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CAPÍTULO III O CONFLITO DE INTERESSES E AS DISPUTAS DE PODER ENTRE

2. As organizações indígenas e a resistência

Em relação à causa dos povos indígenas no Brasil, a década de 1970 foi marcada pela realização de encontro de lideranças indígenas em várias regiões do país, a começar pela Assembleia de Chefes Indígenas em Diamantino/MT, em 1974, organizada pelos missionários do CIMI. Este evento foi o detonador de uma série de futuras iniciativas deste gênero e da criação de instituições de apoio à causa indígena (Centro Ecumênico de Documentação e Informação/CEDI, Associação Nacional de Apoio ao Índio/ANAÍ, Comissão Pró-Índio de São Paulo/CPI-SP, dentre outras).

Com o início da reabertura política nos anos 1980, foi criada a União das Nações Indígenas/UNI, em 1981, como resultado da iniciativa dos próprios povos indígenas,

267 Em período anterior, as populações indígenas foram decisivas para a constituição do atual território brasileiro.

Segundo Farage (1991), no século XVIII os índios do Rio Branco (Roraima)eram as “muralhas do sertão” ou “barreiras humanas” contra as invasões estrangeiras no vale amazônico durante o litígio sobre os limites territoriais internacionais entre o Brasil e a Inglaterra.

268 LIMA, 1995, p.132.

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particularmente dos líderes com experiência na militância política e partidária junto ao Estado e demais segmentos da sociedade civil. Diferente das instituições indigenistas, a UNI foi a primeira instituição composta e dirigida somente por indígenas, porém aberta ao diálogo com outras entidades.

Durante os 12 anos de sua existência, não obstante os altos e baixos de sua trajetória, a UNI se articulou com o movimento indígena da América Latina, ampliando o leque de alianças com entidades de apoio e representou os povos indígenas do Brasil em fóruns nacionais e internacionais. A entidade ganhou visibilidade e legitimidade social, a despeito da recusa da FUNAI em reconhecê-la como órgão representante legítimo dos povos indígenas, pois a Organização Indígena atuava independente dos enquadramentos do órgão indigenista oficial. A UNI teve ação destacada na criação e no fortalecimento do movimento indígena no Brasil, atuando de forma propositiva durante a Assembleia Nacional Constituinte (1987-88) a fim de assegurar a garantia dos direitos indígenas na Constituição de 1988, obtendo ganhos palpáveis como a eliminação do princípio integracionista.270

Lideranças indígenas do Alto Rio Negro tiveram ação destacada nas Organizações Indígenas de projeção nacional, como é o caso do Tukano Álvaro Fernandes Sampaio que ocupou a vice-presidência na primeira gestão da UNI, função na qual buscou articular a luta dos povos indígenas do Noroeste Amazônico com o movimento indígena no Brasil e na América do Sul.271

Em nível local, as perdas e os ganhos políticos que resultaram da mobilização indígena pela reivindicação da demarcação de terras e a luta contra a invasão de empresas mineradoras no território indígena, liderada pelos “capitães”, explicitou a necessidade da criação de entidades capazes de estabelecer negociações diretas com o Estado e com os demais segmentos da sociedade civil, propiciando, na década de 1980, a criação de Organizações Indígenas que hoje atuam na região.

270DEPARIS, Sidiclei Roque. União das Nações Indígenas (UNI): contribuição ao movimento indígena no Brasil

(1980-1988), 2007.

271Peres (2003, p. 151-153), a partir de depoimentos de lideranças indígenas, classifica como “ambíguo” o

desempenho de Álvaro Fernandes Sampaio na fundação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro, devido à ligação do mesmo, tanto com o movimento indígena nacional quanto com a cúpula militar do Conselho de Segurança Nacional. A documentação por nós consultada nos permite concordar com a afirmativa de Peres, pois a nova diretoria da AUCIRT (Associação da União das Comunidades Indígenas do Rio Tiquié), eleita em 24/12/1985, comunicou ao Chefe da Ajudância do Rio Negro-FUNAI que a citada liderança “e outros que vivem em Manaus não estão autorizados por esta comunidade do Rio Tiquié a falar em nosso nome...” (AUCIRT, 1986).

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A atuação social e política das lideranças indígenas do Alto Rio Negro remonta, pelo menos de modo mais explícito, à criação e gestão de cooperativas para a comercialização de seus produtos. Na década de 1970, foram fundadas as primeiras cooperativas indígenas no Alto Rio Negro, particularmente a União Familiar Animadora Cristã/UFAC (Centro Social Educacional UFAC a partir de 1975) em Pari-Cachoeira (rio Tiquié), em 1970, a Lideranças Indígenas do Distrito de Iauareté/LIDI, em 1973 (rio Uaupés), e a Cooperativa de Base Melo Franco272, em 1975, todas sob o controle e apoio financeiro da FUNAI e das Missões.

Por motivo de disputas políticas, ocasionadas por divergências internas e ingerências externas, a LIDI veio a cindir-se dando origem a União das Comunidades Indígenas do Distrito de Iauareté/UCIDI e desta, por motivos de disputas políticas pelo poder, surgiu a União das Nações Indígenas do Distrito de Iauareté/UNIDI. A luta por objetivos comuns, e a necessidade de somar forças, durante a Constituinte, possibilitou a convergência entre ambas.

A constituição e as transformações pelas quais passaram as associações indígenas de Iauareté assemelham-se ao que ocorreu em Pari-Cachoeira, a partir da UFAC. Esta cooperativa dispunha de roças comunitárias, uma despensa para comercialização de produtos industrializados e um barco de 14 x 3m com motor de centro para transporte e venda dos produtos indígenas em São Gabriel, cuja arrecadação era investida no melhoramento das condições de vida do Distrito de Pari Cachoeira.

Todavia, os membros da cooperativa não dispunham, por exemplo, de autonomia para decidir sobre a destinação do patrimônio da associação, caso a entidade viesse a ser dissolvida, pois os salesianos restringiram essa possibilidade no artigo 15 do Estatuto original, segundo o qual “em caso de extinção [da UFAC] os seus bens serão destinados à Missão Salesiana de Pari Cachoeira para serem aplicados nas mesmas finalidades”. Somente três anos depois esta cláusula seria alterada e a missão salesiana foi substituída por “...uma instituição congênere que esteja devidamente registrada no Conselho Nacional de Serviço Social”.273

A fundação destas cooperativas teve o mérito inicial de quebrar a hegemonia dos regatões nas transações comerciais e trabalhistas, as quais eram sempre desfavoráveis às populações locais, pois ambas eram baseadas, de um lado, por preços extorsivos e, de outro, pela exploração da mão de obra indígena. Para se firmarem como entidades representantes dos interesses dos

272 Sobre a Cooperativa de Base Melo Franco ver Oliveira (1981).

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índios, estas associações tiveram que enfrentar a discriminação, o preconceito e a retaliação por parte das autoridades de São Gabriel da Cachoeira, as quais ou eram aliadas dos comerciantes ou os próprios comerciantes eram as autoridades (prefeito, por exemplo), conforme denunciou uma liderança do rio Tiquié no jornal do CIMI: “notícias tristes também em relação à UFAC [pois] algumas autoridades em São Gabriel [da Cachoeira] quando recebem algum ofício do presidente da UFAC só vendo a assinatura rasgam. Por este motivo que leva os índios a não recorrerem às autoridades”.274

Nos anos 1980, em razão da estreita vinculação da UFAC com as Missões Salesianas, da malversação de recursos por parte dos dirigentes da entidade, das disputas políticas pelo controle da cooperativa e, particularmente, pela divisão social que a denúncia da ação salesiana no IV Tribunal Russel provocou entre as lideranças locais, a UFAC, então dirigida por ex-alunos da “antiga geração”, perdeu o apoio das lideranças nativas emergentes e veio a ser formalmente extinta em 1982, sendo substituída pela UCIRT (posteriormente AUCIRT).

Esta nova associação, fundada em 1984, passou a ser controlada por uma nova geração de líderes, como os irmãos “Machado”, os quais procuraram conduzir a nova associação de forma autônoma das ingerências da Missão Salesiana e para conseguir quebrar o isolamento imposto pelos missionários passaram de um extremo a outro, aliando-se aos funcionários da FUNAI e aos militares do Exército275. Esta nova associação passou a incentivar a retomada das tradições culturais e agir independentemente da igreja católica, por isso, sofreu a oposição da Missão Salesiana que, para neutralizar a ação da AUCIRT, provocou uma divisão no seio da comunidade, a partir do apoio que passou a conceder aos projetos e atividades desenvolvidas em torno do Clube de Mães, organização de mulheres de diversas aldeias para a produção de artesanato indígena.

As divergências motivadas por disputas políticas pelo controle das Organizações Indígenas - sejam das lideranças nativas entre si ou destes com as agências externas (igreja católica e Estado) - não era um caso exclusivo de Pari-Cachoeira. Novas associações foram criadas no Alto Rio Negro, especialmente nos anos 1980, a partir das dissidências nas

274 PORANTIM, 1979, p. 2.

275 No período 1986-89 a AUCIRT foi a principal interlocutora do governo federal para a implantação do Projeto

Calha Norte e das empresas mineradoras para a garimpagem em território indígena. A partir dos anos 1990, passou a sofrer a concorrência da União das Nações Indígenas do rio Tiquié/UNIRT, cujos membros discordavam do apoio da AUCIRT aos projetos governamentais.

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agremiações existentes, ocasionadas por discordâncias entre os líderes quanto à gestão das associações, à forma de encaminhamento das reivindicações das populações indígenas, particularmente, a demarcação das terras e a garimpagem em território indígena, junto aos representantes do Estado, da sociedade civil e da igreja católica.

Em Taracuá (rio Uaupés), por exemplo, a ACITRUT (Associação da Comunidade Indígena de Taracuá e Rio Tiquié) foi criada em 1989 para se contrapor a SOCITRU (Sociedade das Comunidades Indígenas Taracuá-Rio Uaupés), fundada dois anos antes, a qual apoiava o modelo de “Colônias Indígenas” em terras descontínuas proposto pelo governo federal por meio dos órgãos governamentais como a FUNAI e o Conselho de Segurança Nacional (CSN), no âmbito do Projeto Calha Norte.276 A ACITRUT, ao contrário, buscou o apoio da igreja católica (Prelazia e CIMI) e defendia a demarcação em terras contínuas e, por isso, passou a ser apoiada pela Associação das Mulheres Indígenas de Taracuá, rio Uaupés e Tiquié/AMITRUT, criada em 1989.

De modo semelhante, em Pari-Cachoeira, a diretoria da AUCIRT (Associação União das Comunidades Indígenas do Rio Tiquié), empossada em 1987, solicitou à FUNAI que entrasse na justiça contra a autorização concedida pela diretoria anterior à empresa Paranapanema para exploração de minérios em território indígena.277

A partir destes alinhamentos políticos das associações indígenas - umas gravitando em torno das instituições governamentais e outras ao redor da igreja católica e de segmentos da sociedade civil - podemos inferir que o movimento indígena no Alto Rio Negro ainda não havia conseguido sua unificação no final dos anos 1980. A polarização de posicionamentos e de métodos de atuação entre as diferentes associações em torno da demarcação das terras indígenas em faixas contínuas ou descontínuas e da autorização ou proibição à presença de empresas mineradoras em território indígena, como citado, era reforçada pelos conflitos de interesses entre o Estado, a igreja católica e os grupos econômicos.

Tais conflitos levaram o governo e os grupos econômicos a colocar em ação estratégias de não enfrentamento, mais ou menos sutis, e que consistiam em estabelecer um diálogo direto e individual com certo segmento de lideranças indígenas excluindo, dessa forma, a participação mais ampla das Organizações de base nos debates. Em decorrência disso, a cooptação incluía a

276 SOCITRU. Ofício 01/89, de 15/03/1989. 277 AUCIRT. Ofício, 1987.

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oferta de benefícios pessoais, ou para um grupo reduzido, durante reuniões realizadas em Brasília (governo federal) e Manaus (empresas mineradoras).

A interferência externa provocou o fracionamento das Organizações Indígenas dificultando, temporariamente, a constituição de um movimento unificado na luta pela defesa e garantia dos direitos dos povos indígenas no Alto Rio Negro, uma vez que as lideranças indígenas se viram forçadas a se alinhar ideologicamente em torno de blocos antagônicos.A fissão entre as associações indígenas de base era um conflito que a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro/FOIRN, fundada em 1987, ainda não conseguia administrar, conforme revela o ofício ao Administrador Regional da FUNAI em São Gabriel da Cachoeira:

A organização criada recentemente pela linha da Igreja [a ACITRUT] que é a linha política contra os trabalhos do governo, manipulada pelo CIMI e Federação Indígena do Rio Negro [FOIRN]... Estamos cientes e conscientes do apoio que estamos e vamos receber do governo e sintonizados junto à FUNAI, conquistamos com o nosso trabalho um futuro melhor para o Distrito de Taracuá [rio Uaupés].278

Em relação à interferência da igreja católica, até os anos 1980, pelo menos, era forte a ingerência das Missões Salesianas junto às Organizações Indígenas, dentre outros motivos, pelas próprias relações de poder estabelecidas ao longo do século XX (desde 1916) e pelo fato de que à época, as Missões Salesianas dispunham de infraestrutura, pessoal, poder e meios para captação de recursos pecuniários para o financiamento de projetos tais como a aquisição de barcos, balsas e construção de sedes para o uso das primeiras cooperativas no Alto Rio Negro.

Em contrapartida, os missionários procuravam controlar as eleições da diretoria das Organizações, de modo a garantir que os dirigentes estivessem alinhados com as diretrizes missionárias. Este cerceamento era percebido com nitidez por um grupo de lideranças dissidentes das Missões Salesianas de Pari-Cachoeira, para os quais “a organização da UFAC, desde a sua criação, [...] foi governada por dirigentes da ‘antiga geração’ e da chegada dos missionários religiosos, por isso mesmo estava transformando-se em mais uma outra instituição religiosa ambígua e radical”279. Mesmo os que estavam alinhados com os interesses das Missões tinham clareza da interferência missionária nos assuntos indígenas, pois segundo uma liderança, “a cooperativa indígena [UFAC] é particularmente do povo, a função dela é independente, apenas o pessoal pedem sugestões aos superiores [os missionários]”280.

278SOCITRU. Ofício, de 15/03/1989,

279AUCIRT. Relatório histórico de trabalhos da comunidade indígena de Pari Cachoeira, [s.d.), p. 2. 280PORANTIM, 1978, p. 14.

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Foto 7: Sede da FOIRN em São Gabriel da Cachoeira

Fonte: O autor – julho/2010

Do mesmo modo, para os líderes de Taracuá, a divisão entre os moradores, ao ponto de criarem associações concorrentes, ocorreu “por motivo de divergências políticas internas provocadas pelo religioso denominado Pe. José...” e, por esse motivo, “foram criadas duas correntes políticas internas numa reunião organizada no colégio dos padres”.281

Com o passar dos anos, especialmente a partir dos anos 1990, a FOIRN se firmou como a entidade inconteste do movimento indígena no Rio Negro, fato que representou um momento importante na mobilização social e política na luta pela reivindicação dos direitos econômicos, sociais, políticos e culturais dos povos indígenas.

Por um lado, a mobilização social pela luta a favor da demarcação das terras e contra a presença de empresas mineradoras na área indígena se ampliou para outras frentes como a

281 SOCITRU. Ofício 01/89, de 15/03/1989. Tratava-se da criação de uma associação concorrente e divergente desta,

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atuação na política partidária local282, a questão educacional, os serviços de saúde, os projetos de desenvolvimento sustentável; por outro, as populações indígenas tiveram que enfrentar outro problema ocasionado por fator exógeno: a divisão social interna provocada pela disputa de poder entre salesianos e evangélicos, ambos visando o controle territorial e social dos Baniwa, particularmente, no rio Içana.

3. “LA GUERRA DI DIOSES” E/OU O CONFRONTO PELA CONQUISTA DA “ALMA” BANIWA: AS DISPUTAS DE PODER ENTRE MISSIONÁRIOS SALESIANOS E

REFORMADOS

O conflito de interesses entre o Estado, a igreja católica e as empresas mineradoras visando o controle social e das terras na faixa de fronteira, a exploração econômica, em escala empresarial, dos recursos do (sub)solo localizados em terras indígenas e a conversão ao catolicismo, descritos e analisados nositens anteriores, se manifestou de outra forma, a qual passaremos a descrever e a analisar. Trata-se dos confrontos ocorridos no interior do próprio Cristianismo, mais especificamente entre as Missões Salesianas e os missionários das Igrejas Reformadas, ocasionando graves consequências de ordem sociocultural e religiosa para as sociedades nativas.

Os embates foram motivados pela disputa de poder político no Alto Rio Negro entre os grupos religiosos (católicos e reformados), ambos ávidos em delimitar as áreas de suas próprias atuações e, dessa forma, assegurar a exclusividade do controle sobre as sociedades indígenas. A disputa de poder político, que a originou, se travestiu de motivos religiosos, cuja finalidade consistia em capturar a “alma” indígena, de modo a forçar os grupos nativos a abjurar as tradições religiosas, sociais e culturais herdadas dos ancestrais para, em seguida, obrigá-los a abraçar a religião cristã e a cultura dos missionários.

282 Vereadores indígenas em São Gabriel da Cachoeira: Paulino Gomes Vieira (1976), Odilon Cruz Penha, Pedro

Fernandes Machado (1978), Henrique Veloso Vaz (1993-1996), Flávio Vieira Carvalho e Alberto Ferreira Barbosa (1997-2000); Geminiano Lopes Basílio e José Protásio Prado de Castro (2001-2004); José Maria Moreira de Lima e Hernane Vaz de Abreu (2005-2008); Osmarina Maria Pena e Rivelino Ortiz Garcia (2009-2012). Nas eleições de 1996, Tiago Montalvo Cardoso foi eleito vice-prefeito para a gestão 1997-2000. Para o mandato 2009-2012, em São Gabriel da Cachoeira/AM, o prefeito foi o Tariano Pedro Garcia e o vice André Baniwa.

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Wright283afirma a existência de diversas publicações de cunho antropológico e histórico para o estudo das relações entre organizações missionárias cristãs e religiões indígenas no Brasil. De fato, a bibliografia utilizada pelos autores daquele volume revela uma intensificação dos trabalhos analíticos sobre povos indígenas e missões cristãs na década de 1980 em diante, sem desconsiderar o que foi produzido a partir da segunda metade do século XX, ou antes, aqui e alhures. As mudanças ocorridas em sociedades indígenas na América Latina, segundo Wright284, foram potencializadas por movimentos religiosos, no contexto das transformações globais da realidade social e apresenta três hipóteses para compreender a conversão operada pelas igrejas protestante-pentecostais.

A primeira, a reforma moral-política, visa à “superação de sociedades (ou situações históricas de contato) antigas determinadas por relações violentas”, ou seja, opõe-se tanto à exploração econômica, como os ciclos da economia amazônica evidenciam, quanto ao caráter predatório de relações dentro das cosmologias indígenas. A segunda hipótese, a reforma do cotidiano, a conversão atuacomo estratégia para o enfrentamento da pobreza, a superação do alcoolismo e do vício das drogas, o fortalecimento dos laços familiares, a reforma das relações de gênero e, não em último lugar, a reafirmação da identidade, para defrontar-se com o racismo cotidiano. Por fim, a terceira hipótese, a conversão e a fidelidade, referem-se aos esforços e estratégias das sociedades indígenas em assegurar a fidelidade à igreja protestante-pentecostal, assim como transmitir a nova moral e os novos hábitos às futuras gerações.

Estas três dimensões, grosso modo, estão presentes no processo de conversão de populações indígenas ao evangelismo no Rio Negro. Neste sentido, o movimento de conversão dos Baniwa ao evangelismo no século XX é analisado por Wright285em sua correlação com 1) o regime de extração da borracha e a consequente exploração do trabalho indígena286; 2) a desestruturação dos padrões culturais autóctones; 3) a tradição profético-messiânica enquanto estratégia de resistência à dominação dos brancos e 4) as relações com a mitologia, a cosmologia

283 WRIGHT, Robin. Transformando os deuses – os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no

Brasil, 1999.

284 ______. As tradições proféticas e cosmologias “cristãs” entre os Baniwa. In: ______ (Org.). Transformando os

deuses. Vol. II: igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil, 2004, p. 12- 14.

285 ______. Uma história de resistência: os heróis Baniwa e suas lutas. In: Revista de Antropologia, 1989; ______.

“Uma conspiração contra os civilizados”: história, política e ideologia dos movimentos milenaristas dos Aruak e Tukano do noroeste da Amazônia. In. Anuário Antropológico/89, 1992.

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e o xamanismo. Para o autor, “a questão central nos movimentos [messiânicos] foi o tipo de transformação que os Baniwa seguiriam: ou ficar dominado pelos brancos ou tomar conta do seu destino, transformando o momento histórico e assim reconquistando sua autonomia”.287

O contato sistemático entre organizações missionárias católicas e os povos indígenas do Rio Negro datam, pelo menos, da segunda metade do século XVII, mas a presença de Igrejas Reformadas na região, e o conflito entre estas denominações cristãs, remonta à época mais