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As queixas de saúde e as estratégias de defesa e de enfrentamento

4.8 O Processo Saúde-Doença das Enfermeiras da ESF

4.8.1 As queixas de saúde e as estratégias de defesa e de enfrentamento

Apoiando-se na abordagem de teóricos como Dejours (1993), salientamos que as condições de trabalho têm por alvo privilegiado o corpo do trabalhador e a organização do trabalho tem como ponto de impacto o aparelho psíquico. Segundo Dejours e Abdoucheli (1994, p.125-126), entende-se por organização do trabalho, “por um lado, a divisão do trabalho: divisão de tarefas entre os operadores, repartição, cadência e, enfim, o modo operatório prescrito; e por outro lado a divisão de homens: repartição das responsabilidades, hierarquia, comando, controle etc.”. O modo operatório “incita o sentimento e o interesse do trabalho para o sujeito, enquanto a divisão de homens solicita sobretudo as relações entre as pessoas e mobiliza os investimentos afetivos, o amor e o ódio, a amizade, a solidariedade, a confiança etc.” (grifos do autor).

Indagada acerca dos malefícios físicos e psíquicos da atividade de trabalho, uma das profissionais de enfermagem da Estratégia em Saúde da Família - ESF sinaliza inicialmente para uma negação da possibilidade de tal relação:

“[...] Eu não vejo que traga nenhum malefício, agora acho assim que preciso de um tempo também pra resolver minhas questões pessoais, um turno, por exemplo, poderia ter disponibilizado pra resolver meus problemas pessoais”.

Dejours (1987, 1994), aponta a dificuldade dos trabalhadores de reconhecerem que o trabalho lhes adoece ou pode adoecer. Para suportar o sofrimento, o autor acredita que esses desenvolvem defesas individuais e/ou coletivas. O desenvolvimento (consciente ou inconsciente) dessas defesas possibilita o enfrentamento cotidiano de situações de trabalho nocivas a sua saúde.

Entretanto, na perspectiva de se protegerem, as enfermeiras da ESF agem defensivamente como forma de se prevenirem de doenças:

“[...] porque eu acho que sou vagarosa, só sei que termina passando, mas aí eu já entro [...]. Sabendo, já vou me preparando psicologicamente, que eu vou demorar [...] já [...] não assim [...] fica estressado, quando vai chegando a hora de ir embora a gente já fica com vontade de ir, aí eu tento diminuir os outros agendamentos [...].”

“[...] Devido justamente que eu vi que tava refletindo no meu físico e mental né, eu procurei fazer atividade física, então quando eu saio daqui de tardezinha e vou pra [...] aula de dança [...]. Então eu descarrego tudo nessa aula e isso melhorou muito, inclusive tá melhorando determinadas atitudes que eu tinha, que eu não tenho mais, tá deixando [...] tanto deixa a mente mais aberta e o corpo mais leve. Isso foi uma, uma das manobras né, que eu achei de pelo menos não, ah o serviço não interferir tanto na minha saúde né?[...].”

A sobrecarga da longa e intensiva jornada de 40 horas de trabalho, tão comentada em suas falas, parece comprometer a saúde das enfermeiras:

“[...] de malefícios eu acredito que a sobrecarga das 40 horas, da pausa ser [...] pouco, né, das férias ser pouca também, de não ter uma folga, do salário também [...].”

Para a Ergonomia da Atividade (Wisner, 1994), a carga de trabalho é entendida a partir de dois aspectos: o componente físico (barulho, iluminação, calor, desgaste energético, etc.) e o componente mental (percepção e o tratamento da informação necessária à execução do trabalho em si). Para Guelaud; Beauchesne; Gautrat et al. (1975 citado por Dejours 2007), por trás da carga mental há uma mistura de fenômenos de ordem neurofisiológica e psicofisiológicas: variáveis psicossensoriais, sensoriomotoras, perceptivas, cognitivas, etc e fenômenos de ordem psicológica, psicossociológica, ou mesmo sociológica, tais como variáveis de comportamento, de caráter, psicopatológicas, motivacionais, etc. Dejours (2007) propõe para a carga

mental uma separação entre essas duas ordens de fenômenos e reserva aos elementos afetivos e relacionais um referencial específico: o da carga psíquica de trabalho.

Segundo Laurell (1982), a interação dinâmica das cargas de trabalho produz desgaste, que podem ou não se expressar em patologias. Nos relatos visualizamos :

“Como tem uma sobrecarga de trabalho grande [com ênfase], né, muitas vezes bate o cansaço não só físico como mental [...] mas, já tá refletindo na parte física [...]”.

“[...] dependendo do que se vai atender, que aí está mais flexível, você tem condição de levantar um pouco, de respirar, de tomar uma água, um café, mas isso não é uma rotina, normalmente o enfermeiro por conta desse acúmulo de atribuições, a gente é sobrecarregado.”

“[...] tem dia que a gente pára assim não sabe, no final do expediente, respira [tom enfático], uma olha pra outra. Teve um dia que a médica olhou pra mim aí disse “fulaninha”, aí botou pra chorar, eu disse: “ei, pêra aí [...] o que é isso?”. É porque assim, fica sobrecarregada mesmo [...]”.

Abaixo, a analogia que elas fazem para ilustrar as condições e os limites da sua jornada, demonstra a dificuldade na realização do seu trabalho, nesse momento, repercutindo negativamente na resolução de seus afazeres pessoais.

“[...] você tem a carga horária pra fazer aquele pacote, então está aqui a trouxa de roupa pra você lavar, você tem 40 horas pra você lavar. Aí você está às vezes sem o sabão em pó e sem a água sanitária, só com o sabão em pedra, está entendendo? Aí você fica estressada, cansada, porque o tempo vai ser curto pra quantidade de trabalho, o tempo é comprido demais pra você também dar um tempo pra sua vida [...]”.

“[...] porque é muito corrido, você fica sem a sua vida pessoal pra resolver [...] não dá [...] não dá.”

“Gosto, gosto da saúde pública, gosto bastante [...]. Não tenho [...] a outra experiência que eu tenho é sala de aula. [...]. Às vezes eu penso em deixar e voltar pra sala de aula, deixar o

PSF pra ver se eu consigo administrar um tempo pra mim. Eu sinto necessidade de mim, de sair, fazer uma unha, fazer um cabelo, sem fazer pensando: “ah, tô apressada tenho que voltar, tenho que almoçar, tenho que ir em casa”. Queria ter um tempo meu: “hoje eu estou livre, vou cuidar de mim”. Eu sinto essa necessidade”.

Como forma de saída para preservação da sua saúde, as enfermeiras chegam a sugerir uma divisão das tarefas, que possibilitaria a liberação de um período durante a semana para descanso e a realização de alguns afazeres pessoais:

“Eu acho assim que a gente com essa, com essa divisão de atividades a gente poderia se aliviar um pouco mais, eu acho que a gente poderia respirar um pouco mais.”

Do ponto de vista da clínica médica, vimos em Bourguignon (1971 como citado em Dejours 2007) que, submetido às excitações provenientes do exterior (de origem psicossensorial) ou do interior (excitações instintivas ou pulsionais), o indivíduo dispõe de vias de descarga de sua energia, tais como: a via psíquica, a via motora e a via visceral. Quando a excitação se acumula, ocorre a tensão psíquica, ou tensão “nervosa”. Por intermédio da produção de representações mentais, o sujeito pode descarregar sua tensão interior. Mas, se outro sujeito não conseguir relaxar por esse meio, poderá recorrer a uma gama de “descargas psicomotoras” ou comportamentais (Freud, 1968 como citado em Dejours 2007). Quando essas vias não são possíveis, a energia pulsional pode ser descarregada pela via do sistema nervoso autônomo e pelo desordenamento das funções somáticas (via visceral) 11.

A sobrecarga de trabalho, com a execução de inúmeras atribuições pelas enfermeiras, pode acarretar, ao longo dos anos, sérios danos fisiológicos como comprometimento renal, devido a não ingestão suficiente de água. As doenças e sintomas mais ressaltados pela maioria foram: infecções, hipertensão, problemas renais, obesidade, problemas cardíacos, nódulos mamários, problemas de articulações, de tireóide, de coluna, sinusite; assim como irritabilidade, insônia, tensão muscular e

11 A somatização é o processo no qual um conflito, que não consegue encontrar uma resolução mental,

depressão. Além desses tipos de comprometimento, as profissionais fizeram também menção ao cansaço, à fadiga e ao estresse.

“[...] Já tive depressão, já tive dois problemas seriíssimos de articulação e não tive tempo de ir ao médico, e o tempo, quando eu tive, já foi tarde demais. Hoje eu tenho um problema seriíssimo no meu joelho, perdi um joelho esquerdo, nada funciona. Tá certo, eu já perdi massa muscular, perdi cartilagem, perdi pele, enfim, eu tenho um problema seriíssimo no meu joelho [...]”.

“[...] todo mundo aqui sabe, nódulo na mama, e aí: “ah, mas é da idade”. Eu não sei, mas seis nódulos aparece na sua mama assim de repente dentro de dois anos, entendeu? Bócio, colóide, problema na tireóide, vários problemas que eu não tinha, [...]. Durante esses anos que eu estou no PSF vem aparecendo assim com muito mais rapidez, e a gente tem muita sinusite aqui [...]”.

“[...] a gente tem pressão alta, pico hipertensivo, aqui tem N., Dra S., as três do PSF aqui, J. outro dia saiu daqui morrendo, morrendo mesmo com a pressão lá em cima, subiu mesmo, subiu demais. F também com taquicardia, a menina, a outra L., enfim todas nós estamos doentes [...]”.

O desgaste constatado, além da extensa jornada de trabalho e da multiplicidade de tarefas simultâneas a serem cumpridas, conforme assinalamos anteriormente, decorre também da tentativa de resolução de problemas fora do alcance de serem resolvidos pela enfermagem, do número excessivo de funções burocráticas e da pressão pelo preenchimento de formulários e consolidação de dados para o SIAB (Sistema de Informações da Assistência Básica).

As informações colhidas durante cada mês, provenientes de todos os profissionais da equipe multiprofissional da ESF, como exemplo, as estatísticas de doenças detectadas, o número de crianças e de idosos atendidos, entre outros, são levados à enfermeira, que reúne esses dados para enviá-los ao SIAB (anexo). Elas chegam, inclusive, como vimos anteriormente, a trabalhar nas férias para assegurar a consolidação e envio desses dados:

“[...] É o seguinte, eu tiro 30 dias, um mês, mas nesse mês eu tenho que vir aqui 2 ou 3 vezes , ver as coisas, por exemplo pegar os mapas pra fazer. Eu num fico assim despreocupada, vou tirar meus 30 dias e não voltar não, eu venho aqui fazer o BPA [...]. Olha [...] tem o pedido hospitalar, que justamente é a parte de curativo essas coisas né [...] aí meta hospitalar [...] aí eu faço o de medicamento, faço o de limpeza, faço o de impresso, faço o de [...] expediente né [...] tudo isso.”

“Aceito a responsabilidade, porque a maioria das enfermeiras fazem, aí eu num posso dizer que não, não é isso? Todo mundo, eles fazem, por exemplo, o agente de saúde entregar o SSA12 2, aí a médica também entrega, entrega também a ficha D e o mapa dela, aí eu vou consolidar na minha ficha D, que se chama consolidar a enfermeira com a médica nos atendimentos todinhos pra fazer o PMA13 2 [...]. E aqui está incluído todos [...] sabe [...] da equipe, médico, enfermeira, dentista, agora também tem que incluir os profissionais de nível médio, [...]”.

Observamos na dinâmica de trabalho de uma enfermeira que, ao mesmo tempo em que atende duas usuárias em sua sala, anota os dados no livro de registro, responde a pergunta de outra usuária, que se encontra na porta da sala. Neste ínterim, a recepcionista entra, entrega um prontuário e a informa que um usuário chegará atrasado. Pouco minutos depois, a profissional comenta com a pesquisadora que está

necessitando de férias. No corredor, ela é abordada por três usuários, passando a

atendê-los. Na volta à sala, os usuários que a aguardavam na porta, já se encontram sentados em frente à mesa, e os que aguardavam no corredor para ser atendidos, se dirigem à porta. Além disso, a recepcionista ainda informa que há duas pessoas aguardando-a para receberem vacina.

Dessa forma, a atividade dessas profissionais é caracterizada permanentemente por pressão da parte dos usuários e da equipe “gestora” 14, que demandam resultados e respostas imediatas.

“[...] Mas trabalhar sob pressão às vezes é complicado [...]. O que adoece a gente às vezes é esse excesso de atividade, é esse excesso de tarefa. Mal você termina uma coisa, é você responder uma coisa a uma pessoa, escrevendo outra e dando

12 Situação de Saúde e Acompanhamento. 13 Programa de Mapeamento dos Atendidos. 14 Refere-se à Secretaria de Saúde e ao Distrito.

sinal pra outra e que espere um pouquinho. Às vezes você está fazendo duas, três coisas ao mesmo tempo, e assim há um esgotamento físico e há um esgotamento psíquico também, entende?”.

“[...] Eu gosto de tudo o que eu faço só não gosto da pressa, não gosto da [...] da [...] como é que se diz, como é que eu falo assim, essa coisa, não gosto de ser pressionada, não é, essa pressão, a gente é muito pressionada a fazer as coisas a tempo e à horas. Às vezes, eles querem uma coisa que eles nem entendem o que estão pedindo e a gente tem que estar decifrando, esse tipo de coisa eu não gosto [...]”.

Assim, o sofrimento e o desgaste psíquicos são resultantes de uma combinação de fatores, tais como a frustração pela não resolução de problemas, a falta de autonomia, as pressões por parte dos usuários e “gestores” e o salário diferenciado de outros profissionais, como o médico, por exemplo.

“O desgaste mental da gente tentar resolver, tem problemas que não é [...], não tá ao alcance da gente resolver, e a gente tenta resolver buscando ajuda e não consegue. Isso aí é horrível pra gente né [...] a gente se sente frustrada né [...]”.

“Você chega e tá aí um usuário reclamando porque alguém deixou de vir, de trabalhar, ou de realizar alguma função, alguma tarefa né, e que você vai ter que interferir e fazer né, e tentar contornar, e isso me deixa estressada.”

“[...] Então o que é que adoece é essa coisa de você está solicitando, você está pedindo as coisas e não sai do canto [...]”.

“[...] Era pra ser mais uma coisinha, porque da hora que tem o profissional de nível superior igual a você que ganha mais do que você [...]. O médico ganha mais do que o enfermeiro, do que o dentista, do que todos os profissionais de nível superior [...]”.

A enfermeira e técnica de enfermagem em diálogo com a diretora de escola municipal expressam indignação na forma como as campanhas são organizadas. Como

elas próprias assinalam: “são jogadas” para serem cumpridas rapidamente, sem os esclarecimentos necessários tanto para as escolas submetidas, como para os profissionais envolvidos. Travaram ainda diálogos críticos em relação ao sistema de educação e saúde, como também dividiram seus sentimentos de angústia e impotência diante de tal quadro:

“Onde é que a gente vai ser ouvida? Onde é que a gente poderia estar articulando essa educação com a saúde? A gente já pega o problema caminhando, né?”

Paradoxalmente, ao lado das expressões de sentimentos de desamparo, angústia, desorientação e impotência, aparece, simultaneamente, uma inquietação que parece apontar para um movimento de busca ou de esperança por mudanças, que de fato promovam a saúde (Canguilhem, 2006) em: O que é que a gente poderia fazer? Se

reunir, fazer projetos, ir às ruas?

É importante salientar que a violência que adentra os muros das Unidades de Saúde, constitui também outro fator preocupante. As enfermeiras apontam para uma insegurança, decorrente da violência produzida na/pela sociedade, que contamina a relação estabelecida com alguns usuários:

“[...] Em algumas situações, nós somos desrespeitadas, entende, isso entristece a gente, porque a gente faz, faz, e por algum motivo, aí vem àquela pessoa [usuário] e descarrega em cima da gente. E xinga, solta palavrão ou a gente escuta comentário desagradável do outro lado da porta [...]”.

“[...] Mas a gente vê a insegurança com outros colegas de trabalho [...]. Na semana passada teve assim uma usuária que tentou agredir fisicamente a colega, a outra enfermeira, entendeu [...] lá da outra equipe. Aí eu fui defender e tentar ajudar [...] isso é uma coisa um pouco desagradável [...] acho que a insegurança é uma coisa que eu não gosto [...].”

“[...] Já sofri duas agressões, uma agressão tem quinze dias, fui pra delegacia [...] super constrangedor [...] de uma usuária que a gente tentou resolver o problema dela, mas ela [...] se auto definiu como louca, tentou me agredir, quebrou as coisas aqui dentro e o vigilante não fez nada. Uma outra, uma vez o

ano passado, disse que ia quebrar o meu carro porque eu pedi pra ela esperar”.

A agressividade de usuários foi evidenciada por vários profissionais, tornando-a um fator de risco à saúde das mesmas, e fator de maior preocupação e atenção nas Unidades de Saúde, levando as profissionais a se defenderem de várias formas:

“Existe. Existe aqui, eu já fui agredida, não só verbalmente mas também fisicamente por uma usuária aqui no consultório [...]. Ela surtou, pediu uma explicação, eu fui explicar, uma pessoa que [...] já me conhecia há 3 anos, reconhecia meu trabalho [...]. No entanto, ela ficou exaltada, gritando. Depois mesmo de ter me pedido desculpas a mim, eu fiz um acolhimento. Ela chegou à procura de consulta, trouxe até a sala, conversei com ela. Ela me fez uma pergunta e não gostou da resposta que eu dei, que é nossa forma de trabalhar aqui, que é através do acolhimento, e ela não gostou”.

A profissional expressou como foi sua reação: Bem [...] na hora eu [...] fui

chorar né [...] eu chorei muito, fiquei triste né, porque aqui eu dou [...]. Interrogada

sobre a reação apresentada pela equipe, falou: Ajudou. A equipe veio junto e tudo, mas

eu mesma fechei a porta e tentei conversar com ela, perguntar o que é que ela estava passando, por que é que ela estava daquele jeito, me tratando daquela forma, que em nenhum momento eu tratei mal. Foi isso.

As unidades do Timbó I, II e Integrada São José, no período da tarde, tem horário de saída mais cedo, diferenciado das outras, justificado pelo nível de violência existente nos bairros. Como as profissionais ficam sujeitas a riscos como assaltos, combinam para saírem todas juntas, evitando assim surpresas de assaltos.

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