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2.4 AS POLÍTICAS PÚBLICAS 2.4.1 AS REFORMAS

A Saúde Mental, trazida como política de saúde dirigida e extensiva a toda população, encontra, nos setores progressistas franceses ligados ao cuidado mental e nos esforços de contenção dos gastos hospitalares do governo do partido democrata americano, a oportunidade de realização de reformas psiquiátricas.

“Estes esforços se devem, ao mesmo tempo, a profissionais progressistas e a administradores

14 “Como dissemos antes, até há pouco mais de dez anos a maioria das atividades de higiene mental

eram realizadas por organismos voluntários; só recentemente entrou em cena, em grande escala o governo federal. A aprovação da Lei de Saúde Mental Nacional em 1946, deu um grande estímulo para o planejamento desse ramo de saúde por todo país porque facilitava ajudas para a investigação, a formação de pessoal e para o estabelecimento e desenvolvimento de programas para a saúde mental da comunidade, programas cuja importância se acentua cada vez mais.” (ROSEN, 1974, p.330)

modernistas. Coordenados pelo Instituto Nacional de Saúde Mental nos EUA, pela ala dinâmica do Sindicato dos Médicos de Hospitais Psiquiátricos, eles parecem impor-se no início dos anos 60. Com efeito, nesta data, o próprio Estado se encarrega desta vontade de instalar um grande serviço unificado de intervenções nos problemas de saúde mental, que não mais se contentaria em dispensar cuidados em instituições fechadas, aos doentes mais graves; mas trabalharia no seio da comunidade para informar e educar a população e, promover uma política positiva de saúde mental. Assim, na França, a circular ministerial de março de 1960 reorganiza o conjunto da distribuição de cuidados psiquiátricos em torno do “setor” (catchment area), isto é, do trabalho de uma equipe implantada na comunidade e prestando um conjunto completo de serviços desde a prevenção até a reabilitação, passando pela fase propriamente terapêutica. Nos EUA, é promulgado o “Community Mental Health and Retardation Act” de 1963, e segundo o próprio presidente Kennedy ‘os centros terapêuticos substituirão as instituições psiquiátricas de internamento. Esta nova lei nos dá a arma necessária para realizar tal operação.’ ”

(CASTEL, 1986, p.6)

“Em maio de 1978, o Parlamento italiano aprovou a Lei da Reforma Psiquiátrica, conhecida como Lei 180. Esta lei vem implementar o processo de desinstitucionalização praticado até então, sancionando as inovações produzidas por este processo, ou seja: a) a eliminação da internação psiquiátrica, e b) a construção de serviços na comunidade que substituíssem inteiramente a própria internação ... O doente mental é cidadão pleno para todos os efeitos, com seus respectivos direitos sociais e civis, que incluem o direito a um tratamento.” (KINOSHITA,1987, 68-9)

Não se trata de nivelar as experiências, mas de encontrar um terreno comum em que puderam frutificar, tentando dar uma contribuição às respostas possíveis à questão, que CASTEL (1991)

formula: porque a crítica ao asilo, que existe há cerca de cem anos, só toma a forma de uma concretização nas últimas recentes décadas.

A Psiquiatria de Setor na França, é um desses movimentos que ocorrem após a 2a guerra e que vem conformar práticas alternativas ao hospício. Com a vitória política da Frente Popular no pós-guerra, promulga-se uma reforma sanitária e cria-se o Setor. Essas idéias nasceram com um grupo de psiquiatras,15 que participavam da Resistência Francesa e que se reuniam em Saint-Alban, hospital psiquiátrico. Discutiam, entre outras questões, as experiências que um deles, Tosquelles (psiquiatra catalão exilado devido à guerra civil espanhola) havia vivido durante o governo autônomo da Catalunha, com a criação das “Comarcas Catalãs”, em 1935, organização de territórios, que já eram, geográfica e socialmente reconhecidos como tal.

“A experiência que organizam Tosquelles, Sauret e Morin, com hegemonia anarquista, é considerada por alguns como uma política de Setor, semelhante à realizada na França dez anos mais tarde. Durante a Guerra Civil organizaram uma comunidade em autogestão aonde se reuniam enfermos, fundamentalmente vindos do front, junto a outros soldados do Exército vermelho, civis, etc.” (GALENDE, 1990.p.149)

As atividades da Psiquiatria de Setor na França são regidas por princípios de crítica ao asilo e repúdio à segregação, propondo em seu lugar integração do doente ao seu meio social; a subordinação do hospital psiquiátrico à rede de instituições do Setor, sendo que esta última teria autonomia de planejamento; a unificação dos cuidados dispensados dentro daquele território e a cada paciente, criando estratégias terapêuticas. (GALENDE, 1990)

15O grupo de psiquiatras era integrado por “Tosquelles, Le Guillant, Bonnafé, Daumezon, Follin,

Rouart, Lebovici, Ajuriaguerra, Lacan, Duchêne, Hécaem, Paul Eluard, Tristan Tzara e outros. Tosquelles o denominava “a banda”, mas é conhecido com o nome de grupo de GEVAUDAN.” (GALENDE, 1990, p. 150).

“O movimento reformista que conduz à definição da política de setor associa psiquiatras de obediência teórica diferente: fenomenólogos adeptos de Karl Jaspers; partisans do organo-dinamismo de Henry Ey; marxistas à procura de uma etiologia social da doença mental; os primeiros psicanalistas interessados por problemas psiquiátricos. A despeito de suas divergências, eles fazem alianças para impor uma concepção renovada do fato psiquiátrico, ao mesmo tempo contra os tradicionalistas que querem reproduzir a tradição asilar e contra a corrente neuro-fisiológica, fortemente implantada na França, nos hospitais gerais e nas faculdades de medicina.” (CASTEL, 1986, p. 9)

Existiram muitos problemas que com o decorrer do tempo, foram modificando e desmontando esse novo modelo: dificuldade de aceitação de uma estrutura de organização horizontal dentro da burocracia estatal ; a “pressão centrípeta” dos hospitais psiquiátricos; a diferença de atuação entre os primeiros profissionais e os novos que iam chegando; a mudança de formas de vida da população, com migrações, ruptura das relações familiares; a mudança da situação do pós-guerra. (GALENDE, 1990)

Como disse Tosquelles:

“Eu tenho me perguntado em um processo autocrítico, se esta noção de Setor não era uma concepção que valia somente na Catalunha de 1934, ou na França do pós-guerra, ou seja, quando o cidadão médio pesava como tal, realmente, na estrutura das relações de produção”

(TOSQUELLES,1975 apud GALENDE,1990, p. 154)

Ainda assim o panorama foi mudado, ainda segundo GALENDE. Na

França, em 1979, cento e vinte mil leitos psiquiátricos convivem com setenta lares protegidos, duzentos e cinqüenta hospitais-dia, cem hospitais-noite e cerca de três mil centros comunitários de Saúde Mental.

Na Inglaterra, durante a guerra, Bion e Rickman, trabalhando com os soldados, desenvolvem psicoterapias de grupo e geram conceitos que irão influenciar e fomentar as psicoterapias institucionais, com os grupos de tarefa ou grupos operativos. Maxwell Jones, trabalhando após a guerra com ex-prisioneiros, cria o modelo da comunidade terapêutica.

“Um princípio básico da comunidade terapêutica é o do aproveitamento de todos os recursos da instituição, que concebe como um conjunto orgânico, não hierarquizado, de médicos, pacientes e pessoal (enfermeiros, administradores, etc).”

(GALENDE, 1990, p. 143-4)

Esta proposta tem como princípios: liberdade de comunicação; entendimento das relações institucionais através da dinâmica de grupo; criação de espaços terapêuticos grupais; espaço para a sociabilidade, como bailes, teatro; a assembléia comunitária, órgão de gestão, organização e avaliação de todas as atividades.

Ronald Laing e David Cooper, posteriormente, com a antipsiquiatria radicalizam esses conceitos. Valorizam o impacto da família na gênese da esquizofrenia, concordando com as investigações levadas em Palo Alto, Califórnia, por Bateson, antropólogo que sugere a teoria da dupla-mensagem, nas redes de comunicação familiares, situação entendida como esquizofrenogênica. (BATESON et al., 1974) Os

antipsiquiatras repudiam o entendimento do comportamento diferente como uma doença que precisa ser interrompida. Para eles o que ocorre é uma experiência vital que precisa ser completada, somente acompanhada terapeuticamente, e compreendida no seu contexto, o que significa não- intervenção. Estes autores afirmam que todos estão alienados. “A humanidade está separada das suas possibilidades autênticas. Esta idéia básica impede-nos de aceitar uma perspectiva inequívoca do equilíbrio do bom senso, ou da loucura daquilo a que se chama o louco.” (LAING, 1979, p. 10)

Destas idéias, foi incorporado o conteúdo técnico, se pode ser chamado assim. Em 1953, em seu 3o Informe do Comitê de Especialistas em Saúde Mental, a Organização Mundial de Saúde recomenda a transformação dos hospitais psiquiátricos em comunidades terapêuticas.

“O informe traz a conveniência de que o hospital psiquiátrico funcione como uma comunidade terapêutica na qual as boas relações dentro da equipe profissional deverão refletir-se na harmonia entre o pessoal e os pacientes, e entre os pacientes mesmos.” (OMS,1962, p. 86)

Nos Estados Unidos, desde o término da segunda guerra, como já descrito, cresce o movimento em torno da psiquiatria social e da saúde mental. Menninger, psiquiatra e psicanalista, que havia sido chefe do Serviço Psiquiátrico do Exército durante a guerra, funda o Grupo para o Desenvolvimento da Psiquiatria, pela Fundação Menninger. Robert Felix também pertence ao grupo e será o primeiro diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental em 1946. (GALENDE,1990)

“Nos EUA, desde sua fundação em 1946, O Instituto Nacional de Saúde Mental impulsiona programas importantes de pesquisa, de formação e de informações, que querem romper com a tradição do alienismo que domina a prática nos hospitais psiquiátricos. O financiamento para o N.I.M.H. de 1.500 programas de ensino e de reciclagem de pessoal permite passar de um número de cerca de 3.000 psiquiatras, durante a guerra, para 17.000 em 1964, enquanto que muitos milhares de clínicos gerais se beneficiam de uma formação complementar em psiquiatria. Neste programa de formação, o modelo psicoterapêutico, inspirado na psicanálise, exerce de início, influência preponderante. Ele aparece como hegemônico nos anos 50: a imensa maioria dos psiquiatras passa então, por uma formação psicanalítica; as referências à “psicologia dinâmica” inspiram a maior parte dos artigos de revistas e das discussões científicas sobre a prática e a teoria psiquiátricas.” (CASTEL, 1986, p. 7)

Neste início da década de 50, inicia-se nos Estados Unidos o ensino da disciplina de Medicina Preventiva, nas escolas médicas, objetivando a formação de novos médicos que resignificassem a sua relação com o paciente através de uma concepção integral sobre o mesmo. A intenção é

ser uma alternativa à intensa especialização e instrumentalização da prática médica. Na década de 60, no mesmo país, surge a Medicina Comunitária, impulsionada por uma política social, em nível federal, de resolução do problema das minorias. (NOVAES, 1976)

A partir do modelo introduzido por LEAVELL; CLARK, (1965), de

história natural da doença e os níveis de prevenção, em 53, como já descrito, abre uma perspectiva teórica de integrar as ações preventivas e curativas.

Isto introduz também à Saúde Mental a oportunidade de incorporar esse modelo e se propor como instrumento de alcance populacional, através da integração de suas proposições higiênicas e curativas.

Caplan quando propõe, em 64, a Psiquiatria Preventiva e seus três níveis de prevenção sistematiza essa possibilidade.

Neste cenário nasce a Psiquiatria Comunitária.

O Congresso dos Estados Unidos nomeia uma comissão para estudar as práticas de saúde mental no país, que apresenta seu relatório, com o nome de Action for Mental Health, em 1960. Em 63 o Congresso aprova o pedido de Kennedy, da criação de um programa a nível federal de saúde mental realizado através de Centros Comunitários. É a Community Mental Health Center and Retardation Act ou Lei Kennedy.(GALENDE,1990)

Na mesma obra GALENDE afirma que em poucos anos criaram-se cerca de quatrocentos destes em território americano. Cada centro deveria contar com cinco serviços: ambulatórios; serviço de urgência psiquiátrica para “intervenção na crise”; serviço de admissão; serviço de educação e consultoria para a prevenção primária na comunidade; serviços de hospitalização total ou parcial (hospitais-dia; hospitais- noite). Na década de 60, setenta por cento das intervenções psiquiátricas se realizavam pelo hospital psiquiátrico. Dez anos depois os Centros cobriam setenta por cento das demandas. Esta tendência muda com a ascensão de Nixon.

Por outro lado, CASTEL (1986, p.12) diz que a redução do número de

pacientes hospitalizados “foi imposto, sobretudo, por razões econômicas e foi bastante independente das possibilidades de encargos que ofereciam (e sobretudo não ofereciam) as novas instituições comunitárias ... em 1974, uma declaração oficial da Associação Americana de Psiquiatria

afirmava a necessidade de acabar com os abusos da desinstitucionalização selvagem e de fazer reviver o hospital psiquiátrico.”

A Saúde Mental como conjunto de práticas estatais realiza a integração da terapêutica com a higiene, colaborando como elemento discursivo de adequação vinculado à assistência à saúde. Assim, o objeto de intervenção das proposições curativas que já na Higiene Mental havia se ampliado, abrindo o leque das doenças mentais, na era da “saúde mental” se amplifica mais, pela inclusão das proposições higiênicas de promoção de saúde mental, não mais apenas como objeto de reflexão e de intervenção higiênica como na higiene mental, mas como objeto de intervenção assistencial multiprofissional. Os objetos de sistematização e de intervenção das proposições higiênicas e curativas agora têm a possibilidade de convergir para a coletividade. Assim como fora no Alienismo. CASTEL (1991) afirma que, após o Alienismo, a Psiquiatria se divide em dois movimentos: o da higiene e o da psiquiatria científica, que vão se juntar, posteriormente, nas práticas da Saúde Mental.

Nesta possibilidade se fundamentam a psiquiatrização da sociedade ou a psicologização do viver, através das práticas curativas. A partir dos anos 70, serão estes dois últimos aspectos alvos de crítica, visando a superação desse modelo de Saúde Mental.

Também é nessa possibilidade de articulação entre as práticas preventivas e as práticas curativas que a Saúde Pública se integra à Assistência Médica, propiciando o terreno para o estabelecimento de uma Atenção Primária à Saúde. A Saúde Mental está instrumentalizada para poder seguir o mesmo caminho.