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3.2 A DEVIDA REPRESSÃO JURÍDICO-PENAL DA HOMOFOBIA

3.2.1 As previsões normativas e a dignidade da pessoa humana como fatores

Desacordos morais são a tônica da democracia e, por conseguinte, de um Estado Democrático de Direito; se assim não o fosse, estar-se-ia diante de uma “ditadura da maioria”. Os debates sobre questões fundamentais e a divergência acerca delas são a essência desse modelo político, que deve primar, acima de tudo, pelo reconhecimento do pluralismo e da diversidade, justamente para a constituição do próprio Estado e a consolidação e efetivação dos direitos fundamentais (SILVA; BAHIA, 2015, p. 178 e 182).

Na Constituição da República Federativa do Brasil, há um rol destinado às garantias individuais mínimas dos cidadãos, o qual se distribui pelo artigo 5º e seus setenta e oito incisos. Esse rol, no entanto, está longe de ser taxativo e plenamente eficaz de per si. Para além da previsão contida no parágrafo 2º desse dispositivo, o qual apregoa que a Constituição não exclui “outros [direitos fundamentais e garantias] decorrentes do regime e dos princípios por ela

adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, há, entre esses direitos, alguns que dependem de iniciativa legislativa para sua concretização. É o caso, por exemplo, do inciso XXXII, que estatui a defesa do consumidor, asseverando que esta será promovida pelo Estado, na forma da lei – nesse caso, a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor.

Mas, se há situações em que a efetivação dos direitos fundamentais é precisa, em outras, não há como se proceder objetivamente, o que ocasiona as tão importantes discussões referidas no início do presente tópico. Nesse sentido, o inciso XLI do já mencionado artigo da Carta Magna prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Como garantir que essa determinação seja cumprida?

É óbvio que essa pergunta não pode ser respondida simplesmente com um “por meio de uma lei”, pois isso levaria a redarguir: “qual lei”? Qual lei seria capaz de abraçar toda a pluralidade de indivíduos e sujeitos existentes num Estado Democrático de Direito, a fim de que maioria e minoria fossem protegidas legalmente contra discriminações que fossem de encontro a seus direitos e liberdades fundamentais?

Inexiste tal legislação.

Logo, a alternativa, no ordenamento jurídico brasileiro, tem sido a edição de diferentes diplomas legais que, cada qual à sua maneira, façam valer o mandamento insculpido na Constituição. A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, batizada de Lei do Racismo, é, talvez, a mais paradigmática a esse respeito, porquanto, ao estipular, no caput do seu artigo 1º, que “serão punidos [...] os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, institui uma forma segura de garantir aos integrantes de grupos geralmente discriminados – pela cor de sua pele, pela sua região ou até mesmo local de origem – que qualquer ato de segregação ou hostilidade contra eles praticados seja punido.

No entanto, quando se trata dos atos atentatórios contra os direitos ou liberdades individuais de minorias ligadas à diversidade sexual ou identidade de gênero, há uma lacuna que perpassa o sistema jurídico, conforme exposto no capítulo anterior.

Tal constatação viola a Constituição de 1988, justamente aquela chamada de “cidadã” e que tantos avanços vem proporcionando para o constitucionalismo e para a democracia brasileiros; violam-se, e.g., o direito à não-discriminação, que é um objetivo fundamental da República (art. 3º, IV) e o direito de igualdade (art. 5º, caput) – compreendida esta não apenas como isonomia mas também como direito à diversidade. (SILVA; BAHIA, 2015, p. 184).

Essa lacuna subsiste mesmo a despeito das inúmeras previsões legais relativas à repressão a atos atentatórios aos direitos fundamentais dos integrantes de grupos

marginalizados, seja por não se amoldarem à sexualidade padrão ou ao gênero ao qual estão socialmente determinados. Além do que está positivado na Constituição da República, em seu artigo 5º, inciso XLI, citado alhures, há, a nível global, documentos que trazem e fazem valer essa mesma determinação. A seguir, alguns deles serão indicados, sem o intento de uma abordagem exaustiva.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada, em 10 de dezembro de 1948, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, como uma norma comum a servir de objetivo para todas as nações, estabelece, em seu artigo 2º, subitem 1, que:

[...] todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades [...], sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (ONU, 1948) (Os grifos não estão na redação original).

Nesse viés, vale ressaltar, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, recepcionado pelo Brasil por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, e que, em seu artigo 26, dispõe, em redação semelhante àquela da Declaração supracitada, que todas as pessoas possuem igualdade perante a lei, tendo direito à proteção legal, e devendo ser proibidas quaisquer formas de discriminação, independentemente da situação do indivíduo. Com base nesse Pacto, ao examinar o caso Toonen vs. Austrália9, o próprio Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas considerou ser indevida a discriminação em razão da orientação sexual (BAHIA; SILVA, 2015, p. 193).

O Pacto de San José da Costa Rica, cognominado, ainda, de Convenção Americana de Direitos Humanos, do qual o Brasil é signatário (Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992), outrossim, estipula, em seu artigo 24, a igualdade de proteção da lei a todos os cidadãos, sem discriminação. Ademais, não se pode olvidar que o Brasil aderiu à competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de modo que a constatação de violação aos direitos de parcelas minoritárias, como o grupo LGBT+, por exemplo, pode ser submetida à sua

9 Em 1991, a homossexualidade era uma conduta criminalizada no estado australiano da Tasmânia. Nicholas Toonen, um homem homossexual, enviou, então, uma notificação ao Comitê de Direitos Humanos, da ONU, alegando que a determinação estatal, no sentido de criminalizar os atos homossexuais, era uma ofensa à privacidade, assegurada pelo artigo 17 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, bem como violava o artigo 26 desse mesmo documento. Como resultado, Toonen perdeu seu emprego de gerente no Conselho da Tasmânia sobre Hepatite e Doenças Relacionadas à AIDS, sob ameaça do Governo de que as verbas repassadas ao Conselho seriam cortadas caso ele permanecesse no cargo. O pleito de Nicholas Toonen não foi analisado pelo Comitê de Direitos Humanos até 1994, quando uma decisão desse Comitê considerou que a criminalização da homossexualidade, de fato, violava as obrigações do Pacto. Como resultado, a Commonwealth baixou uma determinação extinguindo a criminalização da homossexualidade na Tasmânia (AUSTRALIAN HUMAN RIGHTS COMMISSION, 2012, tradução nossa).

apreciação, como ocorreu com o caso Atalla Riffo e Filhas vs. Chile10, em 2012, ocasião em que, através de sentença, a Corte condenou o país por discriminação motivada por orientação sexual (BAHIA; SILVA, 2015, p. 193 e 195).

De mais a mais, tem-se a Resolução nº 2435, aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 3 de junho de 2008, que dispõe sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Fruto da iniciativa de uma delegação brasileira e lastreada nas disposições da já aludida Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Declaração Americana dos Direitos do Homem e da Carta da OEA e nos princípios de universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, o documento expressa, pela primeira vez, a preocupação desse órgão em relação à violação aos direitos humanos e à violência perpetrada contra certos indivíduos, motivados pela orientação sexual e identidade de gênero (VECCHIATTI; VIANA, 2014, p. 341).

A partir de 2008, houve uma sequência anual de resoluções da OEA (a de nº 2504, de 2009; a de nº 2600, de 2010; a de nº 2653, de 2011; a de nº 2721, de 2012; e a de nº 2807, de 2013), todas condenando a discriminação, nos países-membros, por orientação sexual ou identidade de gênero, prescrevendo, a essas nações, que adotassem medidas específicas para a coibição de tais práticas (BAHIA; SILVA, 2015, p. 194).

Por fim, em 5 de junho de 2013, na 43ª Assembleia Geral da OEA, foram aprovados os textos relativos à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância e à Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, nos quais se verifica, de forma inédita em uma convenção, a inclusão do conceito orientação sexual atrelado às minorias [que deverão ser] protegidas (BAHIA; SILVA, 2015, p. 194).

Em linhas gerais, cada uma dessas previsões normativas tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, aliás, também, é um elemento essencial para

10 Refere-se ao embate judicial ocorrido, em território chileno, no qual a juíza Karen Atala perdeu a guarda, bem como o poder familiar de suas três filhas (à época com 5, 6 e 10 anos de idade) para o ex-marido, após este ter alegado, no processo de divórcio, que a ex-mulher mantinha relação homoafetiva e vivia com sua companheira, o que poderia causar prejuízo ao desenvolvimento sadio de sua prole. O caso chegou à Suprema Corte do país, que manteve inalterada a decisão, sob os argumentos de que as crianças estariam numa posição de “vulnerabilidade” em seu convício social caso ficassem sob a tutela da mãe, uma vez que o ambiente familiar no qual estariam inseridas, díspar daquele considerado normal, expô-las-ia ao isolamento e à discriminação. Em 24 de fevereiro de 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Chile por violação aos direitos de não- discriminação, igualdade, vida privada e proteção da honra e dignidade, ficando o país obrigado a cumprir uma série de determinações quanto a esse caso, tais como atendimento psicossocial às vítimas e implementação de programas e cursos aos servidores, sobretudo os do Poder Judiciário. Foi a primeira condenação da Corte Interamericana por violação ao direito de não-discriminação pautado na orientação sexual (VECCHIATTI; VIANA, 2014, p. 353-354).

considerar devida a repressão jurídico-penal da homofobia, aqui entendida, frisa-se, como a intolerância a todos aqueles que assumem uma sexualidade desviante à padrão ou que se identificam com um gênero que não aquele socialmente imposto.

A dignidade humana surgiu como um valor filosófico e, em algumas searas, até mesmo teológico, atravessando mais de dois mil anos de especulações filosóficas, nas quais assumiu as mais diversas configurações, para, somente após a Segunda Guerra Mundial e os horrores durante ela cometidos, transformar-se em preceito constitucional de maior estirpe, juridicamente vinculativo (MENDES, 2013, p. 85).

Sua definição é um tanto quanto turva, pois, não raras as vezes, esse princípio é associado levianamente a um sem número de garantias individuais, o que pode ocasionar o esvaziamento de seu núcleo (MENDES, 2013, p. 89). Segundo Sarlet (2002, p. 39),

Uma das principais dificuldades [da definição do conceito de dignidade da pessoa humana] [...] reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal [...].

Pode-se afirmar, até, que é mais fácil dizer o que a dignidade da pessoa humana não é do que o que ela é, por se tratar de categoria axiológica aberta, impossível de ser conceituada de maneira fixista, estando seu conteúdo em constante processo de construção e desenvolvimento, bem como sua concretização ficando a cargo da práxis constitucional. Um de seus muitos aspectos, porém, é certo: a dignidade é intrínseca à condição humana, de sorte que é irrenunciável e inalienável, devendo ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, sobretudo pelo Estado (SARLET, 2002, p. 39 e 41).

Portanto, a orientação sexual, e, por conseguinte, a identidade de gênero, vinculam-se a esse atributo vital de nossa condição, constituindo uma essência indissociável do indivíduo (VECCHIATTI; VIANA, 2014, p. 335), sendo devida a proteção desses elementos da personalidade contra toda ação que os ameacem ou desrespeitem, por meio de iniciativas dos entes estatais, tais como a criminalização da homofobia, como se tratará no subitem seguinte.