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AS PENDÊNCIAS LEGISLATIVAS LIMITANDO O EXERCÍCIO DO DIREITO

3. A AFIRMAÇÃO JURÍDICA DOS QUILOMBOS E SEUS INSTRUMENTOS

3.3. AS PENDÊNCIAS LEGISLATIVAS LIMITANDO O EXERCÍCIO DO DIREITO

Os direitos dos quilombolas consolidados pelo artigo 68 do ADCT têm sido alvo de forte resistência pela retomada das pretensões enraizadas na antiga Lei de Terras. O Democratas, partido político ligado aos grandes proprietários de terras e empresas nacionais e internacionais, ingressou perante o Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de inconstitucionalidade, ADIN nº 3239, contra o Decreto nº 4.887/2003.

A ação tem como objeto desqualificar todos os atos e procedimentos desenvolvidos pelo INCRA com fundamento no Decreto nº 4.887/2003. O julgamento da ação direta de inconstitucionalidade é iminente. Contudo, há nos autos do processo tanto da Advocacia Geral da União quanto da Procuradoria Geral da República pedindo a improcedente da ação, e ainda grande número de agentes sociais que ingressaram no feito na figura do Amicus Curiae.176

A mobilização política e da grande mídia contrária aos processos de titulação de terras às comunidades quilombolas denota, de maneira clara, a resistência de setores da sociedade quanto ao necessário reconhecimento dos direitos obtidos pela população negra brasileira, representada pelas comunidades da terra. Fato internacionalmente reconhecido:

"Reconhecemos as tentativas do governo brasileiro em lidar com essa questão. Porém, eu visitei pessoalmente essas comunidades e presenciei sua condição de vida. Por isso, sei exatamente o que os peticionários querem dizer. Um problema é a burocracia para cumprir a lei de titulação de terras. Este processo deveria ser mais curto, pois é urgente titular as terras para melhorar as condições de vida dos

176 Segundo Bisch: “É usual definir o termo amicus curiae como o terceiro que intervém em processos

judiciais a fim de fornecer informações adicionais e relevantes aos Juízes da causa, ou mesmo pareceres sobre matérias de seu peculiar interesse e sobre as quais tenha domínio, o que lhe atribui a denominação latina traduzida como “amigo da Cúria”, ou “amigo da Corte”. Com efeito, das definições extraídas dos dicionários americanos Steven H. Gifis e Black’s Law, depreende-se a utilidade do instituto na hipótese de o Juiz não estar convencido ou estar equivocado em uma questão de direito, ou ainda na hipótese de o Tribunal considerar válida a participação de indivíduos interessados na defesa de determinada concepção jurídica, máxime quando verificado tema de vasto interesse público”. BISCH, Isabel da Cunha. O Amicus Curiae, as Tradições Jurídicas e o Controle de Constitucionalidade: um estudo comparado à luz das experiências americanas, européia e

Quilombolas. Além disso, é necessário criar oportunidades econômicas para essas comunidades. Existem programas governamentais nesse sentido, mas parece haver um problema com sua execução, pois apenas uma pequena parte dos recursos desses programas é utilizada. Este é um dos obstáculos para a efetiva implementação dessas políticas. Portanto, há duas áreas de intervenção que o governo deveria enfocar: a questão da terra, que é central. Os processos de titulação devem ser executados rapidamente; a execução de projetos que garantam justiça social para comunidades quilombolas, como lhes é de direito".177

Os argumentos apresentados pelo partido político que impetrou a ADIN não encontram sustentação nos dispositivos legais nacionais, além de destoar das normas e convenções internacionais ratificadas pelo Brasil que se incorporaram ao nosso sistema legal. Também há, contra o Decreto No. 4.887/2003, um projeto de Lei que objetiva suspendê-lo, sob a fundamentação de que tal decreto regulamenta de forma direta preceito constitucional. Tal fundamento, em parecer do Ministério Público Federal foi afastado. Ao comentar sobre os argumentos que sustentam a ADIN nº 3239, o Sub-Procurador da República, assim se manifestou:

“O marco é a constituição, mesmo com o artigo 225 que trata da formação cultural brasileira e as referências históricas, do que compõe essa coisa chamada “povo brasileiro” e o artigo 68 e daí que se tem a velha discussão, e esse é um dos pontos que o PFL (Democratas) chama de ação direta de inconstitucionalidade, que necessitava de uma lei para dar eficácia a esse dispositivo constitucional, sob pena de voltarmos a ter um Decreto autônomo. Seria um Decreto que regularize diretamente o dispositivo constitucional. É esse o principal ponto que eles argumentam e nós refutamos dizendo que não é verdade. A Constituição ao fazer a declaração estabelece o direito e o Decreto estabelece uma regra para as repartições públicas. Então, ela inclui nas funções do Incra, fazer também o reconhecimento e proceder a regularização fundiária.Temos duas grandes dificuldades, uma delas é saber quais são os conceitos que devemos trabalhar, a falta de uma delimitação

177

Essa foi a manifestação do Relator Especial sobre Afrodescendentes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Clarence Roberts, que visitando o Brasil, teve oportunidade de conhecer a realidade dos povos quilombolas e a situação de desrespeito a que estão expostos, tendo ratificado tal circunstância à Comissão CIDH, em sessão realizada em 19 de outubro de 2007.Disponível em: <http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/institucional/grupos-de-trabalho/quilombos-

de quem poderia se considerar remanescente de quilombo e a outra, como é que se faz prova disso na ação judicial”.178

O direito ao reconhecimento, à delimitação e à titulação das terras quilombolas decorre de comando direto da Constituição Federal, logo, seu exercício não reclama a existência da norma infraconstitucional como pretendem os opositores dessa conquista social e moral de toda a sociedade brasileira. O que resta, portanto, é a final manifestação do Supremo Tribunal Federal, no que esperamos, ratifique o texto constitucional em resgate da história da nação brasileira.

No entanto, as expectativas em relação à posição do STF sobre as questões que envolvem as comunidades decorrem do “otimismo da vontade”179, de fatores práticos e, em especial da credibilidade na evolução do pensar jurídico brasileiro e é nesse sentido que se apresenta o pensamento do jurista italiano Carmelo Carbone (apud MELO, 2003:43):

“...ressaltando que a atuação do elemento político na interpretação constitucional deve considerar as necessidades políticas e as expectativas sociais, pois não se trata de elemento estático, mas que se desenvolve e que se adapta a novas exigências e situações, devendo o intérprete buscar sempre o sentido atual do elemento político positivado na Constituição, sugerindo que se recorra à história do direito, ao direito comparado, à história política e outras matérias correlatas, que, fornecendo elasticidade ao conteúdo da norma constitucional, permitem atualizar seu conteúdo face à estrutura jurídica do Estado. Ao que se pode acrescentar:

178 Aurélio Virgílio Veiga Rios – Sub-Procurador Geral da República. Entrevista realizada em

17/11/2010, às 17h00, no Edifício da Procuradoria-Geral da República. Brasília, Distrito Federal.

179 Nesse contexto, a figura do intelectual ganha peso e relevância estratégica. Um mundo

globalizado, plural, complicado e desafiador precisa ser pensado com rigor, explicado em suas múltiplas determinações e em seus diferentes ritmos, mediante suas distintas racionalidades e sensibilidades, de modo a que não seja concebido como um somatório de fragmentos. Isso vale especialmente para o intelectual público, que não deseja dialogar somente com seus pares nem se trancafiar em instituições distanciadas dos tormentos e paixões da vida real, mas se dedica a articular o ideólogo, o técnico, o teórico dos princípios abstratos e o educador, a academia, as escolas, os jornais e as praças. Não foi por acaso que Dênis de Moraes, organizador deste livro, dedicou seu ensaio ao marxista italiano Antonio Gramsci, que pensou como poucos a questão da hegemonia e definiu o intelectual como um especialista que também é político e que sabe não só superar a divisão intelectual do trabalho como também reunir em si "o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade". Dênis de Moraes: “Pessimismo da inteligência e otimismo da vontade”. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=583AZL001>. Acesso em: 4 abr 2010.

considerando o compromisso vigente, estabelecido entre Nação e o Estado através do constituinte originário”.180

Por vez outra, se reclama um direito plural, em que a interpretação da norma constitua um exercício dialético dimensional, revisionista e revolucionário que se permita “...um raiar uma poderosa manhã em que se erga o Véu e se libertem os prisioneiros”.181

180

MELO, Carlos Antonio de Almeida. Mecanismos de Proteção e Concretização Constitucional: Proposta de uma Ação de Concretização da Constituição. In: Constitucionalizando direito: 15 anos da constituição brasileira de 1988. Fernando Facury Scaff (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 43

181 DU BOIS, W.E.B (William Edward Burghardt). As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda,

4. O DEBATE POLÍTICO-JURÍDICO E A DEFESA DOS INTERESSES