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As práticas de preconceito vivenciado pelas professoras negras em sua formação

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No que concerne à problemática da educação antirracista proposta pela Lei 10639/2003, como ferramenta para dirimir as práticas de preconceito, a importância de se conhecer como isso ocorre, de fato, no chão da escola.

Para ilustrar essa afirmativa, quando questionadas se no período escolar sentiram alguma diferença por causa de sua cor, ou melhor, raça por parte dos professores, a professora Josefa,

Sim! Principalmente no prezinho, no prezinho, eu lembro! Minha professora era a professora que eu mais gostava Bernardina eu sentia que ela tinha preferência pelas outras meninas, mas sabe assim criança quando você gosta não importa! Eu sentia que ela tinha um certo asco...

Te abraçava mas não queria te abraçar!

Mas eu gostava dela! E até hoje eu lembro dela.

É aquela questão você não tinha maldade no seu coração!

E até hoje eu lembro dela, mas eu lembro também, eu tinha seis anos e lembro que tinha diferença (Josefa, entrevista realizada em 26 fev. 2019).

Ao acessar a memória das práticas preconceituosas em suas vivências, intui-se que a professora entrevistada lembra a repulsa da professora em abraçá-la por ser negra. Percebe-se que a prática preconceituosa da professora é um reflexo da reprodução cultural da classe dominante que impõe seus valores e seus hábitos, e que se encontram incorporados no currículo escolar.

Apresenta-se, também, a fala da docente Isaura: “Já! Com certeza! Eu era a única negra da escola, no ensino fundamental, então com certeza, só de ser a única, eu já passei por isso aí” (Isaura, entrevista realizada em 23 fev. 2019).

Analisando a fala professora, a pesquisadora recorda que, no decorrer de sua entrevista, que a entrevistada narrou ser filha adotiva de pais brancos, sendo que seu primeiro acesso à escola foi na rede privada. Ao ser questionada se a escola reforçava o racismo ou não, enquanto estava estudando, ela respondeu:

Reforçava! Reforçava bastante sabe então assim, a discriminação vem desde muitos anos, então fica muito mais difícil pra você suprir essa desigualdade, às vezes vem até mesmo do próprio professor, que te olha de baixo pra cima, de cima pra baixo (Isaura, entrevista realizada em 23 fev. 2019).

As narrativas denotam que a cultura da escola e as práticas das professoras foram permeadas pela desigualdade e pelo racismo. Com a licença do ditado popular, aqui transcrito no plural, “os olhares dizem muito mais que muitas palavras”. Porém, isso se torna subjetivo,

passando, por vezes, despercebido por quem o faz.

Mariele, outra entrevistada, também traz em sua fala a apreciação dos professores pelas alunas brancas, limpas e cheirosas. Como ela não tinha orientação dos familiares quanto à organização do seu material ou pela sua qualidade, ia do seu jeito que conseguia se arrumar para a escola e, nesse contexto, era discriminada. Questionada se “No período escolar passou por alguma discriminação ou preferência do professor?”. E a resposta foi positiva:

Sim. Tinham as preferências né! As mais arrumadinhas, as limpinhas, caderninho limpo, que eu acho que o meu caderno também era um desleixo, aquele caderno bem. Por que na verdade também não tinha orientação. Não tinha acompanhamento nenhum, eu penso que meu caderno era uma bagaceira [...] Ou seja, é a lei da sobrevivência né! (Mariele, entrevista realizada em 18 fev. 2019).

Na reflexão da professora entrevistada, a ausência da família interferiu em várias áreas. Um desses reflexos estava expresso na organização do caderno e na forma de se vestir. E, ao mesmo tempo, denuncia a falta de sensibilidade por parte dos professores frente ao papel de uma escola que, no imaginário dos docentes, voltava-se exclusivamente ao que se refere ao ensino de conteúdos conceituais.

Outra prática que as entrevistadas narram, vivenciada na escola, refere-se à participação no teatro, pois, os seus professores não as deixavam participar pelo fato de serem negras. A resposta de Isaura, quando questionada “se teve alguma atividade que queria fazer, mas os professores não deixavam por você ser negra?”, é bem clara:

Os teatros! Tinham os teatros! Que como eu gosto de falar muito, então eu gostava muito de atuar... Mas nunca puder, pois na concepção deles o palco não é para o negro! O palco não é para o negro! Você não pode participar dessa peça por que ninguém é da sua cor. Isso é triste, mas foi superado! (Isaura, entrevista realizada em 23 fev. 2019).

A narrativa de Isaura revela o desejo de atuar nas peças teatrais quando ainda criança por ser comunicativa. Relata que foi impedida pelo preconceito por ser negra e, na visão dos professores, negro não poderia atuar. Assim, deixa em evidência o saldo histórico de exclusão que, certamente, aos olhos das políticas públicas de Estado, requer reparo a essa população. Nesse sentido, evidencia-se “a humilhação social se apresenta como uma angústia disparada por uma situação de desigualdade política e de exclusão intersubjetiva [...] Um golpe que se dá na cena pública [...], uma mensagem de rebaixamento que continua a ecoar indefinidamente” (COSTA, 2004, p.4).

quando queria participar do teatro. E mesmo sendo dela a iniciativa de criar o grupo, não podia ser a personagem principal por ser negra.

Ao perguntar se lembrava de alguma atividade que queria realizar, mas os professores não deixavam por ser negra, Josefa responde: “Eu tinha muita vontade de participar do teatro, mas o teatro naquela época negro não participava. Eu fiquei! E aí eu me senti muito mal, por que eu fundei esse grupinho, eu sempre fui de estar inventando coisas interior” (Josefa, entrevista realizada em 26 fev. 2019).

Salienta-se que ao narrar às mesmas situações vivenciadas e trazerem em seu percurso a marca do preconceito e do desprezo, as entrevistadas confirmam a existência do racismo sistêmico no interior das instituições, pois, mesmo sendo de lugares diferentes, sendo uma que viveu e estudou em Minas Gerais e a outra em Goiânia, há consonância nas respostas dadas ao mesmo questionamento feito. Isso evidencia que os professores adotam em suas práticas as mesmas formas de agir reproduzindo a exclusão, narrados e elucidados na história vivida e lembrada pela memória das entrevistadas, como forma de denunciar o preconceito sistêmico por parte de alguns professores. Nesse sentido, reforça o que chamamos hoje de racismo institucional, pois, nesta ação as professoras representam a escola/ instituição.

No Programa de Combate ao Racismo Institucional no Brasil (PCRIB2005), define-se como racismo institucional/sistêmico,

[...] o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações” (PCRIB, 2005, p.22).

Nesse sentido, as instituições educacionais, por não darem conta e por não saberem como resolver as situações de racismo na prática, acabam por usarem termos que acabam abafando, mas não resolvendo a situação, já elencado por Moraes (2012), tais como:

[...] “deixa pra lá”, “não ligue”, “ele/ela não quis dizer isso.” Ao não enfrentar aquilo o que parece normal porque corriqueiro (“cabelo ruim”), os professores vão ajudando a determinar parte de uma experiência negativa que vai se constituindo dentro e fora da sala de aula (MORAES, 2012, p.74).

Essa experiência, mesmo sendo considerada “normal” (grifo da pesquisadora) para uns, marca a história de quem a vive, deixando sequelas que precisam ser superadas. Um fator

pouco discutido no espaço escolar. Outro fator existente é que as entrevistadas trazem em seus relatos “As trajetórias escolares e as memórias de formação como lugares privilegiados de construção do conhecimento. São experiências intensas de exposição e autoconhecimento, de descoberta dos laços entre a memória pessoal e social” (FELDMANN; HAGE, 2015, p.3).

No que tange às memórias narradas pelas entrevistadas em seu percurso vivido sobre as professoras em suas práticas escolares e em sua trajetória escolar, a história oral é entendida como meio de recuperação do passado ou daquelas memórias que ainda estão vivas em suas recordações. É necessário, neste contexto, fazer a escuta do outro e, ao mesmo tempo, do outro da sua história e de suas representações vividas no contexto de cada entrevistada. “As narrativas coletadas serão sempre visões ou versões subjetivas da realidade” (ALBERTI, 2005, p.155). Ou seja, cada uma das entrevistadas traz nas suas falas aquilo que permearam seu contexto e saem do silenciamento.

Quebrar o silêncio significa não se calar diante de situações de racismo, fazer da sua prática nas instituições escolares espaço de respeito à diversidade racial, social e cultural.

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