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2.5.1 As três formas de violência homofóbica

A homofobia se manifesta nos mais variados espaços e lugares, sob diversas formas e nuances.

É importante destacar que, para Carvalho (2013, p. 161), o estudo da violência homofóbica pode ser analisado sobre três diferentes perspectivas, as quais apontam, também,

especificidades no exame do problema relacionado à homofobia. São elas: a violência homofóbica interpessoal, a violência homofóbica institucional e, por fim, a violência homofóbica simbólica.

2.5.1.1 Violência homofóbica interpessoal

A primeira concerne ao “estudo da vulnerabilidade das masculinidades não- hegemônicas e das feminilidades à violência física (violência contra a pessoa e violência sexual)” (CARVALHO, 2012, p. 161). Essa espécie de violência homofóbica corresponde aos atos brutos de agressão, ao aspecto “real” da hostilidade contra os sujeitos desviantes à norma heterossexual imposta (CARVALHO, 2012, p. 154). São as cusparadas, os tapas, os socos, os espancamentos, os estupros… tudo aquilo que viola, que deixa marcas nos integrantes do grupo LGBT+.

Amplamente noticiada, a violência homofóbica interpessoal é a mais palpável forma de homofobia. Casos emblemáticos de exteriorização dessa violência marcam a história recente do país, tais como o do adolescente Lucas Ribeiro Pimentel, homossexual assumido, jovem de quinze anos, cujo corpo foi encontrado flutuando num rio, em Volta Redonda, estado do Rio de Janeiro. Espancado com pauladas, Lucas teve seus olhos arrancados, o crânio afundado e o corpo empalado. O caso, inclusive, chegou até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (SOUZA, 2013, p. 78).

Mais recentemente, em 2017, circulou pela internet o vídeo de um grupo de homens espancando e ridicularizando a travesti Dandara dos Santos. Proferindo ofensas, os indivíduos que aparecem na gravação desferem socos, chutes, pontapés e ridicularizam Dandara, mesmo que ela, já coberta de sangue, não consiga esboçar qualquer reação2. Ao final do vídeo, a vítima ainda é colocada dentro de um carrinho de mão e empurrada para longe, acompanhada por manifestações de orgulho e vitória por parte dos agressores. Após o linchamento, Dandara foi

2 O Povo. Travesti é espancada até a morte no Bom Jardim. 2017. Disponível em: <https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2017/03/travesti-e-espancada-ate-a-morte-no-bom-jardim.html>. Acesso em: 28 fev. 2020.

executada a tiros3. O caso ganhou tamanha repercussão que, em 2019, uma escultura em sua homenagem, de autoria do artista plástico Rubem Robierb, foi exposta em Nova Iorque4.

2.5.1.2 Violência homofóbica institucional

A violência homofóbica institucional, por seu turno, apresenta duas facetas, uma delas ligada à aplicação sexista (misógina e homofóbica) da lei penal e a outra, na construção de práticas sexistas violentas através das agências punitivas, como os cárceres, por exemplo (CARVALHO, 2012, p. 161). Para Souza (2013, p. 43), essa espécie de homofobia ofende, de maneira impessoal, os direitos do grupo LGBT+. Aqui se inserem os cartórios que ainda não realizam uniões homoafetivas, bem como os representantes de instituições que supostamente deveriam zelar pelo interesse público, mas que, em vez disso, obstaculizam a perfectibilização dessas uniões5; as disposições normativas que fomentam o preconceito e a intolerância, como a Resolução nº 153, de 14 de junho de 2004, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que impede que homossexuais autodeclarados com vida sexual ativa possam realizar doação de sangue – restrição esta felizmente derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543, concluído em maio de 20206; a criminalização da pederastia no Código Penal Militar7, dentre outros. Em suma, pode-se afirmar que, até mesmo em Estados em que a lei não proscreve a homossexualidade, a comunidade LGBT+é frequentemente vítima de excessos e assédios, mormente por entidades ligadas ao próprio aparato estatal (BORRILLO, 2010, p. 108) e legitimadas pela violência homofóbica institucional.

3 G1. Polícia investiga homicídio de travesti que foi espancada até a morte no CE. 2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/ceara/noticia/2017/03/policia-investiga-homicidio-de-travesti-que-foi-espancada-ate- morte-no-ce.html>. Acesso em: 28 fev. 2020.

4 G1. Escultura em Nova Iork homenageia travesti Dandara dos Santos, vítima de violência. 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/27/escultura-em-nova-york-homenageia-travesti-dandara-dos- santos-vitima-de-violencia.ghtml>. Acesso em: 28 fev. 2010.

5 NSC Total. Promotoria de Florianópolis contesta casamentos homoafetivos. Disponível em: <https://www.nsctotal.com.br/noticias/promotoria-de-florianopolis-contesta-casamentos-homoafetivos>. Acesso em: 28 fev. 2020.

6 Portal STF. Proibição de doação de sangue por homens homossexuais é inconstitucional, decide STF. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443015&ori=1. Acesso em: 7 set. 2020.

7 Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar: Pena – detenção, de seis meses a um ano.

2.5.1.3 A violência homofóbica simbólica

Por fim, a violência homofóbica simbólica, segundo Carvalho (2012, p. 161), consiste em processos formais e informais na construção de um discurso heteronormativo. Esse autor (2012, p. 156) aponta que o entrelaçamento entre os saberes científicos e as teorias do cotidiano (everyday theories) é o responsável por uma espécie de senso comum homofóbico que instaura compulsoriamente a heterossexualidade cisgênera como padrão.

2.5.2 A necessária repressão penal da homofobia

Sublinha-se, ainda, que a homofobia, segundo Borrillo (2010, p. 40), “permanece como a única discriminação inscrita formalmente na ordem jurídica”. Borrillo (2010, p. 40) faz essa afirmação sob o argumento de que nenhum outro segmento da população é excluído da fruição de seus direitos fundamentais em razão de sua origem étnica, religião, sexo ou qualquer outra delimitação arbitrária. Ademais, enquanto as práticas de racismo, antissemitismo, misoginia e xenofobia são coibidas e formalmente condenadas pelas instituições, a reprovação da homofobia prevalece no senso comum quase como uma opinião sensata.

É inimaginável proferir, atualmente, afirmações injuriosas contra outras minorias – como ocorre abertamente em relação aos homossexuais –, entre outros motivos, porque tais atitudes são passíveis de ser punidas pela lei. Ao passo em que a homossexualidade, nos últimos dois séculos, foi combatida como pecado, crime e doença, ora escapando dos olhos da Igreja para logo cair sob o jugo das clínicas médicas, a ausência de proteção jurídica contra a homofobia submete os homossexuais a uma posição particularmente vulnerável (BORRILLO, 2010, p. 41).

A escalada da violência contra o grupo LGBT+, conforme exposto acima, sobretudo os elevados índices de denúncias em canais criados pelo Governo, os crimes bárbaros e cada vez mais frequentes veiculados pala mídia, as narrativas escancaradas de ódio proferidas por determinadas personalidades e, nada obstante, por representantes da classe política8, desenham,

cada vez mais, um cenário que sugere uma resposta penal a fim de se alcançar um controle mínimo acerca da situação (SOUZA, 2013, p. 70).

8 Lado A. 100 frases homofóbicas de Jair Bolsonaro. Disponível em: <https://revistaladoa.com.br/2016/03/noticias/100-frases-homofobicas-jair-bolsonaro/>. Acesso em: 29 fev. 2020.

Isso porque, apesar dos dados demonstrarem um elevado índice de notificação de casos de homofobia, não há como ignorar, também, a subnotificação de grande parte (senão a maioria) deles, decorrente, acima de tudo, da descaracterização formal da natureza homofóbica específica de certos atos ou condutas (embora a violência homofóbica assuma contornos bastante típicos), além, é claro, da expectativa de que, mesmo havendo notificação, o agressor – ou agressores – não será punido (SILVA; BAHIA, 2015, p. 184).

Impende salientar que:

Não existe um modus operandi da homofobia, repetitivo, maquinal, previsível. Até porque ela pode ser um mero discurso sem externalizar ações que deixem vestígios de um crime. Uma vez que está enraizada na sociedade e entranhada nas instituições com o disfarce de elementos culturais, é bastante complicado contemplar num só tipo penal, por exemplo, todas as possíveis condutas, diversos que sejam os matizes, que possuam a finalidade comum de oprimir quem não se adéqua às normas de gênero e de comportamento sexual dominantes. (SOUZA, 2013, p. 72).

Contudo, não é demais relembrar que nenhum tipo penal jamais abarcará, na íntegra, o conjunto de condutas que pretende reprimir, servindo, para tanto, o juízo de subsunção, ou seja, a aplicação da norma incriminadora mais adequada ao caso concreto.

Sendo assim, a homofobia, enquanto problema social, há de ser considerada como delito suscetível de sanção jurídica (BORRILLO, 2010, p. 106), devendo a sua criminalização atentar-se à tutela não apenas da integridade física dos sujeitos homossexuais, mas também de sua liberdade individual, honra e integridade psíquica. Todavia, o viés repressor é destituído de significado se não vier acompanhado das devidas ações preventivas, especialmente a conscientização da gravidade do fenômeno homofóbico (BORRILLO, 2010, p. 106-107).

No decorrer do presente capítulo, aprofundou-se ao menos em três causas da homofobia – e reitera-se que esta abordagem está longe de ser exaustiva e, muito menos, taxativa –, estando elas tão profundamente incrustradas no imaginário da sociedade que se torna, para dizer o mínimo, inconsequente pensar que a criminalização deve ser avaliada como o propósito final da luta contra a tradição homofóbica, quando, em verdade, é apenas o começo.

3 O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO Nº 26 E DO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 4377

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente capítulo versa sobre o histórico e controverso julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e do Mandado de Injunção nº 4377, pelo Supremo Tribunal Federal. Subdividido em três itens, o primeiro abordará as previsões normativas existentes, assim como a incidência do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o dever de se coibir jurídica e penalmente a homofobia, além de tratar do andamento de projetos de lei relacionados ao tema no Congresso Nacional. O segundo item, por seu turno, é destinado a um panorama geral das referidas ações perante a Suprema Corte, trazendo comentários a respeito de suas naturezas jurídicas, seus dados gerais e as principais manifestações e pontos de vista que foram trazidos aos autos pelas partes, amici curiae e Ministério Público. Por fim, o terceiro é dedicado a uma síntese dos votos de cada um dos onze ministros, os quais decidiram, por maioria, pela procedência das demandas.