• Nenhum resultado encontrado

As não coincidências do dizer

No documento DO SURDO NA ESCOLA (páginas 87-92)

3.3. As Heterogeneidades Enunciativas

3.3.2 As não coincidências do dizer

O estudo sobre as não coincidências do dizer não se refere a comentários no plano da estrutura da língua, mas, conforme teorizado por Authier-Revuz (1998, p.21), se trata “do que eles dizem ao sujeito do dizer”. Sendo assim, notamos que as não coincidências vêm ilustrar a representação do dizer afetada pelo não um e, por assim dizer, constituir as não coincidências com pontos que, enunciativamente, se encontram alterados.

Portanto, dizer que essas formas metaenunciativas, isto é, as não coincidências do dizer, vêm “obturar a falha constitutiva do sujeito” (AUTHIER- REVUZ, 1994, p. 256), significa reconhecer uma “negociação obrigatória” do sujeito do dizer com a heterogeneidade que o constitui, passível de ser vislumbrada por meio das não coincidências do dizer. A referida autora afirmou ainda que essa negociação pode emergir a partir de um processo de denegação, no qual o sujeito possui a ilusão de ser o centro de sua enunciação e, em decorrência desse processo, abre espaço para articular o imaginário de coincidência do Um para um espaço de não coincidência, explicitando (e deflagrando) a heterogeneidade do sujeito (AUTHIER-REVUZ,1998).

Nessa perspectiva, em suas teorizações, Authier-Revuz (1998) ressaltou que há quatro campos de não coincidências para ilustrar a alteridade do dizer. Ela apontou, como primeiro ponto de não coincidência, a Não coincidência interlocutiva entre o enunciado e o destinatário. Esse tipo de não coincidência é por ela pensado a partir da situação enunciativa em que um elemento do discurso não é compartilhado pelos protagonistas da enunciação.

A esse respeito, observamos que Calil (2008, p.81), citando Authier-Revuz (1995), ponderou que: “a não coincidência interlocutiva caracteriza-se por uma glosa que testemunha o encontro com o dizer do outro”. Isto é, funciona como uma forma de recepção efetiva das palavras do outro, as quais produzem efeitos, retomando-as em uma segunda ocorrência, sobre o fio do discurso.

As Não coincidências do discurso consigo mesmo é outro campo de não coincidência, e esta se manifesta por formas que indicam a presença de palavras pertencentes a outro discurso. Conforme afirmou Teixeira (2005, p.160) citando Authier-Revuz (1991), “trata-se de uma interdiscursividade mostrada”, em que o sentido que aí se constitui, reverbera-se a partir de outro lugar.

Nesse ponto, cabe destacar que Authier-Revuz (1998) relacionou a não coincidência interlocutiva e a não coincidência do discurso consigo mesmo ao dialogismo bakhtiniano. Na primeira, sua relação está afetada às pessoas e ao peso sócio-histórico das palavras. Já na segunda, refere-se ao dialogismo pelo fato de considerar que toda palavra, por se vincular fortemente ao já dito, é sempre povoada pelo discurso outro (TEIXEIRA, 2005). A noção pecheutiana de interdiscurso

também se faz presente nesse tipo de nãocoincidência, uma vez que essa noção “sustenta o princípio de que toda palavra é determinada por algo que fala, em outro lugar, independentemente” (TEIXEIRA, 2005,p.162).

As não coincidências entre as palavras e as coisas são representadas pelas buscas e pelas hesitações em prol de uma palavra plausível a ser empregada para nomear a coisa. Em conformidade com as considerações de Teixeira (2005, p. 161), observamos que essa ocorrência de não coincidência diz respeito à “oposição entre a língua – sistema finito de unidades discretas - e as infinitas singularidades do real a nomear”, ou ainda, em termos lacanianos, da captura do objeto pela letra. Trata- se, portanto, da busca da palavra que, supostamente nomeie o objeto.

Para finalizar nossas considerações sobre o campo das não coincidências do dizer, destacaremos, agora, o caso das não coincidências das palavras consigo mesmas. De acordo com Teixeira (2005, p.161), estão inclusas nesse tipo de não coincidência “formas que aceitam, rejeitam ou especificam o sentido a ser entendido, em função de haver fatos de polissemia ou homonímia”. Compreendemos, portanto, que o locutor procura um sentido para uma determinada palavra excluindo os outros sentidos possíveis.

Portanto, esses dois últimos tipos de não coincidências são empreendidos por Authier-Revuz (1998) a partir de sua leitura sobre a perspectiva do real da língua, segundo propôs Lacan no campo da Psicanálise. Sendo assim, como destacou Teixeira (2005, p.162), esse real pode ser analisado “como forma de um lado, e como espaço de equívoco de outro”.

A partir da discussão que aqui apresentamos, compreendemos que o estudo das não coincidências do dizer será relevante para nosso trabalho de análise. De modo mais específico, para analisarmos as entrevistas semiestruturadas, nas quais os informantes da nossa pesquisa se veem às voltas com as não coincidências que emergem, no fio do discurso, quando do momento de tecer comentários, explicar os mal entendidos, isto é, as falhas no discurso.

Desse modo, por fim, compreendemos que as não coincidências serão uma base teórica que nos possibilitará perceber como o sujeito do discurso produz a “negociação” da heterogeneidade que o constitui na condição de sujeitos de linguagem.

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Neste capítulo, apresentamos os procedimentos teórico-metodológicos que foram particularizados e construídos por nós, quando do momento de compormos o nosso modo procedimental em relação à teoria a que filiamos e ao trabalho analítico do material a ser analisado.

Sendo assim, cumpre enfatizar que as incursões teórico-analíticas delineadas neste trabalho são tributárias da perspectiva discursiva de base pecheutiana, sem descuidar das próprias relações conceituais com outras perspectivas que essa base comporta. No caso específico de nossas incursões, o viés das heterogeneidades enunciativas, proposto por Authier-Revuz (1998, 2004), configura como uma relação conceitual bastante promissora para a construção de nosso trabalho analítico.

Diante disso, é oportuno ressaltar que a questão da materialidade linguística desempenhou relevante papel no desenvolvimento deste estudo, no sentido de que, a partir dela, produzimos um movimento contínuo de descrição-interpretação no trabalho de análise.

Dessa forma, levando em conta nossa questão de pesquisa que está intimamente relacionada com o propósito de investigarmos o modo como surdo se constitui ou é constituído como aluno na sala de aula de Língua Portuguesa, delineamos como “fio condutor” de nossas análises o seguinte ponto: o modo como se apresenta, na escola regular pesquisada, a questão da Educação Inclusiva7, vislumbrando nesta, a implicação da instância “professor” e a do “intérprete” no processo de endereçamento à instância “aluno surdo” em tese, e, em decorrência disso, abordar, de modo mais específico, a maneira como o surdo parece se assumir na posição de aluno nesse “jogo de endereçamento”.

Assumirmos aqui a perspectiva discursiva de base pecheutiana significa dizer que nosso foco analítico se orientou para a abordagem da pluralidade de filiações

       7

Algumas considerações sobre essa questão ganharam relevo na Introdução e no Primeiro Capítulo deste trabalho.

históricas que parecem constituir os participantes da pesquisa. Isso exige considerar que o suposto domínio do dizer pelo sujeito (tomado, aqui, como discursivo), recebeu um estatuto de problematização, pois pensar (e analisar) a perspectiva de pluralidade de filiações históricas abriu vias, na esteira de Pêcheux, para dimensionarmos a questão de que, ao enunciar, o sujeito se enuncia.

Frente a isso, é preciso enfatizar que a concepção de sujeito, aqui abordada, não é a de sujeito empírico, mas a de um sujeito tomado como posição discursiva. Inclusive, essa perspectiva de que, ao enunciar, o sujeito se enuncia, nos permitiu analisar a questão da contradição que lhe é constitutiva e que, discursivamente, marca-se por meio de algumas tomadas de posição ideológica, conscientes ou não.

Considerados os referidos apontamentos, passamos ao desenvolvimento das seções que compuseram nosso capítulo metodológico.

No documento DO SURDO NA ESCOLA (páginas 87-92)