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Vida, animação e decadência do Centro

1 OS CINEMAS DE RUA NO CENTRO DE SALVADOR

1.5 Vida, animação e decadência do Centro

Como foi dito, o comércio de Salvador concentrava-se basicamente na área central. Havia diferenças locacionais entre os tipos de comércio e em relação ao público ao qual eram destinados. Mas, é o comércio varejista o que mais interessa

aqui. Segundo Santos (2008b, p. 83), as concentrações desse tipo de comércio no centro da Cidade Alta “está ligado um número cada vez maior de cinemas, visto que os cinemas de bairros, mais recentes, oferecem número mais restrito de sessões”.

O autor supracitado acrescenta que a área central polarizava 11 dos 23 cinemas soteropolitanos em 1956, dispondo de 12.074 assentos, enquanto nos demais bairros havia apenas 7.517. Para elucidar a relação entre a concentração de cinemas e o comércio varejista, Santos (2008b, p. 84) afirma:

A relação entre a distribuição dos cinemas e a função comercial varejista se constata pela localização e a categoria das salas de espetáculo. Na praça da Sé, rua Chile, praça Castro Alves, os cinemas são confortáveis, com ar condicionado e preços elevados. Na Baixa dos Sapateiros, não oferecem conforto e são baratos. Na Cidade Baixa não há cinemas.

Isso porque, explica Santos (2008b), o comércio varejista de luxo concentrava-se nas ruas Chile, Misericórdia, Ajuda, Carlos Gomes e parte da Avenida Sete de Setembro e da Avenida Joana Angélica, ou seja, nas áreas mais valorizadas da Cidade Alta. Já o comércio mais popular localizava-se na Baixa dos Sapateiros (Av. J.J. Seabra), que era uma via de tráfego do transporte coletivo em direção aos bairros mais populares. Esta estratificação também era percebida na localização dos cinemas nessas áreas, como afirma Pasqualino Magnavita, antigo frequentador dos cines:

O cinema da parte alta da cidade, quer dizer, o Excelsior, o Liceu, o Tamoio, o Glória e depois o Oceania eram mais cinema de elite, não eram tão frequentados como o Jandaia, populares e tal, né; era mais de elite, porque era uma cidade ainda quase uma província, não tinha mais de 350, 400 mil habitantes, né. E o cinema era uma grande atração. (Entrevista, 26 ago. 2012)

Nessa época ir ao cinema era muito mais do que apenas ver o filme que estava em cartaz, como afirmou em entrevista a senhora Fátima Pimentel, atriz e antiga frequentadora de muitos cinemas de rua de Salvador. Era um local onde as pessoas socializavam, onde paqueravam e encontravam os amigos. Para isto,

segundo ela, todos se arrumavam, as meninas maquilavam-se e vestiam suas melhores roupas. O cinema estava fortemente presente na vida das pessoas.

A concentração de tantas atividades diversas no Centro lhe causou um dinamismo sem igual na cidade. Assim, a circulação de pessoas e veículos durante o dia era muito intensa. Nos fins de tarde, com o encerramento de algumas atividades comerciais e serviços, o Centro ficava animado, pois muitos se deslocavam entre a Praça da Sé e a Praça Castro Alves em busca de transporte coletivo: bonde ou ônibus. Sobre a dinâmica nesta área, Pasqualino Magnavita assinala a importância da Rua Chile:

A turma frequentava o Centro. A rua principal era a Rua Chile, Avenida Sete até as Mercês. Então tinha consultórios e tudo, lojas, vilas Américas, tinha Confeitaria Baiana, já tinha a Cubana, que as pessoas sentavam lá pra tomar um sorvete milkshake, que era coisa americana, milkshake. Aí iam tomar milkshake na Baiana com os bolinhos. Ainda tem, né! E tinha outra sorveteria aí, a Baiana... a Rua Chile... Então, tinha o footing, quer dizer, as pessoas iam pras lojas, iam comprar e iam paquerar. Essa palavra paquerar foi depois. Iam fazer footing, que era uma palavra americana. (Entrevista, 26 ago. 2012)

Santos (2008b) afirma que durante o dia o Centro era um nó de comunicações, com a passagem de uma enorme quantidade de veículos, o que já naquela época provocava transtornos no trânsito. O autor acrescenta que a circulação de pessoas aumentava nos fins de tarde e nos momentos de entrada e saída dos cinemas. Ainda, o Centro nunca ficava completamente deserto mesmo nas “horas mortas”, pois havia uma população pobre que ocupava as casas antigas.

O comércio, os gabinetes médicos, os salões de beleza, outros “serviços” e também o simples trottoir elegante dos fins e tarde na Rua Chile atraem uma multidão de pessoas que se sucedem em um vaivém incessante. Por outro lado, a função de verdadeira encruzilhada realizada pelo centro urbano provoca uma circulação considerável de pedestres, entre os pontos de parada que, ao mesmo tempo, são pontos de correspondência. Uma aproximação pessimista entre 17h30 horas e 18h30 horas atribui a passagem de 30 mil pessoas a pé pela rua Chile e cerca de 35 mil pelo Taboão. Esta é a mais curta ligação entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta, utilizada pelos operários e pequenos empregados para economizar os 50 centavos, que é quanto custa uma passagem pelo Elevador. (SANTOS, 2008b, p. 126)

À noite, a movimentação tinha outras razões, quais fossem os cinemas, que funcionavam até meia-noite, ou atividades não tão aceitas durante o dia.

É o coração da cidade noturna, a praça 15 de novembro, pertinho da zona de prostituição, onde prostitutas, vagabundos, marginais de todas as espécies dão-se encontro em ruas mal iluminadas. [...] Os botequins se tornam movimentados. A polícia afrouxa a vigilância e as prostitutas (a quem é proibido fazer o trottoir durante o dia) podem sair e se exibir na rua. Isso se passa na Cidade Alta (SANTOS, 2008b, p. 130).

Setaro (s.d., p. 37) afirma que “nos anos 1950, a cidade de Salvador efervesce culturalmente, sacudindo a Velha Bahia com espetáculos renovadores, propostas de vanguarda.” Além do cinema, outras atividades artísticas foram marcantes entre os anos 1950 e 1960, como as atividades desenvolvidas pela Escola de Teatro, liderada por Martim Gonçalves, e a agitação do Museu de Arte Moderna (MAM), sob direção de Lina Bo Bardi.

Acontecia nessa época a invenção da vida moderna soteropolitana. O cinema, ou seja, a imagem enquanto mercadoria sofisticada da modernidade, circulava em Salvador e influenciava fortemente em sua dinâmica urbana, assim como aconteceu em outras cidades.

A imagem de cidade moderna construída pelo cinema desempenhou um papel ativo no processo de desenvolvimento urbano das cidades nos países periféricos. O caso de são Paulo deve ser semelhante ao de diversas outras cidades na América Latina. O cinema desempenhava um duplo papel. Por um lado apresentava essa imagem sedutora de cidade moderna para uma cidade que passava por um intenso processo de crescimento. Por outro lado, era, ele mesmo, uma diversão moderna, que se somava aos novos componentes do tipo de vida cosmopolita que começava a se instalar na São Paulo a partir dos anos 20. Estes dois papéis estavam expressos na repercussão das imagens de vida moderna por ele divulgadas e na presença dos seus edifícios na cidade, que gradualmente ajudavam a transformar São Paulo em algo parecido com as metrópoles apresentadas nas telas. (ANELLI, 1998, p. 375- 376)

Assim era o Centro de Salvador: uma variedade de fluxos atraídos pela existência de numerosos fixos que atendiam à cidade. Para Santos (2008c), o espaço é formado por esses dois elementos que interagem mutuamente alteram-se reciprocamente. Os fixos são, para o autor, os próprios instrumentos de trabalho e as forças produtivas de modo geral, ou seja, os fixos são construções materiais, são formas. Os fluxos são o movimento, a dinâmica, a circulação e estão relacionados aos fixos. Para o autor, para cada fixo há tipos de fluxos correspondentes. Isso ajuda a explicar que a localização de certos empreendimentos em uma dada área da cidade interfere na dinâmica dos movimentos da população ou parte dela.