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AS PRIMEIRAS CENAS: GRIFFITH E CHAPLIN

CAPÍTULO 2 A REVELAÇÃO DO SANTO GUERREIRO

2.1 AS PRIMEIRAS CENAS: GRIFFITH E CHAPLIN

Glauber se deteve sobre o cinema americano, dedicando uma atenção específica ao processo de criação de diretores ligados ao modelo hollywoodiano, observando os constantes embates entre a criatividade desses realizadores e o pragmatismo do mais eficiente sistema de produção cinematográfica. Nesse percurso, tratou tanto de cineastas pioneiros clássicos quanto de diretores vanguardistas. Analisou a “rebelião inconsciente”196 dos que produziam mecanicamente para a indústria, a exemplo de Griffith; e, ao mesmo tempo, expôs a insurreição consciente dos autores modernos, como Chaplin, e dos que contribuíram para a ruptura da narrativa imposta pela usina de sonhos mecânicos, conforme críticas dedicadas desde ao reconhecido Stanley Kubrick até ao desconhecido Irving Lerner.

Na crítica que tem por título O Carlito, meu e nosso amigo teus sapatos e teu bigode

caminham numa estrada de pó e esperança197, Glauber se opunha à política posta em prática no sistema de produção americano, contaminado pelo sectarismo notadamente anticomunista do movimento macarthista preponderante durante boa parte dos anos 1950.

Glauber reconhecia em Chaplin não um mero realizador ou cineasta, mas “um complexo artístico que transcende ao cinema” e dizia que “a democracia americana e o

196 Cf. Glauber ROCHA. O novo cinema do mundo. In: Século do cinema: São Paulo: Editora Cosac&Naify, 2006, p. 343-352.

197 Crítica publicada originalmente no semanário Sete Dias, 1957, com o título: O Carlito, meu e nosso amigo teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança. Texto modificado e reeditado com os títulos Chaplin, I, II, III e IV. Cf. Glauber ROCHA. Século do Cinema. Op. Cit., p.11-13. A frase foi extraída do poema Canto ao homem do povo – Charles Chaplin (Carlos Drummond de ANDRADE. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1945).

nazismo germânico se uniram contra o gênio poético do cinema198”. Segundo Glauber, “a

questão não se esgota na palavra científica que tenta aprisionar a metáfora poética num laboratório de probabilidades: Chaplin ilumina o século XX porque nele o povo se faz imagem” e

os americanos e, particularmente, a cinemascópica Hollywood tremem e vociferam contra um gênio, enquanto os covardes e os intelectuais procuram negá-lo, com raquíticos argumentos. O homem e o artista Chaplin permanecem impassíveis, sabendo a fraqueza de muitos homens, mas amando, sobretudo os valores do homem. Está presente em sua época, participando com sua imensa sabedoria que a vivência de um século mecânico lhe proporcionou. Sendo o mesmo convicto inimigo da técnica que procurou na poesia [grifo meu] o alívio para as dores recebidas da máquina. Uma vez que a sua atitude como cineasta – negando enquanto pode o cinema de som, cor e telas gigantes – ou a sua atitude política, mostrando em Tempos Modernos a máquina destruindo o homem eram provas de sua fidelidade à imagem pura, [grifo meu] e a força expressional do cinema adulterada, como, também, enfatizava o seu horror a um capitalismo sem alma199.

Favorável a Chaplin, autor de uma arte engajada, Glauber, ao reafirmar a magia poética dos seus filmes, assinalou um ilusionismo residente na estrutura proposta e associou os seus filmes à arte mais pura, elaborada através de um processo simples. Glauber tratou o cinema de Chaplin, rejeitado pelo conservadorismo americano, como instrumento poético. Ao fixar uma definição poética aos filmes chaplinianos, Glauber se aproximou das ideias cinematográficas elaboradas por teóricos e cineastas dos anos 1920, ligados à primeira vanguarda, como Jean Epstein, que figura entre os mais conhecidos estetas cinematográficos do começo do século XX200.

De acordo com Glauber, a produtividade fílmica de Chaplin era um estilo que apontava a artística personalidade do autor, sua feição técnica que, mesmo a despeito da sua simplicidade, é reveladora de uma individualidade inconfundível, pois, desde seus primeiros filmes, Chaplin usava angulações e movimentos de câmera, alterando as imagens e dividindo em cenas diferentes, resultando, para o olhar do espectador, visões parciais que mostravam personagens à altura dos joelhos para reforçar suas expressões faciais; com isso, o artista pioneiro construía e contribuía para a formação da narrativa clássica do cinema.

Glauber dividiu o cinema feito por Charles Chaplin em duas fases. Na primeira, o personagem Carlitos interpretou “o imigrante, aventureiro, marginal e operário que usava

198 Glauber ROCHA. “O Carlito, meu e nosso amigo teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança”, Sete Dias, 1957.

199 Id. ibid.

200 Cf. Ismail XAVIER (Org.) A ampliação do olhar, investigações sonoras: poéticas. In: A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal/Embrafilme, 1983, p. 179.

máscaras populares reprimidas para desmarcarar o carnaval capitalista”. A segunda fase revelou um personagem “contando a dialética histórica de um proletário emigrante europeu que praticava, através do cinema, a revolução humanista do povo”201

.

Para o crítico Glauber, em ambas as fases o ponto de vista do cineasta se traduziu a favor “do personagem oprimido”, e essa posição favorável aos proletários foi uma atitude que vigorou até o seu penúltimo filme Um rei em Nova York (1957). No entanto, conforme Glauber, a visão social chapliniana desapareceu no seu último filme A Condessa de Hong-

Kong (1966), o único enquadrado do ponto de vista da classe dominante202.

Glauber fez uma comparação entre o cinema produzido por Charles Chaplin e aquele produzido por D. W. Griffith, verificando a existência de um antagonismo estético ideológico nesses trabalhos. Considerou que o cinema chapliniano era mais rico de expressividade do que as velhas artes e do que o tradicional cinema teatral/romanesco em voga naquela época; enquanto nos filmes de Griffith era perceptível a existência de um pensamento cinematográfico que havia incorporado a ideologia sulista da Guerra Civil americana.

Justificando tal afirmação, Glauber assegura que Nascimento de uma Nação é a visão de um sulista fracassado que faz a crítica idealista da brutalidade industrializante do Norte vencedor203. Por sua vez, o cinema de Chaplin tinha uma personalidade ímpar que se integrou à matéria do cinema, expressando-se através de uma imagem alegórica, projetando o gênero cinematográfico que antes não passava de um ilustrador de romances, de contos ou de peças de teatro.

Segundo Glauber, o cinema de Chaplin foi construído no sentido de definir uma arte própria e situá-la dentro das correntes de evolução cinematográfica. Em decorrência dessa construção endógena, Glauber apontou Chaplin como “a antítese revolucionária do pioneiro Griffith”.

Porém, o historiador John Howard Lawson afirma que existiu uma aproximação entre Chaplin e Griffith. De acordo com Lawson, o imigrante inglês Charles Chaplin chegou a Hollywood em 1913, no exato momento em que Griffith se preparava para filmar Nascimento

de uma nação. À época, as comédias da Keystone já refletiam a influência técnica de Griffith

201 Glauber ROCHA. “O Carlito, meu e nosso amigo teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança”. Op. Cit.

202 Ao refazer essa crítica, posteriormente, publicada em O Século do Cinema, Glauber acrescentou ao texto original essa frase, referindo-se à mudança política de Charles Chaplin, ocorrida depois da sua fase áurea em Hollywood.

203 Glauber ROCHA. Griffith. In: Século do cinema. Op. Cit., p.10. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 12/08/78. Utilizo aqi uma crítica fora do meu recorte de trabalho, no intuito de reforçar a análise crítica de Glauber Rocha referente à fase pioneira do cinema americano, especialmente a de Charles Chaplin.

e de outro pioneiro, Mack Sennett, em cujos filmes se empregavam ângulos de filmagens mais variados e, às vezes, um ou outro grande plano, além de cortes rápidos para provocar maior emoção no espectador – por isso, Mack Sennett foi considerado, também, um dos precursores da comédia americana204.

Segundo Lawson, Griffith e Chaplin reagiram ao clima social de seu tempo, porque a força criadora que os caracterizava havia sido estimulada pelo impacto da Primeira Guerra Mundial e assegurava que os dois se defrontaram com problemas técnicos idênticos; tanto que os métodos e temas, por eles utilizados, revelavam uma frutífera interação na linguagem, guardadas as visíveis divergências ideológicas – enquanto Griffith sonhava com uma arte popular em escala épica, Chaplin elaborava, com maravilhosa simplicidade, uma arte de massas205.

Glauber, quando se refere ao cinema produzido por Griffith, afirma que o cineasta é

produto típico do neocapitalismo norteamericano (o modo de produção neocapitalista norteamericano produz a superestruturaimperialista) é, neste novo espaço terrestre, revolucionário na medida em que diferenças climáticas (o sol americano contra a luz européia), religiosas (o protestantismo quer fundar a Terra Prometida) alteram as práticas da cultura européia confinada no idealismo católico reformado pelo materialismo pragmático da revolução industrial. A sociedade capitalista protestante se reconstrói segundo as novas leis da colonização democrátyka: o Estado Katólyco não impõe Deus ao homem, mas o deixa livre para encontrá-lo206.

Seguindo a concepção do teórico Ismail Xavier, Glauber se enquadraria entre aqueles críticos que teciam uma formulação simplificada do pioneiro americano:

muitos Griffiths andaram pela cabeça dos líderes políticos, críticos de cinema e cineastas, cada qual formulando a sua distorção a partir de uma amostra, em geral precária, de sua vastíssima obra, que só se encerra em 1931. Não é difícil achar o Griffith que desejamos tendo à disposição tal conjunto de filmes, diverso nos temas, desigual nas abordagens, trabalhando a experiência humana na escala reduzida do drama adolescente de ingênuos namorados e na dimensão do espetáculo que, em termos épicos, configura um destino nacional. Às vezes lírico e econômico na poesia, às vezes eloqüente e chato na pregação; generoso e acusatório, conservador, reformista moral. Acima de tudo, um americano, para lembrar Charles Foster Kane207.

204 “O nome Sennet está hoje, talvez, indissoluvelmente ligado ao pastelão e ao bolo de creme. Conquanto a conexão seja absolutamente inegável, as conotações não lhe fazem justiça. Em suas mãos, o pastelão tornou-se súbita e nativamente cinematográfico”. Cf. Arthur KNIGHT. Uma história panorâmica do cinema – a mais viva das artes. Rio de Janeiro: Editora Lidador, 1970, p.26-32.

205 Cf. John Howard LAWSON. O processo de criação no cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 56.

206

Glauber ROCHA. Griffith. In: Século do cinema. Op. Cit., p. 9.

207

Para um estudo mais fecundo a respeito do cineasta americano, ver Ismail XAVIER. D. W. Griffith – nascimento do cinema. São Paulo: Brasiliense, Coleção Encanto Radical, 1984, p. 16.

Sendo assim, Glauber definiu o Griffith que lhe interessava e concluiu a propósito de Chaplin dizendo:

Chaplin, o vagabundo Carlitos, ou o palhaço Calvero, ou o Reizinho que atualmente vai a Nova York pedir paz aos controladores do átomo para a guerra, permanece, como diz o nosso poeta maior Carlos Drummond de Andrade, ‘no coração de todos e principalmente nos que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo que entraram no cinema com aflição de ratos fugidos da vida... Te descobriram e salvaram-se’. Fusão208.

Para Glauber, o domínio da poética no cinema era um privilégio que poucos alcançavam e acontecia entre aqueles que tinham absoluta propriedade do assunto, quadro no qual incluía Charles Chaplin, por este entender que

a poesia no cinema transcende na sua maioria os elementos literários plástico e sonoros e raros são os filmes que obedecem a uma disciplina poemática na sua feitura, que trazem um conteúdo poético concentrado na imagem, imagem em seu conceito puro, imagem em si, independente do ator ou da paisagem209.