• Nenhum resultado encontrado

As narrativas e seus fragmentos (a história que escolhemos inventar)

No documento C iênCia da i nformação (páginas 52-59)

A ciência? Uma ficção entre outras.

Toffin

C

omo lembram Buckland e Liu (1995), a historiografia epistemológi-ca em CI não representa uma área madura. Porém, mesmo a autoria não con-sultara uma historiografia crítica e horizontal para dizê-lo. Desta maneira, pode-mos observar que, quando uma outra grande tradição epistemológica começar a se sedimentar a partir de um encontro possível de discursos simultâneos, a memória meta-científica dos estudos informacionais ainda dependia de maiores expedições, reflexões e registros.

Em 1975, Wersig e Nevelling lembravam, do mesmo modo, que era tardia a entrada das investigações sobre a “ciência da ciência” dentro da CI. Essas evidên-cias colaboram para a compreensão pelos diferentes modos de abordar as origens da área dos estudos informacionais, seja como ciência oriunda da Biblioteconomia, ou ciência que nasce do encontro da Recuperação da Informação e da Documen-tação, dentre outras. Em paralelo com a questão, Wersig e Nevelling (1975) nos chamam atenção para o fato de que disciplinas como ciências sociais, ciência da ciência e teoria da comunicação entram atrasadas na discussão sobre a CI. Do mes-mo mes-modo, Guzmán Goméz (2005) demes-monstrará que dentro das disciplinas que se aproximarão da legitimação e institucionalização de uma “ciência da informação” não aparecerão a Antropologia e a Sociologia.

É noção comum encontrar o início da historiografia da CI ligado ao contexto da Segunda Guerra Mundial, como visto nas cartografias apresentadas anterior-mente. Como em Goffman (1975, p. 3), as origens da CI estão relacionadas com a proliferação de publicações científicas no pós-guerra – assim, um grupo de cien-tistas se dedicará a tratar da “explosão informacional” e dos problemas críticos

da comunicação científica. O período da guerra foi marcado pela emergência da necessidade de informações imediatas e eficientes. O desenvolvimento da com-putação está, assim, intimamente ligado à corrida pelo controle e o intercâmbio restrito de informações.

Desta maneira, muitos dos problemas da “explosão da informação” poderiam ser resolvidos substituindo processadores humanos por computadores que podiam responder a esta emergência de forma mais “precisa” e “eficiente” (GOFFMAN, 1975, p. 4). Esta noção comum ultrapassa a evidência de que, antes de uma ciência, o que aparece no bojo da Segunda Guerra Mundial é um complexo de narrativas, estruturado em uma filosofia representacional, que procurará legitimar um novo termo, “ciência da informação”, para velhas práticas, institucionalizando-o sobre organizações que realizavam estas últimas.

No contexto de sua origem institucional e terminológica, a CI aparece envolvi-da em um complexo movimento de transformação

das sociedades contemporâneas que passaram a considerar o conheci-mento, a comunicação, os sistemas de significado e os usos da linguagem como objetos de pesquisa científica e domínios de intervenção tecnoló-gica. Poderíamos dizer que ao mesmo tempo em que entravam em cri-se alguns dos pressupostos epistemológicos que legitimavam a imagem da ciência moderna, começava a se formar esse novo campo científico que assumiria uma parte importante do meta-discurso ocidental sobre as ciências, discurso que seria construído agora a partir de resultados formalizados da produção de conhecimentos e conforme metodologias observacionais e quantitativas. A Ciência da Informação constituir-se-ia assim, ao mesmo tempo, como uma nova demanda de cientificidade e como um sintoma das mudanças em curso que afetariam a produção e direção do conhecimento no ocidente. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2000, p. 2)

Para Freire (2006), a área tem como marco-zero a utopia de Otlet e La Fontaine sobre “o valor e a universalidade da documentação”, utopia que dizia respeito a uma preocupação básica da sociedade contemporânea, de desenvolver métodos para armazenar o conhecimento registrado e torna-lo disponível. Para Loureiro (1999), como para Pinheiro (1997), a construção da CI parte de momentos diferenciados, ligados aos encontros discursivos da bibliografia/documentação e da recuperação da informação.

Por sua vez, para Le Coadic (1996, p. 2), a CI tem uma origem anglo-saxônica, originada, em seu primórdio elementar, a partir da Biblioteconomia. Por isso, seu

objeto de estudo inicial esteve ligado à informação sediada em bibliotecas públicas, universitárias, especializadas, bem como centros de documentação.

A leitura pública e histórica do livro constituiu então a matéria dos pri-meiros estudos que foram realizados. Mais tarde, a informação referen-te às ciências, às técnicas, às indústrias e ao Estado tomou a dianreferen-teira sobre esses assuntos, dinamizada pelo advento da tecnologia da infor-mação e as necessidades crescentes de inforinfor-mação dos setores científi-cos, técnicos e industriais, bem como do grande público. (LE COADIC, 1996, p. 2-3)

Para o historiador informacional francês, a nascitura “sociedade da informa-ção” – expressão visivelmente fundamentada pela crescente indústria informacio-nal, lembrada também por Buckland e Liu (1995) – necessitava de uma ciência para atender suas demandas (LE COADIC, 1996). Assim, a CI surge a partir da trí-plice influência: “desenvolvimento da produção e das necessidades de informação científica e técnica”; “surgimento de um setor industrial das indústrias de informa-ção”; e “surgimento das tecnologias da informação”.

Estas mudanças teriam provocado movimentações epistemológicas que reo-rientaram as unidades de investigação dos estudos informacionais, do livro e da biblioteca em Biblioteconomia, da bibliografia em Documentação, dos documen-tos administrativos em Arquivologia e do objeto em sua unicidade em Museologia, para “apenas” a informação. Esta “informação” nada mais era que um outro termo para discutir a meta-representação realizada por estas disciplinas, artes, ciências ou técnicas. No plano da CI, um termo utilizado inicialmente para delimitar a meta--representação de cunho tecnológico e científico.

Para Capurro (2003a), a CI apresenta duas raízes gerais:

Uma é a biblioteconomia clássica ou, em termos gerais, o estudo dos problemas relacionados com a transmissão de mensagens, sendo a ou-tra a computação digital. A primeira raiz nos leva às próprias origens, certamente obscuras, da sociedade humana entendida como um entre-laçamento ou uma rede de relações [...]. A outra raiz é de caráter tecno-lógico recente e se refere ao impacto da computação nos processos de produção, coleta, organização, interpretação, armazenagem, recupera-ção, disseminarecupera-ção, transformação e uso da informarecupera-ção, e em especial da informação científica registrada em documentos impressos.

Os seguintes momentos – eventos –, na história dos estudos informacionais de Robredo (2003), são delimitadores da ideia de origem da CI:

a) dos pioneiros da documentação à Primeira Guerra Mundial (movimento da documentação, reflexos do trabalho de Paul Otlet, Henri La Fontaine e outros, em que se pensa um esforço mundial para o controle dos documen-tos);

b) o período compreendido entre 1919 e a Segunda Guerra Mundial (perío-do de constituição (perío-do Instituto Internacional de Documentação – IID –, invenção da biblioteca portátil de microfilmes; é publicado o Tratado de Documentação, de Otlet);

c) do pós-guerra até a Conferência Internacional sobre Informação Científi-ca, em 1958 (grande movimentação em torno do fenômeno da “explosão informacional”; há, a partir de Bush, uma campanha para desenvolver uma teoria que possibilitasse o acesso aos documentos; consolidação da Ameri-can Documentation Institute – ADI; bibliotecários generalistas e documen-talistas coexistem nas profissões da informação; o conceito de CI começa a se generalizar);

d) o ínterim dos anos 1960 e 1980 (fase de discussões sobre a definição da ciência da informação; início da publicação do Annual Review of Informa-tion Science and Technology – ARIST; Borko publica sua clássica definição de Ciência da Informação, nada mais do que a reprodução do discurso biblio-teconômico presente nos encontros do Instituto de Tecnologia da Georgia no início da mesma década; o ADI altera seu nome para a então American Society of Information Science – ASIS);

e) e a contemporaneidade considerada pelo autor a partir dos anos 1990. Robredo (2003) apresenta, em sua memória dos mitos de origem da CI, o argu-mento crítico que refuta as raízes dos autores que procuram remontar esses passos a partir dos babilônicos, das tabuletas de argila, da Biblioteca de Alexandria, dos papiros e incunábulos, além da imprensa de Johannes Gutenberg. No pensamento do pesquisador, esta linha evolutiva é um tanto “forçada” – e a história não parte daí, mas de eventos paradigmáticos. Assim, para Robredo (2003), há fatos baliza-dores na idade que determinam a origem da CI – e seriam estes representantes do nosso horizonte mais remoto.

Como já exposto, partimos de um outro olhar. Não será objeto de discussão do trabalho, mas a própria ideia de uma tradição pragmática, aqui sob a luz de uma epistemologia da imaginação, reflete uma concepção de ciência que não parte de eventos emblemáticos dentro da linguagem científica, mas de heranças de um

mundo ordinário, laços do cotidiano que um dia, reunidas em alguns contextos, separadas em outros, serão conhecidas e sedimentadas sob o termo “ciência da informação”. Ao invés de “forçada”, para esta pesquisa, pensar as origens da CI a partir de vestígios remotos da necessidade de classificar, organizar e dar significa-dos – mitos de fundação –, como também da institucionalização destes processos, constitui as origens das disciplinas da informação.

Também Shera e Cleveland (1977) apontam eventos importantes na constru-ção da CI, eventos dentre os quais, recuperados por Pinheiro (2002, p. 68-69), es-tão a criação do Instituto Internacional de Bibliografia (IIB), em 1895; a transfor-mação do IIB, em 1931, em Instituto Internacional de Documentação; em 1935, a publicação do Tratado de Documentação, de Paul Otlet; em 1937, a fundação do American Documentation Institute (ADI), posteriormente chamado de ASIS; e em 1938, alteração do IIB para Federação Internacional de Documentação.

Em resumo, Pinheiro (2002, p. 72) representa a história do nascimento da CI a partir

a) “do avanço científico e tecnológico, principalmente em função da 2ª Guerra Mundial e, consequentemente, a “explosão bibliográfica”;

b) “a necessidade social, histórica, cultural e política do registro e transmissão dos conhecimentos e informações, produto do processo de desenvolvimen-to da Ciência e da Tecnologia”;

c) “o surgimento de novas tecnologias a partir do microfilme e, principalmen-te, do computador”.

Goffman (1970) observa que a “explosão informacional” vivenciada após a Se-gunda Guerra Mundial começou a tomar lugar na sociedade e os problemas críti-cos relativos à comunicação alcançaram a comunidade científica. Simultaneamente, convivia-se com o desenvolvimento de tecnologias, fruto das experiências do tempo da guerra, que contribuíram para o contexto de identificação de soluções para a ex-pansão de conteúdos informacionais – enquanto, há quinhentos anos, com a enge-nharia de Gutenberg veríamos a expansão demográfica de objetos informacionais. Segundo Saracevic (1996), três são as características estruturais que consti-tuem a razão de existir da CI e definem as causas de sua evolução: trata-se, em primeiro lugar, de uma área que nasce da ampla troca interdisciplinar; em segundo lugar, seu surgimento também está intimamente relacionado com a aparição das tecnologias da informação e comunicação; e, por último, a CI é participante direta da história recente da chamada sociedade da informação e, por isso, desenvolve-se e problematiza-se junto da modernização e das rupturas sociais desta.

serão “localizados” no bojo da revolução técnica e científica que cerca os anos an-teriores à Segunda Guerra Mundial. Em um enfoque específico, esses passos são marcados, segundo Saracevic (1996), pelo pensamento de Vannevar Bush diante da preocupação com a “explosão da informação”. Em 1945, Bush procurará um mecanismo técnico, a construção de uma máquina, para solucionar os problemas ligados a essa propagação incontrolável de informação (SARACEVIC, 1996).

Uma vez inseridos no contexto da chamada “explosão informacional”, diversos pesquisadores de diferentes áreas voltarão seus olhares para a construção de saí-das para a rápida produção e dispersão do conhecimento. Como afirma Le Coadic (1996, p. 2),

o desenvolvimento da produção de informações (informações gerais, científicas e técnicas) e de sistemas de informação tornou necessária uma ciência que tivesse por objeto de estudo a informação, ou seja, uma ciência da informação, bem como uma tecnologia e técnicas resultantes das descobertas feitas por essa ciência.

Desta forma, a informação começa a ser cientifizada – torna-se objeto de inves-tigação acadêmica e não apenas de práticas do mundo ordinário e de instituições que não levam ainda o nome de universidades – por vários ângulos, o que corrobo-raria, na prática, por um ângulo, a suposta origem interdisciplinar da CI. Le Coadic (1996, p. 22) enumera uma série de disciplinas fronteiriças, que se entrecruzam diante das preocupações da área, dentre elas: psicologia, linguística, sociologia, informática, lógica, economia, filosofia. Para Saracevic (1996), as áreas que mais evidenciarão essa interdisciplinaridade serão: Biblioteconomia, Ciência da Com-putação, Ciência Cognitiva e Comunicação.

Para Brookes (1980a), a CI se constrói ocupada em um oceano de aplicações práticas do senso comum – aplicações que envolvem cada vez mais o computador. Sua fundação, desta forma, descansa sobre o fundo falso de uma construção teórica – a “flutuação do limbo filosófico” no vocabulário brookesiano. Como uma episte-mologia da imaginação já observou, as bases ligadas a “explosão informacional”, à tecnologia da informação, à uma certa sociedade dita da informação, à emergência da interdisciplinaridade,, indicam apenas um praticalismo fundacional, a resposta instantânea por uma demanda, não a construção filosófica profunda e permanen-temente refundada. Assim, afirma Brookes (1980a), a CI não apresentou, em seus mitos originais, uma fundação teórica.

Wersig e Nevelling (1975) estão entre aqueles que veem o nascimento da CI a partir de modelos práticos, oriundos da Documentação e da Recuperação da

Informação. As áreas da aplicação, segundo os autores, estavam ligadas a Ciência da Computação, a Ciência das Bibliotecas, a Filosofia e Taxonomia, a Linguística, a Teoria da Informação, a Cibernética e a Matemática. Os pesquisadores observam que, diante do crescimento da complexidade de processos de comunicação social e do desenvolvimento das tecnologias, uma nova área (que nada tem de nova) é necessária para responder socialmente a um novo conjunto de expectativas (nada inéditos).

Como visto, grande parte dos historiadores da CI, mesmo aqueles que veem o nascimento desta vinculado à Biblioteconomia, identificam a formalização da área a partir da especialização de cunho tecnológico e científico, voltada para a resolução de problemas circunstanciais, ligados às questões específicas de meados do século XX, período marcado pela Segunda Guerra Mundial. No âmbito dessa formalização, o termo “ciência da informação” será apresentado a partir de diferen-tes olhares. Do seu aparecimento até a contemporaneidade, as definições se multi-plicaram e se dispersaram. Tratamos, a seguir, de uma linha compreensiva dessas composições, em paralelo com as tradições que permeiam a história recente desta área dos estudos de organização do conhecimento. Através da descrição das defi-nições e sua problematização, procuramos identificar os fragmentos das narrativas que vão tecendo uma certa tradição pragmática na epistemologia informacional, para posteriormente compreender a complexa memória institucional de legitima-ção destes termos.

É impressionante que todas essas narrativas, em geral, de modo a-sistemático, reproduzem uma historiografia sincrônica, ocultando a vasta produção de uma teoria crítica presente no campo nos anos 1960 – independentemente do nome do próprio campo. Podemos, por exemplo, recontar a mesma história dizendo como, ao contrário da criação de um dado saber disciplinado nos anos 1960, constitui-se ali nossa mais profícua teoria crítica, via epistemologia histórica, reconhecendo o papel de Gabriel Peignot na construção de nossa ciência no século XIX e a enor-me sistematização enor-metodológica de mais de 40 anos de pesquisa social de Nicolas Roubakine (1988a, 1988b), entre 1890 e 1930. Estamos aqui apenas apontando, em uma epistemologia horizontal, para outras décadas de pesquisa científica no campo: a tradição bibliológica fundada por Robert Estivals justamente na década crônica de 1960. É como se essa história simplesmente inexistisse.

5

No documento C iênCia da i nformação (páginas 52-59)