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CAPÍTULO 3. A acção coerciva e disciplinadora da Igreja: Visitas Pastorais e Inquisição

3.3. Os processos na Inquisição

3.3.1. As proposições heréticas e luteranas

O primeiro processo que foi levantado pela Inquisição a um habitante da Lourinhã aconteceu logo em 1538, passados dois anos do estabelecimento do Santo Ofício em Portugal. Álvaro do Rego, cavaleiro fidalgo da casa de El Rei, era natural da freguesia da Moita dos Ferreiros, termo da vila de Óbidos216 e residira numa quinta que tinha no concelho de Torres Vedras. Entretanto, mudou-se para a vila da Lourinhã e nela morava havia nove ou dez anos quando foi despoletado o processo que o conduziu à prisão. O promotor da justiça, Dr. Filipe Antunes apresenta os termos de acusação ao Dr. João de Melo,217 procurando provar que o réu, preso sob sua menagem, incorreu no crime de heresia e apostasia e que por herege e apóstata devia ser pronunciado e entregue à justiça secular.

Os acontecimentos que deram origem à acusação e que segundo o réu teve origem numa denúncia feita pelo vigário da Lourinhã, Afonso Álvares, foram descritos com algum pormenor. A primeira situação a ser apresentada foi a de que o réu, estando em casa de Francisco Pereira da Lourinhã, havia cerca de dois anos e perante muitas pessoas, ter dito que

“se Deus era Deus não era Homem e se era Homem não era Deus”, sustentando o argumento

com razões que para isso alegava e, apesar de ter sido repreendido por algumas pessoas para que tal não dissesse por ser conclusão herética, continuava a repetir a mesma conclusão. A segunda situação descrita foi a de que estando o réu a conversar na vila da Lourinhã, com algumas pessoas sobre uma Bula de Indulgências concedida à ermida de N. S.ª dos Anjos218, que dizia que as esmolas que por ela se dessem se despendessem na dita ermida, este teria dito

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Na capela-mor da igreja matriz da Moita dos Ferreiros, freguesia incorporada no concelho da Lourinhã em 1836, há uma lápide sepulcral de Simão do Rego e de sua mulher Maria Mendes e de seus herdeiros, dada pelo arcebispo de Lisboa e capelão-mor do rei e do seu conselho de Estado, no ano de 1689. Rui Cipriano diz que Simão do Rego descendia de famílias fidalgas da vila de Óbidos, que em finais do século XIV, exerciam importantes cargos naquela vila e eram grandes proprietários na região. (Cf. Rui Marques Cipriano, Vamos falar da Lourinhã, pp. 235-236). Também no livro de devassa de Óbidos de 1653 aparece a testemunhar, na freguesia de S. Lourenço dos Francos, contígua à freguesia da Moita, Manuel do Rego, homem nobre, de cerca de 60 anos. Parece-nos que ambos, pelo nome, estatuto social e residência, pertenciam a esta família e descenderiam de Álvaro do Rego. Este afirma no seu processo, que quando habitava no termo de Torres Vedras, ia à igreja de Nossa Senhora da Moita, sua freguesia, a qual distava da sua quinta uma meia légua.

217Segundo o auto de acusação o Dr. João de Melo pertencia ao Conselho da Inquisição, em substituição de D. Diogo da Silva, bispo de Ceuta e primaz de África, inquisidor-mor dos casos e crimes de heresia em Portugal por autoridade apostólica. IAN/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Álvaro do Rego, proc. n.º 4122, fl.3.

218A referência à ermida de Nossa Senhora dos Anjos, em 1538, é muito importante porque o documento mais antigo, até hoje conhecido, que a menciona data de 1 de Julho de 1598. Trata-se de uma das terras doadas ao Convento de Santo António da Lourinhã, em que uma das confrontações, a sul, dava com a estrada que ia para a referida ermida. (Cf. Rui Marques Cipriano, Vamos falar da Lourinhã, p. 180). É provável que a Bula de Indulgências concedida à capela de N. S.ª dos Anjos, referida no processo de Álvaro do Rego, tenha sido para ajudar a concluir as obras da sua edificação.

que nenhum papa tinha o poder de tirar as esmolas aos clérigos e transferi-las para as igrejas, desdenhando do poder do papa e dos cardeais. A terceira, ter-se-ia passado durante a missa na igreja da vila, após o sacerdote ter contado o Evangelho dos Talentos. O réu teria dito a algumas pessoas presentes, que maior obrigação tinha uma pessoa a quem “quitava” pouco do que aquela a quem “quitava” muito e algumas pessoas ter-lhe-iam respondido que devia ser ao contrário e o contrário dizia o Evangelho e este não estava errado, nem S. João podia errar. Ao que o réu teria respondido que o Evangelho estava errado e que S. João às vezes dormia. Além disso, teria afirmado não serem os cristãos obrigados a pagar o dízimo porque Deus não

mandava, nem na lei velha nem na nova, alegando em “suas práticas” com livros de Lutero e

confessando que tinha uma Bíblia e o Talmude e outros livros “em linguagem”. A quarta situação, passara-se havia cerca de dez meses à porta de S. Martinho da vila219, estando o réu com outras pessoas teria perguntado a uma delas se o verbo divino antes da encarnação era primeira pessoa da Trindade e este respondera-lhe que sim, alegando a autoridade do Evangelho de S. João. O acusado teria zombado de tal resposta, dizendo que fossem a casa dele, que lhes mostraria por um autor que depois do dia do Juízo não devia haver mais Trindade. A quinta, de que o acusado dissera, na praça da vila, que os curas não podiam compelir os fregueses a irem à igreja, salvo aqueles que por suas vontades lá quisessem ir. A sexta e última situação descrita, foi a de Álvaro do Rego, estando a conversar na vila da Lourinhã, com algumas pessoas sobre o sacramento da confissão e perguntando se o sacerdote podia absolver um penitente que confessava os seus pecados sem deles se arrepender, alguns responderam que não porque faltavam duas partes da confissão - contrição no coração e satisfação por obra -. Ao que ele teria respondido que antes o devia e podia absolver, porque a ele já lhe tinha acontecido na prática e propôs-lhes mostrar um texto.220

Para o acusador, todos estes factos, ditos em público e em privado, levaram o réu a ter fama de não católico e infiel cristão e justificava a sentença acima mencionada. Por sua vez, Álvaro do Rego, secundado pelo seu advogado, Dr. Simão Gonçalves, apresentou a sua defesa

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Algumas das testemunhas das devassas foram identificadas como morando na rua de S. Martinho, hoje desconhecida. A referência à porta de S. Martinho neste processo indicia que a vila da Lourinhã esteve no passado protegida por muralhas, de que não há actualmente nenhum vestígio. Esta possibilidade é confirmada pela leitura de outro processo, o do P.e de Simão Fernandes que decorreu entre 1639-1649. O réu relatou um

episódio (fl. 26) que se teria passado nas “ameias da praça”, numa clara referência às muralhas, que passariam

pela antiga praça da vila, actualmente Largo Marquês de Pombal e onde se localizava o antigo edifico dos Paços do Concelho. Este edifício tem traça pombalina, pelo que é possível que tenha existido um outro mais antigo e com outra localização, mas seria sempre fora das muralhas do desaparecido castelo, porque existia uma rua da Praça no século XVII, onde moravam outras testemunhas das devassas.

220 IAN/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa Álvaro do Rego, proc. n.º 4122, 23.02.1538- 06.10.1538, fls. 3-5.

procurando demonstrar a sua fidelidade à Igreja de Roma. A necessidade de provar que era um bom e verdadeiro cristão, é evidenciada pelos artigos que a seguir apresentamos.

Afirma-se cristão velho, assim como todos os seus antecessores e parentes e todos muito católicos, «sem haver entre eles christão nouo algum, nem mouro, nem judeu, nem casta alguma sospeita na fe catholica, antes todos muito deuotos e fies christãos sem erro nem opynião errada nem desviada de nossa santa fe».221Tendo à época 71 anos, sempre fora muito devoto, ouvia missa continuadamente, justificando até a mudança de residência da quinta que tinha no termo de Torres Vedras para a Lourinhã para melhor poder assistir aos ofícios divinos e todas as segundas feiras mandava dizer missa pelos fiéis de Deus. Tanto ele como toda a sua família, cerca de quinze a dezasseis pessoas, se confessavam todos os anos e comungavam. Ele próprio os doutrinava na vida dos santos e nos evangelhos. Não tinha nenhum livro de Lutero nem Talmude, nem outro qualquer reprovado. Tomava todas as cartas da cruzada e fora muitas vezes em romaria a S. Tiago, como muito fiel e religioso cristão. Pagou sempre os dízimos a Deus e os pagava das melhores novidades da terra e os dizimeiros saíam das suas eiras e propriedades muito “contentes e satisfeitos”, dizendo que não havia naquela terra quem melhor e mais liberalmente pagasse os dízimos à igreja. Por último apresenta o argumento de que ele sempre ordenara que na vila houvesse pregador e tratava de angariar esmolas para lhe pagar e que naquele ano, por estar fora devido ao processo, a terra ficou sem pregador.222 Numa outra fase do processo, defendeu-se da acusação de estar contra o pagamento dos dízimos e da obrigação das pessoas frequentarem a igreja, com o argumento de que, em ambas as situações, as pessoas o deviam fazer por sua vontade e que isso é que estava correcto. Aliás, era desse modo que procedia, tanto mais que o Evangelho dizia que

“primeiro foram chamados os convidados.”223

Para além de ter apresentados estes argumentos em sua defesa, procurou desacreditar as testemunhas que foram inquiridas, alegando inimizades antigas, das quais se destacam Diogo Baião, cavaleiro da Ordem de Avis, morador em Peniche e o fidalgo Rui Lourenço de Távora, que tinha casa na Lourinhã.

Os argumentos da defesa não foram suficientes para obter a absolvição e na conclusão do processo, o promotor da justiça fez uma súmula das provas apresentadas e afirmou que lhe parecia que se Lutero tivesse chegado à Lourinhã não teria tido dificuldade em converter o réu e o persuadir a considerar quaisquer conclusões heréticas por verdadeiras. E não somente o

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IAN/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa Álvaro do Rego, proc. n.º 4122, 23.02.1538- 06.10.1538, fl.6v.

222Ibidem, fls. 6v-7v. 223Ibidem, fl. 119v.

teria por discípulo, como também por «pubrico aJudador»224 dada a sua persistência em publicamente disputar e apreciar muitas conclusões heréticas e reprovadas.

O facto de ser “muito bom cavaleiro, fidalgo, de geração nobre,” poderá ter contribuído para ver a sua pena atenuada, contudo não o livrou de comparecer no auto-de-fé, que se realizou a 31 de Agosto de 1538.

Processo de Afonso Lopes

O processo de Afonso Lopes é dos finais do século XVI (1582-1584) e é muito interessante porque nos elucida sobre a estreita colaboração e a complementaridade existente entre a justiça episcopal e a inquisitorial.225 Na visitação realizada pelo Bispo de Targa à freguesia da Lourinhã, a 15 de Julho de 1577, Gaspar Fernandes, prior da igreja matriz e vigário da vara, denunciou Afonso Lopes. Segundo o seu testemunho, trasladado neste

processo, João d’Anhaia, mestre de latim na Lourinhã, fizera-lhe queixa de Afonso Lopes, o

qual ao ser repreendido por uma ofensa que fizera a Deus no “pecado da carne” e alertado para a existência do inferno, respondera, como que zombando dele, que bastava ser cristão e ter fé para se salvar. Recorrera a uma passagem do Evangelho que dizia «qui crediderit et baptizatus fuerit salvus erit», ao que ele lhe respondera com um dito de S. Paulo «fides sine operibus mortua est». Ao tomar conhecimento do caso, o vigário, logo no domingo seguinte durante a homilia, confrontou esta proposição com a doutrina da igreja romana. Apesar disso, Afonso Lopes voltou a repetir a mesma expressão herética, quando este o persuadia a que se emendasse do seu mau viver, o que aconteceu na presença do secretário da visitação, o Pe. António da Costa.226 Este ter-lhe-ia respondido “que olhase o que dezia e que não se entremetese a querer tratar do euangelho”.227

Na altura, Afonso Lopes foi admoestado pelo Bispo de Targa e o itinerário da visitação prosseguiu, não sem antes o bispo ter pedido ao vigário da Lourinhã que fosse ter com ele a Torres Vedras e levasse testemunhas que pudessem testemunhar sobre este caso. Foi o que aconteceu, tendo o prior levado o mestre de latim para testemunhar com ele.

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Ibidem, fl. 115. 225

O arcebispo de Lisboa D. Jorge de Almeida (1570-1585) era, à época, simultaneamente inquisidor-mor. 226O P.eAntónio Costa era vigário da igreja da Enxara do Bispo, termo de Torres Vedras. Nessa visita, o vigário da Lourinhã acrescentou outros factos nada abonatórios para o acusado. Tendo apresentado a Afonso Lopes, uma carta de excomunhão do Dr. João Teixeira, juiz apostólico, a exigir que este, na qualidade de prioste, entregasse os frutos de um benefício que vagara por morte de António Nunes, ele terá respondido em alta voz

que não tinha “dever com excomunhão” e de facto assim o mostrou ao não querer entregar os frutos até vir outra

carta. Apesar de excomungado, continua a testemunha, o acusado mostrou um grande desprezo ao ter entrado na capela-mor, durante a celebração da missa, sem mostrar a absolvição da excomunhão. Todos os factos constavam de autos que o vigário mandara fazer e estavam na posse do seu escrivão, Francisco Vaz.

227 IAN/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Afonso Lopes, proc. n.º 3990, 23.02.1582- 25.05.1584, fl. 6.

Entretanto, o processo não foi de imediato levado à mesa do Santo Ofício porque o Bispo de Targa teria sido mandado visitar o Arcediagado de Santarém e depois sucedeu a peste e a guerra,228 impedindo que as culpas do réu tivessem sido remetidas até àquele momento, 17 de Janeiro de 1582. De facto, tinham-se passado mais de quatro anos, quando o assunto voltou à luz do dia, ou porque o bispo ou a administração se deram conta que o processo não tinha sido encaminhado, ou porque o réu não deixou o seu caso cair no esquecimento. Com efeito, na visitação de 1581 foi de novo pronunciado pelo delito de mancebia, o que já acontecera na visita de 1577, pelo que o Bispo de Targa deixou em capítulo de visitação que, sob pena de excomunhão o pronunciado aparecesse perante ele. Afonso Lopes apresentou-se, mas só depois do prazo estipulado. Nessa ocasião, o bispo deu- lhe uma data limite - 17 de Dezembro de 1581 -, para apresentar as razões desse atraso de modo a não ser excomungado. Respondeu então ao prelado, de uma forma desrespeitosa, que passava a vida a ir ter ele e que não era seu criado. E não mais apareceu.

O processo de heresia foi reaberto, tendo os testemunhos da visita de 1577, incluindo o do seu escrivão, o P.eAntónio Costa, sido trasladados e remetidos à Inquisição a 18 de Janeiro de 1582. Face ao parecer do promotor da justiça, pouco mais de um mês depois, a 23 de Fevereiro, os inquisidores passaram uma carta para que Afonso Lopes comparecesse em Lisboa, na Casa do Despacho da Inquisição, no palácio dos Estaus. Essa notificação foi entregue ao reitor da igreja da Lourinhã, por António Pires, caminheiro do rei e foi este sacerdote que a entregou pessoalmente, a 28 de Abril. A partir do momento em que fosse notificado tinha apenas seis dias para se apresentar. Desta vez, António Lopes cumpriu o prazo estabelecido e a 4 de Maio 1582 já se encontrava a responder perante a mesa do Santo Ofício.

Primeiro começou por negar as culpas que lhe eram imputadas, depois admitiu ter dito a frase que esteve na origem do processo, mas que não se lembrava a quem tinha dito e em que circunstâncias, até que percebeu que era melhor confessar tudo. Ele próprio esclarece as razões que o levaram a mudar de atitude perante os inquisidores. Disse então que lhe parecia que encobrindo sua culpa nessa Santa Casa, se livraria da pena, mas vendo a demora que o seu despacho estava a ter, falara com uns religiosos letrados que lhe disseram «que vosas

228Em 1579 regressou ao país a “peste grande”, que foi particularmente mortífera em Lisboa. Esta epidemia, vinda de Veneza, já tinha dizimado 60.000 pessoas em 1569. Quanto à guerra está-se a referir, obviamente, aos acontecimentos que levaram à perda da independência de Portugal, período compreendido entre a morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir, em 1578 e do cardeal D. Henrique, em 1580, que originou a luta entre os partidários de D. António, prior do Crato e Filipe II, rei de Espanha, pela sucessão ao trono português.

merses não usavão de mizericordia senão com quem fallaua verdade».229 A dilação do processo estava naturalmente a causar-lhe muitos transtornos, porque embora não tivesse sido preso, não podia abandonar a cidade de Lisboa e voltar à Lourinhã, de modo a poder, em tempo útil, responder nas sessões para que era frequentemente convocado.

Vendo que era difícil escapar à confissão, o réu optou por uma estratégia de desresponsabilização de modo a minorar as consequências. De facto, agora estava lembrado de que um certo dia, estando determinado em ter ilícita “conversação” com uma mulher, algumas pessoas lhe disseram que havia inferno, ao que ele respondera que bastava uma pessoa ser baptizada e ter fé para ser salva. Mas que o afirmara sem perceber o que dizia por não ser letrado, nem entender latim mais do que ouvir algumas vezes o Evangelho dizer que aquele que crê e for baptizado será salvo. Não percebera que além disso eram necessárias obras e que sem elas não se podia salvar, pelo que pedia humildemente perdão desse erro e também misericórdia.

A expectativa do réu de o caso ter ficado resolvido com a sua confissão saiu frustrada. De facto, o processo ainda estava no início, porque agora os inquisidores queriam determinar em que medida o réu tinha feito aquela afirmação herética com consciência do verdadeiro alcance de suas palavras. A 20 de Junho de 1582, após quase dois meses de interrogatórios, Afonso Lopes pediu ao Inquisidor Diogo de Sousa licença para regressar a sua casa porque tinha a lavoura feita e «era tempo de recolher a nouidade».230O magistrado concedeu-lhe dois meses, findos os quais tinha que se apresentar. Como era seu hábito, regressou com dois meses de atraso, a 23 de Outubro e questionado sobre este incidente alegou ter estado «mal desposto e ferido».231 Foi então autorizado a regressar à Lourinhã, jurando não sair do reino sem licença do Santo Ofício. A dispensa de novos interrogatórios advém, em nossa opinião, do facto da Inquisição já dispor dos elementos necessários para julgar o caso. Com efeito, durante o mês de Agosto tinham sido inquiridas no Palácio dos Estaus as três testemunhas chave do processo: o P.eAntónio da Costa, escrivão da visitação de 1577, João d’ Anhaia232, mestre de latim e o P.eGaspar Fernandes, vigário da Lourinhã. Para além da confirmação das circunstâncias em que foram proferidas as proposições heréticas, a preocupação principal dos inquisidores era perceber se o réu as tinha dito apenas para se desculpar do delito de

229 IAN/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Afonso Lopes, proc. n.º 3990, 23.02.1582- 25.05.1584, fl. 3.

230 IAN/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Afonso Lopes, proc. n.º 3990, 23.02.1582- 25.05.1584, fl. 25.

231Ibidem, fl. 25v.

232Esta testemunha disse que Afonso Lopes era cristão velho por inteiro e pertencia ao grupo dos afazendados e ricos da Lourinhã e era escrivão das sizas.

mancebia, ou se era suficientemente erudito para as entender e eventualmente as poder defender. Nesse sentido, as perguntas foram direccionadas para se o arguido era uma pessoa de bom entendimento, se sabia latim, se tinha em casa livros em latim ou em “Romance” de modo a poder “colegir algum erro” e se alguma vez tinha saído do país. Quanto à primeira questão, todos foram unânimes em considerá-lo um homem de “grosseiro de entendimento”.233 Perguntado se o réu sabia latim, João d’ Anhaia, que o ensinara a um seu filho234, disse que não e que a expressão que ele proferira poderia ser de a ouvir na igreja. O vigário respondeu que o réu afirmava que quando era moço tinha andado no colégio de Santo Antão da cidade de Lisboa, mas lhe parecia que sabia pouco. Quanto a ter livros e ter saído alguma vez do país a resposta do vigário foi negativa.

Os testemunhos foram portanto no sentido de o réu ter feito aquelas afirmações para se

desculpar do “pecado da sensualidade” e não por se ter desviado dos ensinamentos da Igreja