos.

Cintia Sarti (1996), em seu estudo sobre como as classes pobres organizam e dão sentido à sua realidade através de uma moral própria e particular, aponta que a família pobre, antes de se constituir como uma família nuclear, aos moldes das expectativas das “famílias modernas”, estrutura-se como uma rede. Essa rede apresenta ramificações que envolvem familiares – e mesmo pessoas sem relações de parentesco – com as quais são estabelecidas tramas de obrigações morais. Essa trama de obrigações, segundo a autora, atuaria contra a individualização e a favor de redes de apoio e de sustentação básicas.

A distribuição das tarefas de cuidado entre as mulheres do grupo familiar, especialmente no que tange ao cuidado com os filhos, constrói-se em torno de uma dimensão moral ligada à confiança e à reciprocidade: as mulheres dão suporte material e de cuidado quando uma dentre elas precisa; da mesma forma, será auxiliada quando necessitar. A ideia de reciprocidade aparece também quando as entrevistadas encarregam-se dos cuidados das mulheres mais velhas – via de regra, as mães –, já demandantes de cuidados específicos. Em alguns relatos sobre a angústia de viver na prisão, como veremos mais adiante, a culpa e a ansiedade de não estarem presentes é são manifestadas pelas informantes. Uma delas verbalizou esta angustia da seguinte maneira:

Bah, a coroa tá lá agora, segurando as pontas, sabe? Segurando as pontas, por que ela teve dois AVCs ano passado – graças a deus não foram tão fortes – mas ela não tá podendo mais fazer o que ela fazia antes... agora é ela que precisa de cuidado, e eu tô aqui sem poder sair. Entrevistada nº 18, 20-25

anos.

151

Quando refletimos sobre o conjunto das narrativas das mulheres entrevistadas, buscando compreender quais os arranjos no interior do vínculo de filiação sustentam as redes familiares, concluímos que 1) os vínculos duradouros e que, via de regra, dão suporte em termos de proteção e reconhecimento aos membros do grupo familiar, constroem-se de mulher para mulher – ou entre as mulheres. São estes os vínculos mais potentes e também os que se rompem ou se fragilizam com menos frequência; 2) no grupo pesquisado, salvo algumas exceções, os homens circulam como nômades no interior das redes familiares. É possível que entrem e que saiam sem abalar ou alterar profundamente a composição dos vínculos; 3) por outro lado, quando os homens são vetores de situações de violência – seja contra outros membros do grupo familiar, seja contra as próprias entrevistadas, os vínculos são abalados e fragilizados em maior grau, visto que desencadeiam processos de trauma, revolta, medo e desprezo pelo membro familiar que perpetra violência. Neste caso, abalam-se as estruturas familiares que garantem reconhecimento social, pois fratura a possibilidade de construir uma relação na qual os envolvidos construam, mutuamente, o valor e olhar sobre si mesmos face ao outro.

Ao mesmo tempo, algumas narrativas indicam também que as situações de violência perpetradas por homens – pais/padrastos – parecem ser mais recorrentes quando já existem contextos anteriores de fragilização e/ou ruptura de vínculos familiares. Essas situações se verificam especialmente, quando as mulheres da família são impossibilitadas de desempenhar seu papel de cuidado, como no caso de doença ou morte da mãe das entrevistadas, por exemplo. Em síntese, a constituição da rede de vínculos que conferia aportes de proteção e reconhecimento às mulheres entrevistadas no período de suas vidas anterior à prisão – salvo alguns casos pontuais – referia-se basicamente aos laços familiares, ainda mais especificamente aqueles que são tecidos na relação entre as mulheres do grupo familiar. Dentro das possibilidades limitadas de se mover no mundo, dadas as condições socioeconômicas e as perspectivas de trabalho precário, aliadas por vezes à sedução pelo consumo de substâncias ilícitas e mesmo a percepção do tráfico como forma de subsistência, o leque de vínculos das mulheres entrevistadas não se expande para muito além do grupo familiar. A menos que tencionem fortemente os limites da sua própria realidade social ou mesmo os limites do mercado do tráfico, visando tornarem-se traficantes com algum poder dentro deste universo, as mulheres entrevistadas constroem-se como sujeitos na interação familiar e nas tarefas relacionadas à economia do cuidado. O conteúdo de gênero, portanto, é a tônica do movimento dos vínculos familiares ao longo do percurso dessas mulheres no período anterior à prisão, e a

152

experiência da prisão em regime fechado quebra completamente essa dinâmica. Como consequência, observam-se importantes fragilizações e rupturas de laços familiares, com um impacto crucial sobre as formas como as mulheres se percebem como sujeitos.

Documentos relacionados