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CAPÍTULO 2 – A CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA CAPOEIRA

2.2 As primeiras pernadas ou cabeçadas

Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a “capoeira”: dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas lançando-se um contra o outro mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo ensaguentando-a

(Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil)

O relato de Rugendas [s.d.], postulado em seu livro com primeira publicação de 1835, traz ricos relatos sobre a sociedade brasileira no período imperial, bem como as paisagens, por meio das descrições e, principalmente, por suas pinturas. Em um dos quadros publicados no seu trabalho, com o título Jogar capoeira, ou dança da guerra, podem-se inferir algumas ações que remetem à prática da capoeira, como um grupo de negros, com dois homens se movimentando, a presença de pessoas observando, um instrumento de percussão sendo tocado. No livro também há outra imagem São Salvador, que remete a uma situação em que um grupo de negros está reunido, sendo que alguns se movimentam (são quatro se movimentando, mas não é possível definir se há um jogo entre dois, três ou entre os quatro), e sem referências claras acerca de um jogo entre capoeiras.

Segundo o relato da epígrafe deste tópico, Rugendas, em seu livro, faz observações interessantes sobre a capoeira, apresentando desde então seu caráter multifacetado, já que seria um folguedo guerreiro “violento”, que tem seus golpes (cabeçadas) e esquivo (saltos de lado), mas também é lembrado como uma brincadeira, que se transforma em briga quando chocam “cabeça contra cabeça”, dando a possibilidade de utilizarem armas (facas), ensanguentando a luta. Essa descrição apresenta detalhes não percebidos ao analisar as figuras, o que pode levar a encará-las como momentos diferentes da capoeira. Em que pesem diversas conjecturas e as limitações para a análise da obra de arte, pondera-se que a exposição

de Rugendas, que vivera no Brasil de maneira itinerante ao longo da década de 1820, revela de maneira genérica a capoeira como um dos costumes dos negros no Brasil Imperial.

Pouco antes de Rugendas, outros pintores estrangeiros como August Earle e Debret retrataram situações (com homens negros) que sugerem uma prática corporal relacionada à capoeira (uso do berimbau, luta entre negros, negros em movimentos acrobáticos);33 embora também permeadas por conjecturas, vão conformando um ambiente que consolida, por meio da representação artística, a presença de uma cultura marcial, que vai sendo reconhecida por observadores da época.

Compreende-se que esse debate permeia os trabalhos de história quanto à problemática das fontes. É preciso observar com cautela as fontes primárias, buscando interpretar o que se queria retratar naquele momento, observar quem fala e de qual lugar (físico e social) se fala; quando possível, faz-se necessário cruzar informações, evitando projeções que “vejam demais”, além do que o contexto permite inferir. Buscando estar atento quanto a essas questões e, enquanto não aparecem novas fontes, observa-se “Jogar capoeira, ou dança da guerra” como uma das primeiras representações artísticas para a retratação da capoeira.

A fim de compreender melhor o processo do desenvolvimento da capoeira, volta-se para um pouco antes do começo do século XIX, em que se cogita pela primeira vez a utilização da palavra capoeira como uma luta. Tal proposição foi aventada por Nireu Cavalcanti, em uma publicação do Jornal do Brasil, em 1999 (ARAÚJO, 2008), quando em um julgamento o escravo Adão seria condenado por uma morte ocasionada por um grupo de capoeiras ao qual ele faria parte. Tal documento é relembrado 11 anos mais tarde pelo próprio Nireu Cavalcanti em um pequeno texto da revista Educação em Linha, da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro:

Em 25 de abril de 1789, mês da Quaresma, era sempre usado para os presos implorarem perdões ao rei e soltura da cadeia. Como fez Manoel Cardoso Fontes, senhor do escravo mulato Adão, que fora condenado a levar 500 chibatadas e ao trabalho forçado nas obras públicas pelo período de dois anos. Tudo isso porque estava num grupo de capoeiras em que fora morto um dos participantes. O seu senhor pediu à rainha D. Maria I, “em louvor da Sagrada Paixão”, perdão dos anos de galés e que Adão sofresse apenas a punição dos 500 açoites. Pedido concedido, para alegria de Manoel Cardoso Fontes (ANRJ – Relação do RJ: códice 24, livro 10).

33 Carlos Eugênio Líbano Soares faz ricas observações sobre as obras desses autores e outras, para identificar as

origens da capoeira; as análises podem ser vistas no sítio de vídeos “youtube”, disponíveis em: <http://www.youtube.com/playlist?list=PL9982A94648529F6E>.

O documento do capoeira Adão é a primeira referência que encontramos sobre essa atividade no Rio de Janeiro. Antecede às citações feitas pelos diversos trabalhos sobre capoeira, que datam o termo a partir da década de 1820 (CAVALCANTI, 2010, p. 57-58).

Embora tal afirmativa possa “encher os olhos” e, de fato, é relevante como descoberta relativamente recente, objetiva-se não disputar o primeiro documento que evidencia a prática da capoeira; interessa utilizá-lo para compreender melhor o ambiente que constrói o universo da capoeiragem, que é anterior ao período imperial. A obtenção dessa fonte permite avançar além dela, ou melhor, recuar um pouco antes dela. Se a capoeira foi objeto de um processo judicial, não é demais aventar que sua prática já faria parte do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, sendo, portanto, motivo de brigas, mortes e, possivelmente, brincadeiras. Conforme aponta Cavalcanti (2010): “Evidentemente que, se em um processo judicial do Tribunal da Relação aparece o termo capoeira, é porque ele já era de domínio público e representava a luta-dança praticada há mais tempo na cidade” (p. 58).

Com essa perspectiva, entende-se a relevância em buscar elementos para compreender as relações sociais nos anos 1700, observando, sobretudo, o modo de vida dos negros escravizados, que, nesse primeiro momento, são os sujeitos exclusivos da prática da capoeiragem.