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As reformas das décadas de 1920 e 1930

II. A ESCOLA MILITAR DO REALENGO

2.2. A Escola Militar, em Realengo

2.2.3. As reformas das décadas de 1920 e 1930

Motta (1976) se refere com entusiasmo ao período vivido pelo Exército a partir do início da década de 1920, citando três pontos principais nessa fase de reorganização: a melhor estruturação das grandes unidades, o aumento das aquisições de armas automáticas e de artilharia, e o aparecimento das divisões de carros de combate e da aviação. O autor credita às habilidades políticas de Pandiá Calógeras, que como Ministro da Guerra deu continuidade às reformas iniciadas na administração anterior, a garantia da concessão de verbas junto ao Congresso Nacional, sustentando as reformas de modo duradouro. Também são oportunas as observações de Domingos Neto (2007), que interpreta a continuidade desses investimentos dentro de um quadro de interesses comerciais, políticos

183

Relatório do Ministro da Guerra João Pandiá Calógeras, 1921, p. 32.

184 Decreto 3.741, de 28 de maio de 1919. Autoriza o governo a contratar, na França, uma missão militar,

para fins de instrução no Exército.

185 Decreto nº 13.451, de 29 de janeiro de 1919. Estabelece bases para a reorganização do ensino militar e

e estratégicos, no qual o desenvolvimento do Exército Brasileiro foi encarado como a abertura de um novo mercado para artigos bélicos norte-americanos e europeus, e no qual a presença da missão militar francesa influenciou na aquisição de materiais produzidos naquele país.

A missão francesa atuou na Escola Militar do Realengo apenas a partir de 1924, com uma influência mais voltada para a organização e métodos de ensino do que a renovação dos seus aspectos materiais e áreas de instrução. Nesse período, os maiores investimentos a serem considerados em relação a essas áreas foram destinados à construção da Escola de Aviação Militar, estabelecida no Campo dos Afonsos186.

Figura 11 - Visita de Santos Dumont à Escola de Aviação Militar, 1928.

Oficiais da Missão Francesa acompanham Santos Dumont e o prefeito do Rio de Janeiro em visita à Escola de Aviação Militar, em 1928. Acervo do Museu Aeroespacial.

De um modo geral, durante a década de 1920 a Escola Militar foi menos caracterizada pelas mudanças em sua estrutura do que pela mobilização política dos oficiais de baixa patente, no movimento conhecido como tenentismo. Embora o movimento tenha se constituído de outros episódios, o envolvimento mais direto dos alunos da escola se deu nos fatos de 1922, quando participaram de uma rebelião contra o governo, simultaneamente com oficiais aquartelados no Forte de Copacabana, e em 1930, quando marcharam para o centro da cidade do Rio de Janeiro, juntando-se às tropas

186 A criação e os investimentos nas instalações da Escola de Aviação Militar estão detalhados no subtítulo

revolucionárias que destituíram Washington Luís e conduziram Getúlio Vargas à presidência.

O suporte dos militares ao golpe teve como contrapartida uma nova fase de investimentos do governo na estruturação das Forças Armadas, atendendo aos propósitos de fortalecimento do poder na esfera federal e da permanência de Vargas no governo. Para o ensino militar, os primeiros reflexos desses investimentos foram a contratação de duas missões militares, a primeira, composta de oficiais do exército dos Estados Unidos da América do Norte, que ficou encarregada da instrução relativa à defesa de costa, e uma segunda, com diversos especialistas estrangeiros, que tratou da formação de oficiais técnicos. A partir desses contratos, surgiu o Centro de Instrução de Artilharia de Costa, em 1934, e foram reformulados os cursos da Escola Técnica do Exército. Outros estabelecimentos de ensino militar também foram criados ou reaparelhados no período, recebendo recursos em materiais e novas instalações. Nesse conjunto de reformas, surgiu a proposta de transferência da escola militar para um local "mais conveniente"187.

O edifício em que está instalada a Escola Militar é de construção antiga, acrescido, por partes, de outras dependências exigidas pelo seu funcionamento. É bem de ver, porém, que o trabalho de adaptação, atendendo, até certo ponto, às necessidade pedagógicas, jamais poderá satisfazer plenamente a todos os aspectos do ensino militar188.

Essa última transferência da Escola Militar foi um evento considerável em sua história, por estar inserida não apenas dentro da série de reformas de regulamentos e mudanças de sede, mas também no processo de criação de elementos simbólicos associados à formação dos oficiais do Exército. O coronel José Pessoa de Cavalcanti Albuquerque, nomeado comandante da escola entre os anos de 1930 e 1934, é considerado o principal articulador dessa reforma, que, além de melhorias materiais, envolveu as práticas sociais e a formação moral do aluno, em uma manipulação de elementos reconhecida por Motta (1976) na criação de uma mística do oficialato, e por Castro (1994;

187 Relatório do Ministro da Guerra Pedro Aurélio de Góis Monteiro, 1934, p. 53. 188

2002) na invenção da Escola Militar como herdeira de uma tradição própria e com um papel na construção da nação brasileira.

Figura 12 - "Bonequinha de seda".

Cartaz de divulgação do filme "Bonequinha de seda", produção do cinema nacional que contou com a participação de um grupo de cadetes da Escola Militar do Realengo.

Nesse contexto, certas ações podem ser consideradas estratégias para conceder projeção e visibilidade social ao corpo de oficiais, como a participação de um grupo de cadetes em Bonequinha de seda, considerado um dos filmes mais importantes da década de 1930 e a primeira superprodução brasileira (Ferreira, 2006), estreada em 1936 no cinema Palácio, no Rio de Janeiro189; ou a participação de um coro de alunos e da banda da Escola Militar do Realengo na faixa Canto da pátria, de Oscar Gomes Cardim, gravada em 1944 em plena II Guerra Mundial. Encontrada no disco Brasil, canto de amor, ao lado de

189 Segundo a sinopse da ficha filmográfica: "trata-se da estréia da heroína na alta sociedade carioca. Gilda de

Abreu passa no filme por ser uma pequena francesa educada em Paris e chegada a pouco da Europa. E a estréia da jovem parisiense, bela e dona de ótima educação, reveste-se de estrondoso sucesso. Agita-se a elite, cortejam-na os homens, bajulam-na todos, e surgem os comentários: cada qual acha que tal distinção e educação, tais lindíssimos vestidos savoir-dire somente em Paris se poderiam adquirir que aqui terra de botocudos nada de bom se faz. E afinal a jovem era brasileira tinha se educado no Brasil e suas lindas vestimentas nunca tinham visto uma agulha parisiense".

canções como Avante camaradas (Antônio Manoel do Espírito Santo & Lira Tavares, 1942), Sabemos lutar (Frazão & Nássara, 1942), Pelo Brasil e pela vitória (Caio Lemos, 1942), Desperta Brasil (Grande Otelo, 1942) e O V da vitória (Lamartine Babo, 1942), a voz dos cadetes também alimentava o otimismo nacionalista incentivado pelo Estado Novo.

Nessa mesma linha, também se encontram referências aos cadetes e à Escola Militar no Cine Jornal Brasileiro, série de filmes de curta duração produzidos pelo Departamento de Imprensa e Propaganda190 nas décadas de 1930 e 1940, para exibição nas salas de cinema. Com apelo nacionalista e sob a bandeira da "integração nacional, da informação e educação do povo", os filmes ressaltavam "as qualidades do país, de seu povo e, principalmente, de seus governantes, misturando variedades, amenidades, curiosidades, esportes, catástrofes, alguma notícia do estrangeiro e, invariavelmente, boas notícias sobre o poder" (Luporini & Carrasco, 2007).

As referências à Escola Militar nos filmes do Cine Jornal abrangem o período de 1938 a 1944. Caracterizam-se pela propaganda de exaltação de eventos realizados na escola, geralmente contando com a presença de autoridades do governo. Os títulos são significativos: Na Escola Militar - DF: inicia-se com provas esportivas a Semana de

Confraternização das Classes Armadas191; Na Escola Militar - Realengo (D.F.): Os

cadetes argentinos despedem-se de seus colegas brasileiros192; O início das aulas na

Escola Militar, com a presença do Ministro da Guerra"193; Escola Militar - Rio: O Chefe

do Governo preside a solenidade de incorporação dos novos cadetes194; Rio: Novos

oficiais do Exército195; Na Escola Militar - Rio: a posse do novo comandante196; "Na

Escola Militar - Rio: A cerimônia da entrega de espadins aos novos cadetes"197; Escola

190

O Departamento de Imprensa e Propaganda possuía o objetivo de difundir a ideologia do Estado Novo junto às camadas populares. Sua origem remonta ao Departamento Oficial de Publicidade, criado em 1931 e transformado, sucessivamente no Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (1934), Departamento Nacional de Propaganda (1938) e, finalmente, no Departamento de Imprensa e Propaganda (1939). Conforme verbete Departamento de Imprensa e Propaganda, disponível em <http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/>. Acesso em 21 de julho de 2008.

191 Cine Jornal Brasileiro, v. 1, n. 010 (1938). 192 Cine Jornal Brasileiro, v.1, n. 058 (1939). 193

Cine Jornal Brasileiro, v.1, n. 098 (1940).

194 Cine Jornal Brasileiro, v. 1, n. 145 (1940). 195 Cine Jornal Brasileiro, v. 1, n. 181 (1940). 196 Cine Jornal Brasileiro, v. 1, n. 194 (1941). 197

Militar - Rio: Presidida pelo Chefe do Governo a solenidade da declaração de novos aspirantes198.

Em um dos filmes mais expressivos, a propaganda se dirige ao recrutamento de jovens. Com o título Escola Militar do Brasil, sua sinopse narra:

Da Academia Real Militar, fundada por D. João VI, em 23 de abril de 1811, à atual Escola Militar em Realengo, varias gerações têm sido forjadas para o engrandecimento do Brasil e para a defesa da pátria. O Departamento de Imprensa e Propaganda, em colaboração com a Escola Militar, mostra como são recrutados os futuros oficiais do nosso Exército

199

.

Nas imagens, aparece a fachada da Escola Militar. Pelo portão, entram jovens concorrentes a uma vaga. As câmeras percorrem os dormitórios. Surgem cenas de candidatos sendo submetidos a exames médicos e testes de educação física - saltos, corridas, provas de atletismo. Um oficial confere os resultados dos exames. Na estação ferroviária chegam estudantes e as turmas entram no edifício. Destacando a ordem e a organização, soam avisos radiofônicos e as imagens mostram uma sala de aula; ao final, surge a figura de um corneteiro e da bandeira nacional.

Esses exemplos se alinham com o conjunto de reformas da ordem social e cultural da Escola Militar. Quanto à questão da ordem física, ou seja, em relação as reais condições materiais de sua sede, é o caso de se reconhecer a inadequação das instalações do Realengo para o desenvolvimento do ensino, apesar das inúmeras reformas atravessadas, e a real necessidade de construção de um novo edifício. No antigo prédio, os serviços administrativos funcionavam no segundo pavimento, onde as condições de iluminação e arejamento eram consideradas, na melhor perspectiva, apenas "apropriadas", o que nem mesmo podia ser dito dos pavimentos térreos. As salas de aula funcionavam nas alas e na parte posterior do prédio, construídas em diferentes épocas, formando um conjunto anacrônico que dificultava uma distribuição racional das atividades.

198 Cine Jornal Brasileiro, v.3, n. 045 (1944). 199

Historiadores locais concordam com a ideia de que a presença da Escola Militar e da Fábrica de Cartuchos impulsionou o desenvolvimento de Realengo (Wenceslau, 2004; Froes, 2004), movimentando o comércio, o mercado imobiliário e a vida social da localidade. Segundo esses autores, entre as décadas de 1920 e 1930, os estabelecimentos comerciais instalados no centro do bairro - papelarias, confeitarias, padarias, mercearias, armazéns, sapatarias, restaurantes e farmácias - sustentavam-se, em grande medida, pela freguesia constituída por alunos e funcionários da Escola Militar.

Figura 13 - Cine-Teatro Realengo.

Cine-Teatro Realengo, localizado no centro do bairro, próximo à edifício da Escola Militar. À esquerda, fachada do cinema. Á direita, afrescos de autoria desconhecida, que decoram as paredes do saguão do antigo cinema, reproduzindo os quadros "O grito do Ipiranga", de Pedro Américo (acima), e "A primeira missa no Brasil", de Victor Meirelles (abaixo). Fotografias de Anderson Viana, ano 2010.

Em 1932 foi instalada pela Companhia Telefônica Brasileira a primeira rede telefônica do bairro, que servia a cerca de 60 assinantes200. No final da década de 1930 foi inaugurado o Cine-Teatro Realengo, em um prédio próximo à Escola Militar. Construído em estilo arquitetônico art-déco, as paredes de seu saguão principal exibiam dois afrescos reproduzindo os quadros A primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles, e O grito do

Ipiranga, de Pedro Américo, obras com forte apelo ao sentimento de nacionalidade. Nesse

contexto, pode-se pensar no controle desses espaços e em sua utilização no mecanismo de propaganda do Estado-Novo, dentro do seu projeto de construção de um sentimento de

200 As primeiras linhas telefônicas da cidade foram inauguradas em1881, conforme Barata, disponível em

nacionalidade brasileira através do "enaltecimento das belezas naturais, dos símbolos nacionais e do patriotismo" (Heber, 2006).

Wenceslau (2004) afirma que até 1932 havia na região apenas dois ou três médicos. Os primeiros serviços de saúde para o público só foram oferecidos na década de 1930, com o funcionamento da Associação Hospital de Caridade do Realengo, para prestação de serviços médicos, farmacêuticos e odontológicos. Situava-se na rua Oliveira Braga, em um terreno que fazia parte dos bens do general Nestor Sezefredo dos Passos201. Com o falecimento do militar, em 1941, a administração do hospital passou para a Prefeitura do Distrito Federal, que recebeu também o domínio útil do terreno, suas benfeitorias e instalações. A Prefeitura manteve os serviços que a associação prestava aos necessitados da localidade, conservando no hospital um médico, uma escriturária, duas enfermeiras e um prático de farmácia, que já exerciam essas funções202.

Figura 14 - IAPI de Realengo.

Vista da rua Marechal Abreu Lima e da fachada de um dos blocos de apartamentos do conjunto habitacional de Realengo. Fotografia de Anderson Viana, ano 2010.

No final da década de 1930 foram iniciadas no bairro as obras do Conjunto

Habitacional de Realengo, primeira intervenção no campo da habitação popular do

201 Nestor Sezefredo dos Passos (1872 - 1941). Foi Ministro da Guerra, nomeado por Washington Luís em

novembro de 1926.

202 Decreto-Lei nº 7.086, de 27 de novembro de 1944. Autoriza a Prefeitura do Distrito Federal a receber

Governo Vargas. O conjunto, considerado um campo de experiências nos sentidos técnico, arquitetônico, financeiro e social, foi o primeiro entre os 52 erguidos no país entre as décadas de 1940 e 1950 (Mangabeira, 1986).

Segundo Mangabeira (1986), a política habitacional de Vargas previa a implantação de obras públicas para urbanização das cidades, administradas pelos Institutos da Previdência. Por lei, esses institutos deveriam destinar parte dos seus recursos para áreas de interesse social, e com essa finalidade, em 1939, o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários adquiriu no Realengo uma grande área para construção de habitações operárias.

Figura 15 - Vista aérea de Realengo, 1940.

Vista aérea do bairro de Realengo, em 1940. No centro da foto, a área do Departamento de Equitação da Escola Militar e a linha férrea. Em primeiro plano, a abertura de ruas para construção das habitações operárias erguidas pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, atravessadas em diagonal pela estrada São Pedro de Alcantara. Ao fundo, a estrada de Santa Cruz. Acervo do Centro de Memória do Realengo.

O primeiro conjunto de moradias foi inaugurado em 1943, contando com um edifício de três pavimentos residenciais e um térreo para estabelecimentos comerciais, e com várias casas, totalizando cerca de 1.800 residências. A construção prosseguiu até 1950, expandindo-se até a estação vizinha de Guilherme da Silveira e atingindo a produção de 2.800 unidades, constituídas de blocos de apartamentos de quatro pavimentos. Os novos conjuntos residenciais eram separados da Escola Militar somente pela linha férrea, e sua construção limitaria consideravelmente a utilização de áreas para exercícios de tiro e instrução.