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OS QUILOMBOS E O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL

No documento A tutela jurídica das comunidades quilombolas (páginas 102-107)

4. O DEBATE POLÍTICO-JURÍDICO E A DEFESA DOS INTERESSES

4.2. OS QUILOMBOS E O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL

Pelo que se observa, há intensa mobilização política contrária às perspectivas de ascensão da população negra sob a emblemática do racismo e do preconceito racial184. Constata-se também a existência de clara resistência às políticas de ações afirmativas.

“As demandas por políticas específicas se aprofundaram durante o processo de preparação da participação do Brasil na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Sua consolidação como pauta do Movimento Negro levou, em 2003, à criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Seppir. Ao mesmo tempo, foram

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Em estudo de Jaccoud, que confirma análises anteriores. “O racismo nasce no Brasil associado à escravidão, mas é principalmente após a abolição que ele se estrutura como discurso, com base nas teses de inferioridade biológica dos negros, e se difunde no país como matriz para a interpretação do desenvolvimento nacional”. JACCOUD, Luciana. Racismo e República: O Debate Sobre o Branqueamento e a Discriminação Racial no Brasil. In: As políticas públicas e a desigualdade

racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Organização de Mário Theodoro. Brasília: Ipea, 2008. p.

sendo consolidadas pautas setoriais e começaram a ser desenhadas e implementadas ações e programas nos campos da educação e da saúde, com foco no combate ao preconceito e à discriminação”.185

Nesse olhar, ou seja, no conjunto das articulações formadas por agentes reacionários ao movimento social ascendente da população afrodescendente, se encontram, entre outros, as adversidades enfrentadas pelas comunidades quilombolas quanto à apropriação de um direito já posto na vida, no espaço jurídico e social: o direito à propriedade definitiva das terras que ocupam.

No contexto em que foi aprovado, o Estatuto da Igualdade Racial que se sancionou186 não contempla o direito dos quilombos: antes sinaliza para a sociedade civil de vanguarda e a comunidade negra que, sob o risco de esvanecimento das suas conquistas, ou da neutralização de direitos positivados, a população negra nacional necessita adotar rígida postura política e avançar na busca de alternativas, frente ao bloqueio que se pretende impor aos comandos constitucionais da igualdade racial.

“Nesse artigo que escrevi, disse que ele devia ser mais coerente. Ele deveria vetar o projeto na íntegra porque se chamava Estatuto da Igualdade Racial. Deveria também propor que o Estado brasileiro deixasse de subscrever alguns documentos internacionais, a declaração dos direitos humanos, por exemplo, os tratados internacionais a cerca dos direitos civis e sociais, são todos tratados que o Brasil ratificou e que usou o conceito de raça, de discriminação, de desigualdade racial. Considero inadmissíveis e inaceitáveis uma série de vetos que foram feitos na versão final do Estatuto, essa é a minha posição de princípio, do ponto de vista ético e político. Digo isso como militante do movimento negro, militante do campo dos direitos humanos, me pronunciando em relação ao documento do Estatuto da Igualdade Racial”.187

185JACCOUD, Luciana. Racismo e República: O Debate Sobre o Branqueamento e a Discriminação

Racial no Brasil. In: As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Organização de Mário Theodoro. Brasília: Ipea, 2008. p. 59.

186 Estatuto da Igualdade Racial – Lei No. 12.288, de 20 de Julho de 2010.

187 Em entrevista, EDNA ROLAND se manifesta contra as roturas que foram impostas ao Estatuto da Igualdade Racial, por força e imposição política do senador Demóstenes Torres.

Nós últimos anos, entidades da sociedade civil e o movimento negro têm lutado por políticas públicas para as populações vulneráveis. Parte dessa luta se desloca para a manutenção das conquistas ligadas às comunidades quilombolas.

O estatuto da forma como foi aprovado e promulgado não contempla a proteção das comunidades quilombolas. Entretanto, isso não representa um retrocesso, mas um sinal, de que a sociedade civil organizada deve continuar, passo a passo, avançando no sentido de consolidar uma sociedade alinhada com a justiça e com os princípios da igualdade real e não apenas formal entre os cidadãos brasileiros.

Como menciona JACCOUD, a Conferência de Durban (2001) foi extremamente salutar para a população negra brasileira. A conferência deslocou para o cenário nacional a problemática do racismo e do preconceito racial como uma questão real, concreta para o país. Daí a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Seppir.

Nesse sentido em muito tem contribuído a Seppir com a causa das comunidades quilombolas. Não apenas no aspecto discursivo. As ações da são expressas em concretude, por meio de pareceres que muito têm contribuído para a compreensão e visibilidade das comunidades quilombolas:

“A desintegração jurídica do estigma da escravidão faz sobrelevar a afirmação do Direito Étnico no formalismo positivista, realinhando o foco do superado conceito de raça para o plano da identidade. A partir deste avanço do legislador originário, o âmbito normativo do art. 68 transcende o texto e alcança a dimensão unitária dos valores que regem a Constituição quando oxigenam as práticas socioculturais negras em sua virtualidade política, como marca de distintividade.

A extensão da liberdade de edificar concedida pela Lei Maior pressupõe a prevalência da mens legislatoris ou da mens legis, de forma que a dinâmica integradora não ultrapasse a autoridade definida. Ora, o alargamento crítico favor actus amplia o fim contemplado pela norma, intocável em sua materialidade, justificando a titulação coletiva pro indivisa, sem o caráter condominal previsto pelos arts. 1.314 e seguintes do Código Civil, e a incidência de cláusulas de ônus reais inalienabilidade e impenhorabilidade – sobre

aquelas terras, de forma a assegurar a perpetuidade da propriedade às gerações futuras e o patrimônio histórico-cultural brasileiro”.188

Como se percebe, muito embora exista uma institucionalização dos estigmas da escravidão, em relação à população negra brasileira, por outro lado, se identifica um esforço do Estado brasileiro, em especial e particularmente nas políticas de governo dos últimos oito anos, no sentido de promover os valores e a história da população negra na grandiosidade e magnitude que possuem. Inclusive na crítica direta ao formalismo positivista do nosso ordenamento jurídico, que se contrapõe ao direito étnico e impede, em reação, a própria vontade do constituinte originário, na projeção de uma Constituição que oxigenasse a sociedade brasileira, na plena absorção das práticas culturais e sociais da população negra em sua virtualidade política, como marca de diversidade.

Na ação política furtiva foi extirpada do Estatuto da Igualdade Racial a garantia constitucional descrita no art. 68 do ADCT e o texto, no seu artigo 18 e parágrafo único, assim se apresenta:

Art. 18. É assegurado aos remanescentes das comunidades dos quilombos o direito à preservação de seus usos, costumes, tradições e manifestos religiosos, sob a proteção do Estado.

Parágrafo único. A preservação dos documentos e dos sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, tombados nos termos do § 5º. do art. 216 da Constituição Federal, receberá especial atenção do poder público.

Constata-se no artigo a supressão textual da ordem constitucional: "... Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".

188

Parecer da Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial – Seppir - em manifestação sobre o Decreto No. 4887/2003, direcionado em 20. 11.2003, ao Senhor Presidente da República. Disponível em: <www.planalto.gov.br/.../EMI58-CCV-MINC-MDA-SEPPIR-03.htm>. Acesso em: 15 abr. 2010.

Nada há de pior, a confirmação de que estamos em um país do preconceito e do racismo. Ao entendimento contrário, como explicar a necessidade de princípios constitucionais fundamentais que estabeleçam o “repúdio ao racismo”189, ou ainda, explicitar, na Lei Maior do país que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível...”190. E por que a necessidade de um Estatuto da Igualdade Racial? A resposta está nos morros, nas favelas, no subemprego, nos presídios, nos homicídios praticados por agentes públicos, nos óbitos hospitalares, nos atendimentos médicos, em hospitais públicos e privados, nas escolas e universidades, nas ruas [...] em todo Brasil.

189

Constituição Federal de 1988, artigo 4º, inciso VIII.

No documento A tutela jurídica das comunidades quilombolas (páginas 102-107)