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6. O PERCURSO DO VÍNCULO FAMILIAR: o impacto da prisão

6.2. Os vínculos familiares durante a prisão

6.2.1. As mulheres presas e os homens

A presença dos homens na vida das mulheres entrevistadas é, via de regra, descontínua. Tanto pais, quanto padrastos, quanto cônjuges tendem a ir e vir ao longo de suas trajetórias, e raramente representam um ponto de segurança em suas vidas. A maioria das mulheres

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entrevistadas não obtinha, de seus familiares do sexo masculino, nem proteção, nem reconhecimento no período anterior à prisão; quando estavam presas essa tendência se intensificou. Apenas duas, dentre as trinta entrevistadas, recebeu visita do cônjuge pelo menos uma vez enquanto esteve presa. Destas, apenas uma usufruiu de visitas íntimas durante a reclusão.

Em alguns casos, os parceiros das mulheres pesquisadas também cumpriam pena no período que estavam presas. Nos dois casos em que isso aconteceu, porém, o relacionamento acabou antes do término da pena da entrevistada. O motivo relatado por ambas foi que “o marido não conseguiu esperar”, ou seja, iniciaram outro relacionamento, enquanto eles mesmos cumpriam pena, com mulheres que não estavam presas na ocasião.

A entrevistada nº 8 conta que o então companheiro cumpriu pena por quatro anos antes que ela mesma fosse presa. Nestes quatro anos, puxou cadeia direto com o marido, fazia de tudo para não faltar a nenhuma visita e nunca deixar de entregar as sacolas na prisão para o companheiro. Quando estavam presos simultaneamente – ela no Madre Pelletier e ele no Presídio Central – chegou a visitar o marido algumas vezes para fazer visitas íntimas. Em menos de um ano, porém, eles brigaram “por causa de mulher”, pois segundo ela “tinha sempre mulher chave de cadeia rondando lá”. O relacionamento se desfez. Ela ficou sozinha e ele começou a se relacionar com outra mulher. A entrevistada expressa também mágoa por ter sido abandonada pelo companheiro após fidelidade a ele durante anos. O “abandono” a que ela se refere aqui representa mais do que o rompimento do relacionamento: como chefe de tráfico, o marido possuía, mesmo dentro da prisão, uma rede de pessoas a seu serviço. Dentro da ética do tráfico, segundo a entrevistada, o marido deveria ter mobilizado esta rede para garantir a ela acesso a alguns benefícios, “nem que fosse sacola”, em reconhecimento ao fato de ela ser “mãe dos filhos dele” e também ter “puxado cadeia com ele” anteriormente.

Eu tava presa, ele não me ajudou, tendo filho pequeno. Sabendo que, como eu trabalhava no Madre, mandava todo o meu dinheiro pra minha mãe. Só ficava com um pouquinho para quando eu precisasse. Eu mandava tudo, e quando eu precisava, a mãe mandava as higiene na sacola, caso contrário, eu não ficava com um real. Eu não sou drogada, eu não fumo droga nenhuma. Então meu vício é meu café com açúcar. Não faltando isso, pra mim tá bom. Mas ele devia reconhecer tudo o que eu fiz por ele, e pelo menos ajudar a olhar pelos filhos dele (...) Entrevistada 4, 35-40 anos..

As entrevistadas buscam refletir sobre o fenômeno do abandono das mulheres por parte dos cônjuges, em contraposição à fidelidade demonstrada pelas mulheres quando seus

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companheiros estão em situação de prisão. Normalmente as explicações giram em torno de uma suposta “natureza feminina” que caracterizam pelo termo “guerreira”. Ser guerreira significa puxar cadeia e enfrentar as dificuldades ao lado do companheiro, não importando quão dura seja a tarefa.

[Se tu passa no Central tá] cheio de mulher. Hoje eu passei lá na frente, fui buscar azeite. Tava uma ninhada de mulher na fila. E eu disse, meu Deus! Qual a diferença? Por que os homens não podem seguir também? Eu acho que são todos sem vergonha. A maioria das mulheres tão na cadeia por causa de homem. Porque aí meu marido é traficante, já tô no tráfico, e aí eles fazem isso. Te botam no tráfico, te afundam numa cadeia e ponto... Logo depois já tão com outra. Entrevistada nº 5, 36-40 anos.

É que assim, a mulher faz mais pelo homem. O homem não faz pela mulher. A mulher puxa cadeia para homem, homem não puxa para mulher. Porque isso, de dez que tu entrevistar aqui dentro que são casadas com presidiários, dá para se contar, uma ou duas que ainda vivem com eles até hoje.

Entrevistada nº 7, 40-45 anos.

As mulheres acho que são mais, acho que são mais guerreira! Se os homens são presos elas vão visitar! E já os homem, não! As mulheres vêm presa, eles ficam na rua com outras! Nem tão aí! É muito difícil o homem que vai puxar cadeia com a mulher, bem raro! A maioria é as mulher mesmo, que puxam. Porque os homens é bem difícil! É bem raro. A mulher se sente na obrigação, né, de ajudar ali. Mas o homem não, o homem não tá nem aí! Entrevistada nº

8, 55-60 anos.

O termo “guerreira” adotado pelas mulheres do grupo familiar – normalmente mãe e esposas – de homens presos, aparece não apenas na fala das entrevistadas desta pesquisa, mas é usado para autorreferência de grupos de mulheres que se reúnem para visitar e apoiar homens presos em todo o país. Uma busca nas redes sociais mostra uma proliferação de grupos de mulheres com este nome: “Mulheres de presos guerreiras29”, “Guerreiras Blindada PJL30”, “Guerreiras de Bangu31”, “Guerreiras de Fé, Amor além das grades32”, dentre dezenas de outros grupos. Por outro lado, quando nestes mesmos grupos de redes sociais aparece o termo “guerreiro”, ele remete aos próprios homens presos, não a homens que se dedicam a visitar familiares/companheiras presas. Ou seja, o próprio fato de estarem presos faz com que sejam vistos como “guerreiros”. O grupo no Facebook chamado “Liberdade pros Guerreiros”, com

29 Grupo da rede social Facebook, com 1,6 mil membros. 30 Grupo da rede social Facebook, com 23 mil membros. 31 Grupo da rede social Facebook, com 44 mil membros. 32 Grupo da rede social Facebook, com 8,5 mil membros.

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235 mil membros, é um dos exemplos. Outro exemplo é o grupo chamado “Guerreiras na luta pelos seus Guerreiros”, com 5,5 mil membros em sua página do Facebook.

Esta nominação, com clara distinção de gênero entre os papéis e os lugares sociais cumpridos pelos “guerreiros” e pelas “guerreiras”, explicita muito da relação de homens e mulheres com a experiência de ter familiares em situação de encarceramento. É compreendido como “natureza” da mulher – e motivo de orgulho e prestígio social – ser uma “guerreira” que não abandona seu cônjuge – ou filho – na prisão. Por outro lado, não é implicada, na lógica desta nomenclatura, nenhuma reciprocidade por parte dos homens quando estes têm mulheres na mesma situação.

Nos raros casos em que as visitas de homens a mulheres presas acontecem, é flagrante o tratamento diferenciado dado pelas presas a esse fenômeno. A entrevistada nº 2 conta que quando seu pai fazia visitas “era um alvoroço entre as gurias” – referindo-se tanto às colegas de cela, quanto às carcereiras: “Ele tratava todo mundo bem e todo mundo gostava dele (risos) ... faziam festa pra ele, é que eu tinha uma baita de uma sorte por ter um pai assim”. Este relato evidencia que não é socialmente esperado que homens cumpram o papel de apoio a mulheres presas. Quando o fazem, o comportamento é atribuído ao acaso – “uma baita sorte” – e o prestígio do homem que visita é alçado acima do reconhecimento às mulheres que visitam, mesmo sendo estas muito mais frequentes e mais assíduas.

Além dos poucos casos de cônjuges e pais que visitavam as mulheres entrevistadas quanto estavam em regime fechado, uma das informantes disse ter recebido também visita do irmão, ao passo que outra entrevistada recebeu visita do filho no período. Receber visitas de homens na prisão – sejam pais, cônjuges, irmãos ou companheiros – decorre, invariavelmente, de ter havido no período anterior à prisão um vínculo forte já estabelecido entre a mulher e o familiar. Ou seja, o vínculo tende a se manter, antes, pelo afeto construído ao longo da relação, e menos pelo sentido de “dever” que orienta as mulheres a visitar familiares na prisão.

Eu e o meu irmão – mas o meu irmão por parte de mãe e pai, né, porque o outro é só por ele, não tá nem aí – a gente sempre foi muito grudado, assim, e ele me ajudou bastante aqui, é uma barra né? Mas ele me trazia sacola, vinha visitar (...) Entrevistada 17, 30-35 anos.

Em síntese, a presença dos homens – especialmente pais e cônjuges – no rol de vínculos das mulheres presas, segue uma dinâmica próxima a da presença destes no período anterior à prisão: vínculos menos perenes, com frequentes rupturas, e pouco aporte em termos de proteção

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e reconhecimento. Na maioria dos casos, não eram aos homens que as entrevistadas recorriam quando precisavam apoio material ou apoio emocional antes da prisão. Tampouco era face a eles que construíam sua identidade e sua subjetividade. Eram outras mulheres e também os filhos que ocupavam este lugar. É às mulheres que cabe o papel de manutenção e coesão do vínculo familiar. Salem (2006) discute a questão da reciprocidade constituída na relação entre homens e mulheres nas classes populares, observando que há uma tensão estrutural nesta relação entre os gêneros: enquanto, entre as mulheres, existe um pendor para o vínculo, entre os homens prevaleceria uma vocação para circular entre as mulheres. Este paradigma de construção do masculino e do feminino no interior das classes populares seria, segundo a autora, constitutivas da própria moral familiar do grupo (SALEM, 2016, p. 419).

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