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3 NO ESCURINHO DO CINEMA

3.6 Excitação, práticas sexuais e praticantes

3.6.1 As práticas sexuais

As práticas sexuais nesses cinemas pornôs são variadas. Algumas são mais comuns, mas outras chegam a explorar os limites do corpo. Esses cines são espaços abertos aos desejos de quem os frequenta, por mais incomuns que sejam. As distintas práticas sexuais acontecem sem censura dos administradores dos cines ou mesmo dos praticantes.

O tipo de atos sexuais que se pratica dentro do cinema tem a marca da fugacidade e da “parcialidade” própria da deriva homossexual. Contatos na penumbra, entre homens que, às vezes, sequer se veem as caras, roçares “casuais” de membros na massa que se amontoa nas últimas fileiras da sala, penetrações apressadas nas toaletes diminutas e fedorentas, num espaço buliçoso, que cheira a suor masculino. (PERLONGHER, 2008, p. 177)

Essa é uma descrição de práticas sexuais em cinemas feita pelo antropólogo Néstor Perlongher ao estudar a prostituição masculina no Centro da cidade de São Paulo na década de 1980. Entretanto, apesar da diferença de época e de lugar, essa é uma imagem que se aproxima muito de como algumas coisas acontecem nos cines pornôs de Salvador aqui estudados.

As práticas sexuais no interior dos cinemas tomam lugar a depender de qual seja. Nas poltronas da sala de projeção há muitos que apenas veem o filme e masturbam-se. Em busca de uma posição mais confortável sentam-se com as pernas esticadas, de forma que parecem estar deitados. Assim, muitos apenas veem o filme e masturbam a si mesmos. Alguns deles sentam-se nas poltronas próximas ao corredor, de modo que quem circula pela sala possa vê-los e, quem sabe, sentar-se ao seu lado. Aí o que acontece geralmente é masturbação e sexo oral. Essas práticas acontecem nas poltronas tanto entre frequentadores “caçadores” quanto entre boys e clientes. Isso porque como é algo mais “básico”, não há necessidade de irem para um lugar mais privativo.

Quando a relação estabelecida vai além dessas práticas supracitadas, geralmente acontecem em outras partes da sala. No Tupy há apenas um pavimento, mas no Astor havia dois, o que para Jô dificultaria seu trabalho.

Por que o banheiro é lá em cima, tem que subir escada, descer, eu não gostei não. Gosto mais daqui que é reto, a arquitetura, não tem negócio de escada, subir e descer. A gente arruma um cliente lá em baixo no Astor tem que subir para ir para o banheiro, eu não gostei não. (Entrevista, 10 ago. 2013)

O relato de Jô é referente a casos em que as pessoas estão dispostas a praticar sexo com penetração, por exemplo, o que geralmente acontece nos banheiros, tanto no Colônia Filmes quanto no Tupy e no Astor, quando este funcionava. Mas, no Tupy há na frente da sala, ao lado da tela de projeção, três cabines que são usadas, na maioria das vezes, por profissionais do sexo e seus clientes. Quando eles vão para uma cabine utilizam uma cortina, que fica guardada no fundo da sala, para terem mais privacidade. No caso do Colônia Filmes, além dos banheiros, isso pode acontecer em um quarto nos fundos, na área labiríntica da qual já falamos. Entretanto, isso não impede que as pessoas transem nas poltronas, o que, embora seja menos comum, acontece.

Em uma das vezes em que o pesquisador esteve no Astor, dois homens e uma mulher entraram juntos na sala de projeção e dirigiram-se para poltronas da primeira fila e aí consumaram o ato. A garota transou com ambos, enquanto muitos outros frequentadores os observavam a certa distância e se masturbavam. Não parecia haver qualquer constrangimento com a situação. Já no Tupy, em um domingo, um casal entrou no cinema no mesmo horário do pesquisador, por volta do meio-dia. Mas, diferente do que vimos no Astor, o casal heterossexual, que frequenta o Tupy com alguma regularidade, não gosta que os demais observem seu momento a “dois”. Apesar de transarem nas poltronas do meio da sala, eles usaram alguns guarda-chuvas, pondo-os abertos ao seu redor para garantir alguma “privacidade” durante o ato.

No caso dos “caçadores”, as transas ocorrem ou numa área abaixo da tela de projeção, no caso do Tupy, ou nos banheiros. Nessa área perto da tela ficam vários homens meio amontoados quando a sala está cheia. Ali acontecem “amassos”, “roçadas” e mesmo as transas. No Colônia Filmes, onde a frequência de homossexuais, ou melhor, de homens que procuram homens é menor os caçadores vão para um ambiente mais reservado no fundo da sala. Nesse cinema a disposição

dos espectadores na sala é diferente. Por serem heterossexuais, em sua maioria, não pretendem interagir com os outros homens. Então, eles não costumam sentar- se uns próximos aos outros.

Nem sempre a caça é bem sucedida. Durante uma das visitas ao Tupy, observamos um grupo conversando perto do banheiro: eram um travesti, um boy e um “caçador”. Este “caçador” de meia idade que é habitué desse cine contou nessa conversa que mora no bairro da Graça e que não tinha conseguido nada nesse dia, ou seja, não havia encontrado um parceiro, mas ele não se importava, pois havia aproveitado para conversar. Eles dialogaram por bastante tempo sobre assuntos diversos, mas todos relacionados com suas experiências sexuais e observações sobre outros frequentadores do Tupy. Ao ser questionado por outro frequentador se ele voltaria no dia seguinte, um domingo, respondeu-lhe que sim, que iria à tarde, pois tinha que “bater ponto”.

Mas, as práticas sexuais que ocorrem nos cines vão além do sexo habitual ou mais comum. Algumas práticas exploram os limites do corpo, outras surpreendem os

boys, que ganham dinheiro sem muito esforço.

Para Foucault (2000), as práticas que poderiam ser geradas no campo das sexualidades periféricas constituem verdadeiros “laboratórios de experiências sexuais”, nos quais se estabelecem jogos, tensões e deslocamentos na utilização de qualquer parte do corpo como um instrumento sexual, e a disseminação do prazer para além do sexual. (DÍAZ-BENÍTEZ E FIGARI, 2009, p. 21)

Nesse sentido, os boys relatam que em alguns programas seus clientes não querem necessariamente uma transa. Alguns deles lhe pagam apenas para conversar ou receber carinho. É uma relação efêmera e sem envolvimento afetivo de fato, porém romantizada. Outros vão para uma das cabines do banheiro e desejam observar o corpo do michê, que fica ali se exibindo enquanto o cliente se masturba. Há também quem queira apenas tocar o corpo do garoto ou lamber-lhe os mamilos. Por outro lado, há práticas sexuais que fogem do comum, como o fisting ou fist

fucking30.

30

Durante uma das visitas ao Tupy, enquanto o pesquisador conversava com Ícaro, ouvia-se na sala um gemido alto e intenso a ponto de sobressair ao som do filme que era exibido. Tratava-se exatamente da prática de fisting em uma das cabines. Um dos frequentadores desse cine, conhecido como César, é praticante desse tipo de sexo. Ele costuma fazer programa com os boys e frequenta o Tupy há bastante tempo, mais de 10 anos.

Em uma entrevista intitulada “Sexo, poder e a política da identidade” Foucault (1982) afirma que “a possibilidade de utilizar nossos corpos como uma fonte possível de uma multiplicidade de prazeres é muito importante.” O autor acrescenta que precisamos criar prazeres novos. Nesse sentido, o corpo seria um campo de experimentação. Com relação às práticas que divergem do comum ou “normal”, Díaz-Benitez e Figaro (2009, p. 24-24) afirmam que:

A constituição de sexualidades normais e periféricas denota uma falsa unidade que fragmenta o corpo, uma desunião que reduz sua eroginia. Por isso, quando aparecem outros corpos ou práticas sexuais/eróticas que desafiam a lógica desta gramática, são produzidos, como vimos, dois efeitos políticos: o primeiro é a consideração de não-humanidade, o segundo, a abjeção e a repugnância.

Para esses autores essas práticas sexuais são dissidentes em relação ao arquétipo normativo, como explicou Foucault (1988) sobre o dispositivo da sexualidade. Dissidentes que não se encaixam nos padrões hegemônicos determinados; desviantes que borram esses contornos; praticantes que a partir do sexo produzem espaços singulares na cidade tanto do ponto de vista fisco quanto simbólico, onde saciam seu desejo e se realizam num possível anonimato, às escuras. Esse possível anonimato – essa opacidade – é relevante, pois há frequentadores que, apesar de dentro dos cines exercitarem uma sexualidade homo- orientada, em seu cotidiano têm uma vida heterossexual, inclusive com família e filhos. Para eles a discrição é fundamental.

A relação entre boys e clientes é pautada pelo que Baudry (2008) chamou de sexualidade profissional. Isso pode ser notado nas palavras do michê Pedro:

[...] a gente pega assim a pessoa, faz aquela putaria da porra, faz a putaria bem feita com o cara. O cara, pô, acha que você sentiu tesão por ele da porra, mas é tudo fingimento. Nada daquilo existiu. [...] é a forma, porque a gente tem que ter isso, porque senão o cara fala: “pô, você é frio”. Aí a frieza nossa é essa aí, fingir: “ai, gostoso, ai, toma, delícia” e bate assim. [...] Pra ele sentir vontade de gozar logo, a gente faz lavagem nele pra ele gozar logo. Aí acabou. Gozou. [sic] (Entrevista, 10 ago. 2013)

Pedro ratifica Baudry (2008), pois o que está em jogo, no caso do profissional do sexo, não é o desejo sexual e sim a satisfação do cliente. Então, ele desempenha uma performance com o objetivo de convencer o cliente ou de conferir mais verdade ao ato. Como podemos perceber, essa é também uma estratégia tanto em relação ao tempo de duração do ato sexual quanto à conquista do cliente que, ficando satisfeito com a performance desse boy, possivelmente voltará a procurá-lo em outras oportunidades.