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As narrativas e a análise qualitativa da compreensão

TABELA 4 Índice a : Índice b:

6.2. A compreensão verbal na situação de menor intervenção do adulto

6.2.1. As narrativas e a análise qualitativa da compreensão

Yu. (6a.3m.) inicia sua estória assim: “O cavalinho medroso quando o amigo falô para ele (o quê?) resolveu fugir”. Yu. despreza a ordem dos fatos que poderiam explicar a fuga do personagem, bem como o conteúdo desta fala do amigo, e não considera a necessidade de apresentar a um ouvinte, ainda que imaginário, quais são os personagens, o que fazem, o cenário da ação, etc. Essa abertura da sua reprodução do relato indica falta de modelos da estrutura narrativa, sendo que Yu. não se coloca como um narrador frente à estória, mas como um explicador, o que o torna cuidadoso em explicitar as relações causais: Quando ele tava com esse saquinho, não tinha mais medo de nada...; quando ele tinha medo, tinha medo até de um ratinho; quando perdeu o medo podia lutar contra o dragão e salvar princesas.

A explicitação da ordem temporal e do sujeito das ações é difícil, ocorrendo imprecisão dos pronomes e omissões: quando o Fernando (o dono) estava arrumando ele (quem?) para lutar, ele (quem?) já estava lá". Na verdade, é o cavalo que já estava lá, disposto para lutar, quando seu dono chegou para preparar sua montaria. Observa-se nesta seqüência e na seguinte o uso de associações livres, construindo série de justaposições: ...o cavalinho já estava lá e prá salvar princesas de cabelo loiro e comprido. Há também um acréscimo quando o dono do cavalo ganha um novo nome, atualmente bastante conhecido: E daí o Fernando Henrique e o cavalo ficaram felizes para sempre. Observa-se aqui o uso de uma finalização convencional que proporciona uma conclusão à narrativa.

Mar. (6a.7m.) é muito cuidadosa ao introduzir a narrativa e oferecer

informações sobre o personagem principal; no entanto não explicita a relação entre suas ações (fugir de casa) com as atividades de seu dono (lutar contra dragões), fazendo uma justaposição de cenas: “Daí o Dom Fernando pegou outro cavalo. Daí ele saiu com o outro cavalo. O Babioca, ele fugiu”. A relação entre a perda do saquinho mágico e a nova coragem do cavalinho se resume a uma justaposição de afirmativas onde os pronomes permanecem obscuros: “Daí ele (Babioca) viu que perdeu o saquinho e depois ele (o dono) viu que Babioca estava andando sozinho e ficou feliz e o Babioca ficou mais feliz ainda”. Aqui ocorreu um acréscimo ao texto a partir da interpretação de uma gravura do livro, que não ajuda o ouvinte: “viu que Babioca estava andando sozinho”, significando que Babioca não tem mais medo. Outra referência à ilustração como acréscimo ocorre em: ...e o Babioca corria muito, muito forte que o Dom Fernando teve que segurar o capacete .

Verifiquei em alguns trechos a imprecisão no uso dos pronomes e a ocorrência de omissões e acréscimos: e daí ele (quem?) matou (quem?) e salvou a princesa; daí ele (quem?) viu que perdeu o saquinho e depois ele viu que o Babioca estava...

Mar. demonstra ter consciência de modelos narrativos, ao iniciar e finalizar sua estória de forma convencional. Além disso coloca o plano interno da narrativa, relacionado com os sentimentos dos personagens, ao lado do plano externo, de explicação/descrição.

Nat. (6a.2m.) mostra a ordem temporal dos fatos e as relações que

explicam a motivação do personagem, ainda que usando a expressão “e daí” para expressar ambos os aspectos lógicos: “Daí o cavalo contou pro Babioca as aventuras e as brigas que havia com ele, daí (por isso) o Babioca ficou com medo e resolveu fugir.”; “O Babioca tinha medo de tudo e daí (por isso) ele tinha medo de ser escolhido pra lutar contra os dragões; ... ela colocou no pescoço de Babioca e daí (por isso) ele não resolveu fugir e foi para casa.”; "No dia seguinte, o dono dele foi... e já tava tudo arrumado e ele teve uma surpresa que (porque) o Babioca tava com uma coragem. Observa-se o uso de ligações de justaposições, mas preservando a ordem natural e lógica da narrativa, sem incorrer em associações livres. Também mostra atenção para as relações espaciais. "Daí, ele passou em frente de uma casa, perto de um ratinho".

O mais interessante na produção narrativa de Nat. é que ela expressa com muita precisão o problema central da estória, que escapa à maioria das outras crianças: Babioca tinha medo de tudo e daí ele tinha medo de ser escolhido para lutar contra os dragões. Sua narrativa resulta num todo coerente e bem concatenado, pois explicita todas as relações do relato, organizando a seqüência de começo, meio e fim.

Jo. ( 6a.3m.) despreza a ordem de sucessão dos fatos que possam auxiliar o ouvinte na compreensão do relato. Inicia sua narrativa com uma resposta direta a

minha pergunta sobre o que dizia a estória: “Falava que ele era medroso, aí diz que uma moça deu um saquinho para ele”.

Em sua narrativa, ocorreram várias distorções do texto original, com uso de associações livres entre as partes, ordem insólita e construções sintáticas estranhas: (após ganhar o saquinho mágico ) “... aí ele não queria ir prá casa dele, ficou muito medroso de ir”. Na verdade, ocorre o contrário, o cavalinho volta para casa. “Depois, quando ele estava andando à noite, aí ele estava com o dono dele. De dia, ele estava com o dono dele, ele (o dono) estava montado no cavalo”; “Depois quando eles estavam indo para casa, encontrou uma princesa ...”; “... ele não ficou mais medroso, salvou todo mundo até o dono dele.” Muitas dessas “ invenções” de Jo. ocorrem por conta das interpretações que faz das ilustrações, às quais ela recorreu para dar conta da narrativa. No entanto, Jo. consegue explicitar a relação entre a perda do saquinho e a nova coragem do cavalo: “aí ele viu que perdeu o saquinho dele, aí ele não ligou, deixou o saquinho ‘prá manhã’ (?); aí depois, ele não ficou mais medroso, aí ele nem precisava daquele saquinho mais e ficou alegre".

A narrativa de Jo. é mais uma descrição das gravuras do que uma construção de significado. Ao apoiar-se nas imagens e não no texto que lhe foi comunicado, produz um relato incoerente e distorcido. Apesar de suas dificuldades com a estrutura narrativa convencional e a seqüenciação dos eventos, Jo. mostra ter já uma certa consciência do plano interno do discurso narrativo, explicitando as mudanças de atitude do cavalinho e seus sentimentos (com medo, sem medo, alegre).

Lu (6a.3m.) demonstra o uso de estrutura convencional para dar início a sua narrativa e observa a seqüenciação de começo, meio e fim: “Era uma vez um cavalo muito medroso que ele tinha medo de tudo, até do escuro e dos ratos e dos dragões que soltavam fogo”.

Usa o “aí” para marcar as seqüências temporais, que estão bem nítidas no seu relato, embora as motivações do personagem e as relações causais permaneçam obscuras, com um claro uso da justaposição: “Mas um dia ele resolveu fugir (por quê?). Aí ele viu um rato atrás dele. Aí ele ficou gritando, aí uma feiticeira ajudou ele. Pôs um saquinho de ervas no pescoço dele, aí ele não ficou com mais medo”. A expressão “aí” indica tanto a ordem como a causalidade, pois Lu sabe que o saquinho era mágico. “Aí o Babioca enfrentou os dragões e salvou princesas e também ele perdeu o saquinho de ervas, aí ele não ficou com mais medo.”. Tanto ganhar como perder o saquinho tem o mesmo efeito (de perder o medo), embora Lu tenha compreendido que o personagem ganhou uma nova coragem, como ele explica depois: “pegou a mágica nele”.

A finalização de sua narrativa fica reduzida apenas à resolução do conflito, ”aí ele não ficou mais com medo”, demonstrando como Lu. não coloca ênfase no plano interno da estória, limitando-se a uma descrição da seqüência de eventos.

Marc. (6a.9m.) já apresenta uma forma bastante elaborada para explicitar as relações causais, evitando o “e daí...”: “E de tanto escutar o outro cavalo contando

as histórias, ele decidiu fugir”, embora o conteúdo de tais histórias não esteja explícito. Para explicar o encontro com a feiticeira e suas conseqüências, Marc. usa formas decididamente literárias, nada do discurso coloquial. Observa-se a atenção de Marc. para as seqüências temporais da narrativa: “Então ela (a feiticeira) decidiu ajudar. Primeiro convidou-o para entrar na sua casinha, depois preparou um saco com ervas mágicas. Depois de preparar, amarrou tudo no pescoço do cavalo e então ele voltou para casa. Já estava escuro quando ele decidiu sair e ele não ficou com nenhum medo”. Pode-se observar neste mesmo trecho a integração entre o plano descritivo e o plano psicológico da narrativa, com a compreensão das intenções e sentimentos dos personagens.

Marc. não usa a expressão “e daí...” como as outras crianças, pois para ela as relações temporais e as causais são diferenciadas entre si, ao mesmo tempo que são levadas em conta em seu relato. Fica evidente o uso do então, depois, e daí com função de expressar relações lógicas, e não como forma de preencher a narrativa com ligações de justaposição.

6.2.2. Resultados da análise qualitativa da compreensão verbal na