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A finalidade da ordem jurídica é a busca de meios eficazes à aplicação de um direito que se adeque aos clamores sociais e que respeite o seu constante devir. Um dos meios para se atingir esse objetivo é o processo hermenêutico, porquanto é ele que transforma a letra inerte da lei em validade perante seus destinatários, por meio do fenômeno interpretativo (SANTOS, 2016, p. 147).

Ao contrário do que defende o positivismo legalista, o direito penal não pode ser calcado, com exclusividade, no formalismo legal, isto é, no que dispõem os tipos penais tais como descritos, até porque a legislação sempre será aplicada a um caso concreto – a chamada subsunção –, por mais claro que seja o texto legal em apreço. Dessarte, é um erro considerar a mera formalidade da lei como superior ao seu aspecto material, tendo em vista que, nada obstante aquela possua grande valia, não subsiste sem os valores principiológicos deste, mormente os que aludem à liberdade e à dignidade humanas (SANTOS, 2016, p. 147).

Nesse sentido:

[...] por mais minudente que seja a lei, será ela formulada em termos gerais e abstratos. Isso para que cumpra sua função de regular uma multifacetada gama de fatos e relações sociais. E a linguagem geral e abstrata, ainda que muito clara, sempre suscitará controvérsia, mormente quanto a seu alcance. (RIBEIRO, 2009, p. 151). Em contrapartida, não se ignora que a interpretação é um processo de descoberta do conteúdo da lei, e nunca de criação de novas normas, de modo que não causam polêmica os

métodos literal, teleológico e sistemático16 de compreensão dos dispositivos legais, visto que todos são admitidos sem restrições a fim de um maior esclarecimento acerca das intenções do legislador (NUCCI, 2020, p. 121),

O mesmo não se pode dizer das formas extensiva e analógica de interpretação. Nucci (2020, p. 121) considera que:

A [interpretação] extensiva é o processo de extração do autêntico significado da norma, ampliando-se o alcance das palavras legais, a fim de se atender à real finalidade do texto. A [interpretação] analógica é o processo de averiguação do sentido da norma jurídica, valendo-se de elementos fornecidos pela própria lei, através do método de semelhança.

Um exemplo de interpretação extensiva é aquele encontrado no artigo 176 do Código Penal, cujo caput enuncia ser crime “Tomar refeição em restaurante [...] sem dispor de recursos para efetuar o pagamento”. O termo restaurante, ao ter seu conteúdo ampliado, por intermédio de interpretação extensiva, abrange boates, bares, pensões e estabelecimentos similares. Isso ocorre, também, em relação ao delito de bigamia, pois, numa conclusão lógica, apesar de sua rubrica, o artigo 235 do Código Penal não só prevê como criminosa a conduta daquele que se casa duas vezes, mas, outrossim, a daquele que contrai matrimônio três ou mais vezes (poligamia) (NUCCI, 2020, p. 122).

Já a interpretação analógica permite ao intérprete que busque aplicar o direito com base nas semelhanças entre situações concretas previstas no próprio texto legal, como é o caso do inciso III do parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal, o qual qualifica o homicídio quando o agente comete o crime “com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum”. As amostras concedidas no texto (veneno, fogo, explosivo, asfixia e tortura) abrem espaço para que, devido à equivalência de outro meio considerado “insidioso”, “cruel” ou “de que possa resultar perigo comum”, o operador do direito não se limite às hipóteses inicialmente previstas (NUCCI, 2020, p. 122- 123).

Contudo, apesar de tanto a intepretação extensiva quanto a analógica serem aceitas no direito penal pela doutrina e jurisprudência, essas hipóteses não se confundem com a analogia, que é um processo de autointegração do ordenamento jurídico, onde se cria uma norma penal que não existe originalmente (NUCCI, 2020, p. 77).

16 O método literal, gramatical textual ou filológico busca o sentido e alcance da norma a partir de uma simples leitura do texto; o método teleológico ocupa-se do objetivo ou finalidade a que a lei de destina; e o sistemático apregoa que o sentido de uma norma somente pode ser alcançado pela análise de todo o ordenamento no qual se insere (RIBEIRO, 2009, p. 155).

A propósito, sobre a analogia, Nucci (2020, p. 14) afirma que:

O [seu] emprego [...] não se faz por acaso ou por puro arbítrio do intérprete; há significado e lógica na utilização da analogia para o preenchimento de lacunas no ordenamento jurídico. Cuida-se de uma relação qualitativa entre um fato e outro. Entretanto, se noutros campos do Direito a analogia é perfeitamente aplicável, no cenário do Direito Penal ela precisa ser cuidadosamente avaliada, sob pena de ferir o princípio constitucional da legalidade (não há crime sem lei que a defina; não há pena sem lei que a comine). Assim sendo, não se admite a analogia in malam partem, isto é, para prejudicar o réu. Exemplo dessa espécie de analogia seria a construção do tipo penal de assédio moral (crime inexistente) por semelhança à situação do assédio sexual, prevista no art. 216-A [do Código Penal]. (NUCCI, 2020, p. 124) (O grifo não consta na redação original).

A grande maioria das críticas dirigidas às decisões do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733, fundamenta-se na equivocada alegação de que a Suprema Corte lançou mão de uma espécie de analogia in malam partem ao “criminalizar a homofobia”. E aqui utiliza-se aspas porque o que se vislumbra naquele julgado não é a criação de um novo tipo penal por meio de qualquer semelhança entre as condutas homofóbicas e a prática do racismo, na acepção sociológica-constitucional do termo, mas sim um exercício de interpretação conforme à Constituição da lei penal, visto que, na realidade, a homofobia estaria abarcada pelo termo “raça” previsto na Lei nº 7.716/1989, segundo os preceitos elencados na Lei Fundamental.

A interpretação conforme nada mais é que uma espécie de método sistemático de interpretação das normas jurídicas, que utiliza o Texto Constitucional como vetor hermenêutico da legislação infraconstitucional, pois, se é a Constituição que funda todo o ordenamento jurídico, exerce ela papel de destaque dentro do método sistemático, guiando o intérprete na busca do sentido e do alcance das normas (RIBEIRO, 2009, p. 156).

Não se ignora o entendimento de que o papel da Constituição assume uma dupla função: ora como vetor hermenêutico, conforme destacado, e ora como baliza no controle constitucional exercido pelo STF. No primeiro caso, atuaria [a Constituição] no processo de interpretação da lei, enquanto no segundo, quando o sentido e alcance da norma já estão definidos, funcionaria como parâmetro de controle, a fim de verificar a (in)compatibilidade entre o dispositivo examinado e o Texto Constitucional (RIBEIRO, 2009, p. 156). A despeito de haver certa divergência doutrinária a respeito da real aplicabilidade da intepretação conforme (isto é, se no processo interpretativo ou no controle de constitucionalidade), é pacífico, na jurisprudência da Suprema Corte, que pode sim ser empregada como mecanismo hermenêutico, segundo amplamente destacado, inclusive, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733.

Sendo assim, ao lançar mão de intepretação conforme à Constituição, a Suprema Corte buscou amoldar o alcance do termo “raça”, disposto na Lei nº 7.716/1989, ao que dispõe o Texto Constitucional – que o racismo é uma prática social, dissociado de qualquer elemento biológico ou fenotípico de determinado grupo e, que, portanto, nesse conceito inclui-se a homofobia, devendo esta ser coibida jurídico-penalmente, de acordo com mandado expresso na própria Carta Magna.

À vista disso, o STF não “criminalizou a homofobia”, posto que esta já se encontrava tipificada na referida legislação, tendo somente atendido à finalidade constitucional da norma legal, expressa pela realidade material vivenciada em nosso sistema jurídico – qual seja, da iterada violação aos direitos fundamentais da população LGBT+ por meio de atitudes, gestos, e discursos de ódio de uma maioria heterossexista e cisgênera.

A propósito, sobre a temática, manifesta-se Nucci (2020, p. 945):

[...] em recente decisão do STF, por maioria de votos (8 x 3), no Plenário, julgou-se que a homofobia é uma espécie de racismo, razão pela qual já se encontra tipificada em lei (Lei do Racismo). Essa sempre foi a nossa tese, defendida desde o ano de 2006, agora aceita pelo Pretório Excelso. Não há nenhuma espécie de analogia in malam

partem. Toma-se, apenas, o termo racismo, buscando interpretar o seu significado nos

moldes contemporâneos.

Por fim, giza-se que o processo hermenêutico nasce de diversas realidades históricas, de sorte que, se o fenômeno jurídico se configura por um complexo que compreende fato social, valoração e normatividade, assim o deve observar o sistema de interpretação das leis (SANTOS, 2016, p. 148).

4.3.4 O conceito sociológico-constitucional de “raça” na Lei nº 7.716/1990: o Caso