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CAPÍTULO 2 – A CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA CAPOEIRA

2.4 Capoeira: sinônimo de subversão

Do final do século XVIII às primeiras décadas do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro, como uma das mais populosas na América, convivia com uma população negra que superava a população europeia e indígena. Os negros, em sua imensa maioria escravizados, tomavam os espaços urbanos da cidade de diversas maneiras, e não deixavam de exercer suas manifestações culturais publicamente.

É um momento em que a repressão para com esta população passa a ganhar grande proporção, dando a impressão, na lógica do poder oficial, de que era preciso conter a forma

como ocupavam a cidade. O haitianismo,39 em 1791, dava um sinal de que os oprimidos pela lógica colonial poderiam ser capazes de subverter a ordem e o sinal de alerta já seria acionado contra os negros.

O aumento da repressão teria ganhado maiores contornos a partir da vinda da família real para o Brasil. Com a guarda da família real, criada em 1809, seria mais presente a polícia nas ruas a fim de conter qualquer princípio de ultraje à ordem. E esta se voltaria contra o grande contingente populacional da cidade.

A capoeira seria um dos alvos da polícia. Conforme evidenciam os registros a partir do Códice 403 (SOARES, 2004), documento que contém o arquivo das prisões de 1810-1821, o relato de algumas prisões estava relacionado a jogar capoeira. Sugere que a prática realizada de maneira espontânea já seria motivo para a prisão dos capoeiras. Mas ainda haveria outros motivos, que seriam evidenciados entre brigas de rua, ações ligadas a furtos e resistência corporal com a força policial.

Os registros policiais seriam, ao longo da primeira metade dos anos 1900, a principal evidência da existência da luta. É interessante notar que a caracterização oficial da capoeira como crime viria cem anos depois do primeiro registro de uma prisão devida à capoeira. Antes disso, muitos teriam sido presos pelo uso da luta, e os castigos para os infratores estariam entre os mais cruéis (SOARES, 2004).

A perseguição não se restringia aos capoeiras, mas parece estar atrelada à contenção de todo tipo de aglomeração. Os relatos parecem evidenciar uma dinâmica que, fora da condição de trabalho, qualquer transeunte, sobretudo negro e com os pés descalços,40 seria suspeito. Essa organização penal recaiu sobre práticas como o batuque. Tais estratégias, nas quais imagina-se uma criminalização da população negra, revelam também os custos para a coroa portuguesa, bem como para o recém-fundado Estado brasileiro, da escravidão. Se o aumento constante da população escrava gerava maior lucro para a economia, também favorecia um ambiente em que a população negra se organizava com lógica própria, com seus códigos, suas redes de solidariedade e com desavenças, independentemente do poder oficial.

Essa certa independência, da qual se compartilhava no espaço urbano, gerava suas próprias referências, entre elas a tipificação do sujeitos que seriam lideranças. Conforme sugere Karasch (2000), os curandeiros seriam os negros com maior prestígio na cidade do Rio de Janeiro. Compreende-se que os capoeiras, pelo que representavam, seriam outro grupo de

39 Movimento insurrecional liderado pelos negros no Haiti, que acabou por proclamar a independência da então

colônia francesa.

sujeitos sociais com grande respaldo no universo negro, o que desfaz, inclusive, a visão de que a capoeira teve os primeiros sinais perto do fim da escravidão. Segundo Soares (2004), não existe nenhum relato no Códice 403 que relacione fuga com a capoeira. Permite-se a análise de que os capoeiras gozavam de um reconhecimento, bem como de um trânsito tal, que suas ações não encontravam grandes limites dentro da ordem escravista. Nos códigos dos negros, imagina-se que eles instituíssem formas de poder simbólico entre os dominados, que causariam na cidade maior prestígio.

Como sugere Soares (2004), as prisões feitas na segunda década do século XIX demonstram como a capoeira já era algo disseminado por toda a cidade do Rio de Janeiro, onde as autuações também se faziam em lugares arredados da cidade. A esse momento também, com a popularização do nome, sugeria-se que os praticantes poderiam ser presos sem saber que eram jogadores de capoeira, bem como manifestações genéricas de lutas/brigas na cidade acabaram se tornando capoeira. O mundo da capoeiragem, portanto, construía-se não só pelo protagonismo do negro, mas também pelo próprio aparelho legítimo da força.

A prática da capoeira deveria incomodar bastante a ordem. Pelos registros que constam no Códice 403, mais da metade das prisões envolviam penas máxima de trezentos açoites; “possivelmente o rigor executado com os capoeiras era bem mais severo do que com outras modalidades” (SOARES, 2004, p. 88). As penas também incluíam o trabalho forçado e a própria prisão. Um fato interessante é que as prisões, em sua maioria, eram feitas em pequenos grupos de duas ou mais pessoas, o que, segundo Soares (2004), revela uma estratégia escrava de se dividir para diminuir a possibilidade de captura pelos policiais.

Ao longo de todo o período imperial, a capoeira foi mudando de roupagem sua organização e disseminação, fazendo aumentar a repressão, sobretudo no período regencial, quando esse grupo de praticantes se alastrava nas ruas da cidade, transcendendo de vez a condição de cultura escrava e adentrando à cultura dos subalternos, na qual a população livre, forros, crioulos, boçais e imigrantes portugueses se jogariam à sorte, utilizando a capoeira como atividade lúdica, defesa pessoal, bem como ferramenta de trabalho e instrumento de manifestação política.