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CAPÍTULO 3 A UTOPIA VISUAL DO SANTO GUERREIRO

3.1 BOM-DIA, HOLLYWOOD

Bom Dia, Harry Stone344 é uma crítica carregada de ironias, simbolizando o discurso radical da construção de um modelo de cinema brasileiro, da sua necessidade de se afirmar a qualquer custo e da reação à supremacia da presença do filme americano no País. Emblema ameaçador criado do imaginário do articulista, Harry Stone tornou-se alvo da escrita glauberiana que externou, em boa medida, sua posição anticolonialista:

você chega com o seu habitual sorriso de colonizador: olhos vivos e português carregado de ‘charme’. Será recebido com honra & uísque que você bebe com engenho e arte, óleo com o qual você tem banhado os jornalistas que preferem a débil pérola da corte. Traz uma beleza de Hollywood a tiracolo: Tony Curtis e seu mito de ‘maquilagem’, um monstro sagrado e seu comportamento discreto da vedete que não deve e (não pode) falar em Cuba, megatons e outros bichos. Você vem com tudo, a terra é sua, o sol tropical ilumina sua pele dourada de americano, o vento recebe o sorriso do embaixador e centenas de figuras ‘high’ estarão dobradas a seus pés para ver, mesmo que no instante de segundo, o belo, o eterno, o imortal, o invencível – a mercadoria que você traz de Hollywood para mostrar os nativos que é MESMO de carne e osso. Um sucesso!345

Glauber se contrapõe à posição política cinematográfica americana e ao seu representante Harry Stone, dizendo que o homem do cinema americano se recusaria a falar dos cinemas que não aceitam os dogmas do capitalismo. Cita, por exemplo, a vanguarda americana, especialmente a realizada por John Cassavetes; o cinema da incomunicabilidade feito por Antonioni; dos franceses, Truffaut enfatizando a sua indisciplina e Godard, acentuando a sua subversão cinematográfica. Glauber reforça seu argumento, pronunciando

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Harry Stone era o dirigente da Motion Pictures para a América Latina, empresa que congregava as maiores produtoras de cinema americano e cuida do processo de distribuição e exibição de filmes. Publicada no semanário Jornal da Semana, Salvador, 2 a 9 de dez./1961.

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que a soma do cinema de vanguarda junto ao cinema político do Terceiro Mundo destruiria o império holywoodiano, apesar da supremacia da cadeia produtiva cinematográfica americana.

O discurso de Glauber foi o acontecimento do momento em que o pensamento da esquerda brasileira se sentia mais livre e tinha maior acesso à mídia. Em sua ótica, o cinema não se configurava como um meio apolítico como queriam fazer crer aqueles que detinham o monopólio ideológico formado pela academia americana. Entretanto, para Glauber e seus pares cinemanovistas, o cinema era essencialmente um processo político e social mais profundo e de transformação do mundo.

O conteúdo de Bom Dia, Harry Stone deixa transparecer a imaginação irrefreável contida nos escritos ou nas entrevistas concedidas por Glauber e marca o exacerbado posicionamento político do crítico. De acordo com Glauber, a classe cinematográfica brasileira era perseguida por Harry Stone, que tinha a incumbência de preservar os interesses comercias do cinema hollywoodiano no País e em toda a América Latina. O crítico afirmava que existia uma lista negra, no modelo macarthista, daqueles que se opunham às posições e posturas políticas do cinema americano, constituída dos nomes de Nelson Pereira dos Santos, Alex Vianny, Ruy Guerra, Roberto Faria, além do cineasta baiano Roberto Pires. Glauber reitera que seu próprio nome já devia fazer parte do mapa dessa mina há muito tempo e continua a reverberar, em sua crítica:

meu querido Harry: você dirá que eu sou comunista, que não gosto de você, que sou nervoso e por isto mesmo está disposto a me recuperar. [...] Além disto, simpático Stone, eu não posso também gostar do seu amor porque estamos em conflito: você é colonizador, eu sou colonizado. [...] Harry, você é um grande artista. Tony Curtis junto de você é uma sombra, o mestre de cerimônias é você. Gostaria de apertar a sua mão, beber do seu uísque, permutar ‘charme’ com você, comentar o azul do Atlântico. Mas é impossível: eu quero destruir você, embora saiba que um império só pode ser destruído quando algo de podre começa a nascer dentro dele mesmo ou quando o invasor avança sem piedade. Prefiro que a podridão de Hollywood depure o reinado. Há pouco passou um tufão346.

Apesar da diatribe, a formulação glauberiana induz que o centro da discussão para afirmação do cinema brasileiro estaria focalizado na questão cultural, considerando que o sistema produtivo de filmes americanos representava a lógica da cultura do capitalismo multinacional, marcada, naquele momento, pela apoteose e pela expansão global da cultura do cinema em forma de mercadoria. A crítica à cultura cinematográfica americana, especificamente no seu papel de monopolização do mercado, adquire um grande valor cognitivo e um potencial de transformação, considerando que as intricadas análises

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processadas por Glauber – mesmo levando em conta o seu aspecto totalitário –, tinha um direcionamento: a ruptura no processo de produção de filmes brasileiros em vigor naquela época.

A fabricação de filmes brasileiros, representada no modelo melodramático construído na Vera Cruz e nos musicais carnavalescos e nas paródias produzidas na Atlântida, reconhecidas como Chanchadas, concorria com o filme estrangeiro e por ele era em grande parte sufocada no seu próprio espaço. Isso acontecia por uma simples razão: o domínio da cadeia produtiva estava totalmente atrelado às empresas distribuidoras e exibidoras americanas; além disso, a imitação ficava aquém do original e, diante desse fato, o espectador sempre era favorável à originalidade, em detrimento do modelo copiado.

O projeto de oposição à maciça presença do filme estrangeiro imaginado por Glauber era o da protrusão, ou seja, do deslocamento do estado de inércia ao modelo cinemanovista, e esse caminho foi construído gradativamente, passo a passo. Seu início se deu a partir das esporádicas críticas feitas no ano de 1957 até a chegada ao ápice em 1963, período da transição de Glauber do status de crítico para o de cineasta e fase da realização das primeiras películas representativas do movimento e da afirmação do modelo fílmico do Cinema Novo.