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CAPÍTULO I –PROCEDIMENTOS TEÓRICOS E INVESTIGATIVOS

1.3. O eu sem intermediação: as fontes indígenas

O terceiro bloco documental é constituído pelas fontes de autoria indígena,as quais tratam das ações relativas à autodeterminação das sociedades indígenas expressas na reivindicação ao Estado brasileiro pela garantia e defesa dos direitos dos índios assegurados pela Constituição Federal de 1988. Dentre estas fontes se destacam aquelas referentes à saúde, à educação e à demarcação das terras indígenas. Localizamos, ainda, outras fontes referentes à invasão de terras indígenas por empresas mineradoras, às críticas à ação missionária e estatal, bem como as relacionadas às iniciativas de reafirmação das identidades étnicas promovidas pelas Organizações Indígenas, desde a década de 1970.

Além das fontes escritas, esta pesquisa atribui o valor de documento às imagens e aos depoimentos orais colhidas junto aos ex-alunos dos internatos salesianos. A simples indagação feita pelo pesquisador a respeito de alguns aspectos da obra missionária salesiana possibilitou uma profusão de informações que embasam nossa análise e interpretação. Alguns destes relatos foram obtidos a partir de ocasiões fortuitas, outros, porém, resultaram de encontros previamente combinados, especialmente àqueles com os professores para tratar da escola missionária.

A nosso ver, o registro escrito dos depoimentos não diminui a importância deste recurso metodológico por nós utilizado em relação à entrevista gravada, pois procuramos manter o essencial das narrativas, optando por citar literalmente os trechos que consideramos relevantes para responder às perguntas formuladas pela pesquisa.

Nas fontes oriundas das Organizações Indígenas, busca-se detectar o modo pelo qual as populações autóctones se constituíram protagonistas ao (re)afirmar os valores tradicionais e promover as identidades culturais, ao mesmo tempo em que (res)significaram os valores do catolicismo e da cultura ocidental a partir de suas cosmovisões.

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Temos clareza de que as reivindicações presentes nas fontes documentais indígenas não representam um consenso absoluto dos posicionamentos das lideranças nativas sobre as questões que afetam as populações indígenas e que, portanto, a unanimidade não pode ser confirmada;ao contrário, consideramos que a maioria das fontes escritas selecionadas é originária das lideranças das Organizações Indígenas legitimamente constituídas para atuarem politicamente junto aos demais segmentos da sociedade nacional e internacional, a fim de garantir, defender e promover os direitos das sociedades indígenas.

Esta advertência visa explicitar ao leitor que existe outro grupo de líderes mais voltados para o âmbito intragrupal e intralocal, a saber, os chefes de aldeia (os capitães), que interagiam com as lideranças das Organizações Indígenas garantindo o espaço para a instauração do debate contraditório em relação aos rumos do movimento indígena no Rio Negro, mas cujas visões podem ou não estar contemplados na produção de documentos escritos.

A pesquisa visa, por um lado, analisar e interpretar as ações socioeducativas de conversão e assimilação dos grupos indígenas estudados tendo como contexto as relações sócio-culturais estabelecidas entre os agentes envolvidos e, por outro, capturar as “formas de vida cotidiana” que envolvem a descrição dos hábitos (terapêuticos, rituais, físicos, alimentares, gestuais, afetivos, mentais etc) e dos comportamentos sociais; enfim, apreender as expressões menos formuladas da vida cultural, pois como observa Burguière, “à força de observar o movimento da história, às vezes esquecemos que também fazemos parte dela [e que] háuma conjuntura do saber histórico, do mesmo modo que há uma história da conjuntura”.19

Estamos conscientes que recuperar os sentidos atribuídos pelos agentes às relações intersocietárias assimétricas, tendo como suporte as fontes, coloca questões metodológicas e epistemológicas tais como as condições sócio-históricas e culturais de produção dos documentos, pois não queremos creditar aos documentos a objetividade positivista de que trata Bloch, quando afirma que, ao invés de “aceitar cegamente todos os testemunhos históricos”, a observação história deve considerar que “o conhecimento de todos os fatos humanos no passado, da maior parte deles no presente, deve ser [...] um conhecimento através de vestígios”.20

Este procedimento, o de tentar captar um fenômeno através dos vestígios perceptíveis às faculdades sensoriais e intelectivas, implica em não esquecer os “filtros”, mediante os quais

19 BURGUIÈRE, André. A Antropologia histórica. In: LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques. A

história nova, 2005, p. 203.

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missionários e índios percebiam-se reciprocamente. Bloch (op. cit.), ao referir-se à análise histórica, chama a atenção do historiador para a crítica documental, procedimento metodológico de interrogação das fontes com vistas a identificar as escolhas, as triagens, as seleções e as omissões subjacentes às fontes documentais, mecanismos aos quais ele denominou de “filtro”. Na perspectiva aqui adotada, analisar e interpretar as concepções desveladas do “outro”,presentes nas fontes, implicainterrogar estas mesmas fontes visando capturar os sentidos veladosde outras interpretações, em virtude do jogo de interesses e dos conflitos entre os agentes envolvidos.

Outro procedimento metodológico adotado na análise das fontes foi o de considerar que, como nos propõe Certeau21, os documentos são produzidos e que é necessário levar em conta o tempo específico de sua produção e o lugar ocupado pelos autores na hierarquia social, econômico, político e cultural. Estes fatores (tempo e lugar) foram determinantes na construção das representações dos autores das fontes selecionadas nesta pesquisa, as quais estão perpassadas pelos múltiplos olhares sobre o mesmo objeto, acarretando uma diversidade de visões na narrativa histórica.