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Nomeação: entre a univocidade e a equivocidade

No documento DO SURDO NA ESCOLA (páginas 57-62)

À luz dos trabalhos de Milner (1983), compreendemos que toda nomeação traz embutida em seu ato a constituição de realidades, dados os possíveis sentidos e os espaços socialmente organizados que aquela encerraria.

Com isso, a partir de uma leitura acerca das três suposições RSI – Real, Simbólico e Imaginário -, Milner (1983) evidenciou que as realidades se apresentam anuançadas de uma complexidade, a qual não seria possível de ser dimensionada tão somente pela nomeação, isto é, pela instância da linguagem.

Assim, de acordo com esse teórico, ao tomarmos a questão da nomeação sob o viés dessas três suposições, essa complexidade se especificaria por meio do que ele chamou ali de hiância. Isso porque a conjugação da nomeação a essas três suposições implicaria assumir a especificidade que cada suposição imprime para o próprio ato de nomear; ou seja, uma suposição não subsumiria a outra, restando ao ato de nomear sempre um hiato entre linguagem e mundo. Eis, a seguir, uma passagem do texto de Milner (1983, p. 8-9) sobre a qual repousam as referidas observações:

[...] nenhuma das suposições é acessível a partir de nenhuma das outras. Assim, nada das similitudes de I é acessível para representar o discernível da suposição S: é obrigatório aqui um discernível puro que não deva nada ao semelhante nem ao dessemelhante e seja indiferente a toda propriedade distintiva. Pois as propriedades vêm, aliás, refratar imaginariamente o que o simbólico secamente distingue. Da mesma forma, nada de R pode se obter nem de I, nem de S; hiância intransponível que, nem bem nem mal, se escreverá em S, isto é, em alíngua, por uma negação – não se escrever, não se dizer, não há todos, não há relações, não há semelhante, nem propriedades, nem classes.

Por isso, nos termos deste trabalho, parece ser possível afirmar que o movimento de atribuição de alguns lexemas – via um ato de nomeação – já produziria um impacto para a produção de realidades acerca da questão da surdez. É o caso ilustrado nas seções anteriores e que, abaixo, recuperaremos algumas nomeações.

Nesse sentido, a perspectiva da nomeação apresenta-se relevante para o nosso trabalho. Isso porque, ao longo da trajetória de nossas leituras sobre essa temática, fomos percebendo que, ao tratarem sobre a questão da surdez, os autores pesquisados, na tentativa de atribuir novos sentidos sobre a temática em tela, faziam-no por meio de nomeações.

É possível perceber isso, inclusive, a partir da própria maneira de se referirem ao ser acometido pela surdez: mudo, surdo-mudo, portadores de necessidades especiais, deficiente auditivo, surdo. Com base nessas nomeações, entendemos que estas são frutos do desenrolar do percurso da história da educação dos surdos, sempre com o intuito de atribuir novos sentidos a essa temática.

Cabe aqui ressaltar que não é nosso objetivo questionar a importância de se atribuir nomeações à questão da surdez, por exemplo.

Ao contrário, compreendemos que ela se torna, em certo sentido, necessária até mesmo pela perspectiva de que, via nomeação, organizamos e estabilizamos, socialmente, certos espaços, dados os efeitos ali do registro do Imaginário. O nosso investimento nessa temática, neste ponto do trabalho, justifica-se pelo fato de entendermos que, convivendo com a suposta univocidade, haveria acirradamente a dimensão da equivocidade, também constitutiva do ato da nomeação.

Sendo assim, comprometidos com a abordagem produzida por Milner (1983) sobre a nomeação, é possível destacar que todo ato de nomear produz um gesto de corte que, por sua vez, engendra, sempre, a manifestação de uma equivocidade,

dado ali o retorno perturbador do resto. Ou seja, de acordo com Milner (1983), apostar tão somente na frutiferidade da nomeação seria assumir o semblante da univocidade, de modo a descomplexificar as implicações que decorrem das suposições RSI, para a questão da nomeação.

Vejamos mais adiante outra passagem do texto de Milner (1983) que nos auxiliou a pensar nessa tensão produtiva entre univocidade e equivocidade, frente à questão da nomeação. Neste ponto de seu texto, o referido autor associou esse binômio com outro binômio: língua e alíngua. Para ele, a língua comportaria e engendraria os efeitos daquilo que faz laço, assegurando, assim, a (re)criação de uma Realidade. A alíngua estaria para a ordem de perturbação daqueles efeitos discernidores de língua, pois aquela dimensionaria fortemente o entrelaçamento contingente de RSI. Eis, textualmente, a passagem que nos referimos há pouco:

[...] toda língua é em si mesma o termo derradeiro das diferenciações que eles são possíveis. Mais uma vez, revela-se que, apesar da aparência, não havíamos escapado à demanda de um ponto de referência exterior: aquele que construiria se fosse possível, a diferenciação máxima e os termos mínimos de I. Ora, em I o processo só pode ser estritamente infinito e só pode encontrar seu fim no limite sonhado. Por isso, embora persigamos de modo insistente o paralelismo das diferenciações nunca chegamos ao lugar onde, supostamente levadas, ambas, até seu termo final, assegurariam que um nome é também o nome de uma significação, sem recobrimento nem equivoco (MILNER, 1983, p. 36).

No caso da temática em foco, é possível dizer que as diferentes nomeações sobre a surdez foram (re)criando certos efeitos de sentidos para essa questão, conforme já destacamos anteriormente a partir dos trabalhos de alguns teóricos especializados em tal tema. Vimos, com base em certos autores, uma abordagem sobre a surdez, via atribuição de nomes, desde a alusão disso como “deficiência” até a perspectiva que buscou promover certo deslocamento dessa ideia. Ressaltamos que, em Milner (1983), encontramos uma via possível para pensarmos e analisarmos o engajamento dos humanos que construíram e/ou engendraram a nomeação. Mais: toda nomeação promove, por sua vez, certas consequências sócioculturais para aqueles que a construíram.

Por fim, como tentamos mostrar nas considerações anteriores, há uma vastidão de produções discursivas sobre a surdez, desde uma visada mais neurolinguística até uma mais sociointeracionista, que nos autorizaram evidenciar

que a surdez não se confundiria, jamais com a perspectiva de retardamento cognitivo.

3 ARCABOUÇO TEÓRICO

Neste capítulo, levando em conta nossa filiação teórico-analítica ao campo da Análise de Discurso Francesa (de orientação pecheutiana), mais notadamente à terceira época da análise de discurso, trataremos das questões teóricas que servirão de base para pensarmos e, a partir daí, analisarmos a nossa questão de pesquisa, a qual diz respeito à (im)possibilidade de o surdo se constituir (ou ser constituído) aluno no espaço discursivo de sala de educação inclusiva.

Dessa forma, entendemos que o campo discursivo nos permitirá mostrar, de certa maneira, o modo como o jogo de endereçamento entre professor, intérprete e surdo pode indicar, por sua vez, a (im)possibilidade de este se constituir ou ser constituído como aluno em sala de aula, dada a assunção (ou não) das posições discursivas que ali estão implicadas.

Aqui ser-nos-á necessário, dada a possibilidade epistemológica do próprio campo discursivo, recorrer à perspectiva da Linguística da Enunciação – a partir dos trabalhos da linguísta Jacqueline Authier-Revuz (1998, 2004) –, com vistas a analisar as possíveis implicações da instância enunciativa na produção discursiva daqueles envolvidos na situação de sala de aula de educação inclusiva.

Desse modo, ao aproximarmo-nos dos trabalhos de Authier-Revuz para pensar a questão da produção linguageira, entendemos que a instância enunciativa nos possibilitará enfocar aquilo que (ir)rompe, pela via do excesso e/ou da falta, o sentido pretendido pelo sujeito do dizer (e que lhe escapa). Assim, o construto teórico das heterogeneidades enunciativas, das não coincidências do dizer e das modalizações autonímicas nos permitirá apreender, em termos de funcionamento discursivo, possíveis aspectos deflagradores de que o sujeito se constitui na e pela linguagem, naquilo que a opacidade da linguagem permite manifestar de traço subjetivo.

Além disso, entendemos em termos de aporte teórico que a articulação teórica entre Análise de Discurso e Psicanálise freudo-lacaniana, segundo propôs epistemologicamente o próprio Pêcheux, abre vias para enfocarmos que a relação

entre professor, intérprete e aluno surdo se ancora em um laço social, que, como mostraremos no capítulo de análise, comporta uma configuração bem específica

No documento DO SURDO NA ESCOLA (páginas 57-62)