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CAPÍTULO 2. A reforma tridentina: lei, diocese e práticas religiosas

2.1. Os decretos de Trento como Lei do Reino

O Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563, constituiu um marco importante na vida da Igreja e das sociedades, cujos efeitos perduraram até ao Concílio Vaticano II (1962- 1965). Ao ter reafirmado e clarificado os princípios dogmáticos do catolicismo, pretendeu pôr fim a um período de dúvidas e incertezas, decorrentes da divisão da cristandade entre católicos e protestantes. Ao ter reforçado as vertentes disciplinar e moral do clero e dos fiéis, iniciou um processo de controlo e condicionamento social que moldou a vida dos indivíduos e das comunidades durante os séculos seguintes.

A necessidade de uma profunda reforma na Igreja era há muito reclamada nos meios mais esclarecidos. Com efeito, vários elementos do alto clero, que seguiam a vida religiosa apenas para desfrutar dos rendimentos da igreja e dos privilégios do estado clerical, não revelavam quaisquer preocupações pastorais e levavam uma vida mundana, concorrendo com os grandes senhores no luxo e ostentação. A vida desregrada de muitos clérigos, a acumulação de benefícios, a simonia, a ignorância de muitos párocos sobre as bases doutrinais, a não residência de bispos nas suas dioceses e de párocos nas paróquias, são exemplos de, em muitos casos, do mau desempenho das funções eclesiásticas, não respondendo, portanto, às ansiedades da população. Relativamente a esta, o mito de uma Idade Média cristã está definitivamente afastado. A ignorância da maioria da população europeia, principalmente nos meios rurais, sobre os mais elementares fundamentos da fé, é evidenciada pelo sincretismo religioso dominante. Também a rudeza e barbárie dos comportamentos, eram, para os padrões actuais, chocantes.

Deste modo o que se pretendia era uma verdadeira cristianização das comunidades, através de uma renovação da vida espiritual dos fiéis e das estruturas eclesiásticas. Herdeiro da Devotio Moderna128, o espírito reformista que antecedeu a assembleia tridentina teve uma expressão significativa nas ordens religiosas, seja através da reforma das já existentes: franciscanos, dominicanos, agostinhos; seja através da criação de novas ordens: jerónimos, lóios ou jesuítas. A realização de sínodos diocesanos ou provinciais são também exemplo das

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Corrente espiritual, surgida no início do século XIV nalguns meios flamengos, particularmente entre os cónegos regulares de Windesheim, pautada pela defesa de uma vida austera, pela interiorização da vivência cristã, pelo recurso à oração e à meditação e pela imitação da figura de Cristo, na humanidade sofredora da sua Paixão.

preocupações de alguns dignitários da igreja de empreenderem uma acção reformadora. É de salientar o sínodo realizado em Lisboa no ano de 1536, por iniciativa do cardeal-arcebispo D. Afonso, de que resultaram constituições impressas, em 1537, as quais vieram depois a ser ajustadas aos cânones de Trento. Estas constituições contemplam quase todos os aspectos da vida da Igreja: os sacramentos, incluindo pela primeira vez as condições de acesso ao sacramento da Ordem; seguem-se diversas matérias, como o comportamento dos clérigos, a obrigação de residência de priores e curas, os ensinamentos que o pároco deve dar aos fiéis, o respeito devido aos espaços sagrados, prevenções contra a prática de feitiçaria, visitações, etc.129

O zelo reformador de alguns cardeais e bispos não foi contudo suficiente para se iniciar um processo com vista a uma ampla renovação da Igreja. Para isso acontecer era preciso reformar as estruturas eclesiásticas, dotando-as de mecanismos eficazes de controlo na aplicação das medidas necessárias. O choque provocado pela secessão protestante, que se seguiu à excomunhão de Lutero em 1521, criou uma conjuntura favorável à realização de um concílio. Depois de muitas hesitações e adiamentos por parte do papado, que permitiram acentuar a divisão entre católicos e protestantes, Paulo III convoca o concílio para a cidade italiana de Trento.

Esta reunião magna decorreu, por circunstâncias diversas, em três etapas e abrangeu quatro pontificados. Na primeira, entre 1545 e 1548, celebraram-se dez sessões (I-X) e promulgaram-se, para além de vários decretos de reforma, os decretos sobre Sagrada Escritura e tradição, o pecado original, a justificação e os sacramentos em geral, resultantes de um aceso debate teológico que visava refutar a doutrina protestante. Na segunda etapa, entre 1551-1552, realizaram-se seis sessões (XI-XVI) continuando a promulgar-se decretos de reforma e de doutrina. Embora neste período tenham participado teólogos protestantes, não se conseguiu restabelecer a unidade da Igreja. A terceira etapa decorreu ente 1562-1563 e nela tiveram lugar nove sessões (XVII-XXV). Decretos importantes foram aprovados: sobre os sacramentos da eucarístia, ordem e matrimónio, o culto dos santos, as indulgências e o purgatório e, novamente, sobre a reforma da Igreja.130

A pronta confirmação dos decretos conciliares pelo papa Pio IV, a 26 de Janeiro de 1564, através da Bula Benedictus Deus, foi determinante para a projecção que este concílio,

129Cf. Isaías da Rosa Pereira, «Sínodos da Diocese de Lisboa - Notas Históricas», sep. da Revista Lumen, Maio 1961, pp. 1-16. Manuel Clemente, «Diocese e Patriarcado de Lisboa», Dicionário de História Religiosa de Portugal, dir. Carlos Moreira de Azevedo, vol. III, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica - Círculo dos Leitores, 2000, pp. 93-113.

130Cf. P.eRaul de Almeida Rolo, «Concílio de Trento», Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, vol. VI, Porto, Livraria Figueirinhas, pp. 207-209.

ao contrário de anteriores, veio a ter no mundo católico. Os decretos promulgados em Trento, assim como a bula de confirmação, foram enviados a todos os reis e príncipes cristãos da Europa, com o pedido de ajuda na sua execução. Em Portugal, as decisões conciliares foram recebidas com grande solenidade. A 7 de Setembro de 1564, o cardeal D. Henrique, regente do reino na menoridade de D. Sebastião, cargo que acumulava com os de Arcebispo de Lisboa e Legado Pontifício, dirigiu uma cerimónia na Sé de Lisboa, na qual foi lida e publicada a bula de confirmação, na presença do rei, da corte, do clero e de muito povo. Logo que recebera os textos em latim, o cardeal tinha-os mandado traduzir e publicar.131 A ordem de publicação e a cerimónia religiosa constituem os momentos fundamentais da recepção dos decretos tridentinos, que compreendiam matérias dogmáticas, litúrgicas e disciplinares. A 12 de Setembro desse mesmo ano é publicado um alvará dirigido aos oficiais da justiça do reino para apoiarem, quando solicitados, a sua execução.

Segundo Jean Delumeau132, os Estados Italianos, Portugal e a Polónia não levantaram nenhum obstáculo à aceitação oficial dos decretos do concílio. Enquanto a Espanha e a França teriam oposto algumas reservas, não tanto nos domínios do dogma e das exigências disciplinares e morais, mas sim nos decretos relativos à justiça eclesiástica e às ligações entre o episcopado e Roma, que punham em causa os direitos reais. Aliás, no caso francês, eles acabaram por não ser aceites como lei do reino. Para François Lebrun133, as guerras de religião entre católicos e protestantes, iniciadas em França quando o concílio tinha a sua última sessão, assim como a oposição dos meios galicanos, parlamentares parisienses e teólogos da Sorbonne, que temiam o reforço do poder papal em detrimento das igrejas nacionais, criaram uma conjuntura desfavorável a essa aceitação. Passaram a ser válidos apenas na sua vertente espiritual, quando em 1615, a Assembleia do Clero francês tomou sobre si a responsabilidade de receber os ditos decretos.

Em Portugal, a conjuntura política era favorável a uma pronta aceitação das decisões de Trento, porque, à época, os poderes espiritual e temporal estavam unidos na pessoa do cardeal D. Henrique. No entanto e como bem demonstrou Marcelo Caetano,134 se exceptuarmos a provisão de 19 de Março de 1569 de D. Sebastião que não foi confirmada por legislação posterior, os tribunais eclesiásticos apenas tinham autoridade exclusiva sobre os

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O privilégio de impressão foi dado a Francisco Correia, por dez anos, por alvará de 20 de Junho de 1564. 132Jean Delumeau – Monique Cottret, Le Catholicisme entre Luther et Voltaire, Nouvelle Clio, Paris, P.U.F., 6.ª ed.,1996, p. 93.

133François Lebrun, Être chrétien en France sous l’Ancien Regime – 1516-1719,Paris, Éditions du Seuil, 1996, pp. 41-42.

134 Marcelo Caetano, «Recepção e Execução dos Decretos do Concílio de Trento em Portugal», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 19, Lisboa, 1965, pp. 7-87.

clérigos. No que se refere aos leigos, tanto nas matérias regidas apenas pelo Direito Canónico, como nas de foro misto, que competiam aos tribunais da Igreja e aos do Estado, os primeiros só tinham poder de decidir e de executar sanções espirituais; para todas as sentenças que dissessem respeito à vida, à liberdade e ao património, era necessário requerer a ajuda do braço secular. Aliás, estas garantias respeitavam a tradição do reino e estavam já consignadas nas Ordenações Manuelinas. Voltaremos a este assunto mais adiante.

O passo seguinte à aceitação dos decretos conciliares foi adaptar as constituições sinodais às orientações tridentinas. Para além dos Concílios Provinciais, de Braga e Lisboa em 1566, e de Évora e Goa em 1567, foram convocados diversos sínodos diocesanos. O primeiro que se celebrou foi o de Braga, de 11 a 14 de Novembro de 1564, convocado pelo distinto arcebispo Frei Bartolomeu dos Mártires, um dos prelados portugueses presentes em Trento e que se distinguiu pelo seu saber e zelo reformador. O arcebispo de Évora, D. João de Melo, reuniu sínodo em 11 de Fevereiro de 1565, e o bispo de Coimbra, D. João Soares, a 18 de Novembro do mesmo ano. O Sínodo de Lisboa celebrou-se a 5 de Junho de 1565, presidido pelo cardeal D. Henrique e nesse mesmo ano foi publicado um suplemento às Constituições do Cardeal Infante D. Afonso, acima referidas, de modo a ajustá-las aos ditames de Trento. São as chamadas Constituições Extravagantes. O cardeal D. Henrique também convocou outro Sínodo em Lisboa, a 30 de Maio de 1568, para dar cumprimento às disposições do referido Concílio Provincial de 1567. Deste Sínodo resultaram as segundas Constituições Extravagantes, impressas em 1569, que adaptaram a disciplina eclesiástica aos cânones tridentinos. As Constituições Antigas, assim como as Extravagantes, primeiras e segundas, conheceram uma segunda edição em 1588, por mandado do arcebispo de Lisboa D. Miguel de Castro. Finalmente no último sínodo realizado em Lisboa, a 30 de Maio de 1640, presidido pelo arcebispo D. Rodrigo da Cunha, resultaram novas constituições, dos quais se fizeram três edições, em 1646, 1656 e 1737.