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O estágio e os dispositivos de formação

Capítulo 2 O trabalho de ensino

2.3 Elementos constitutivos do ensino como trabalho

2.3.1.2 As regras do ofício

No trabalho do professor, há um conjunto de regras sobre os modos de agir, ligando os vários profissionais e constituindo, assim, os gêneros profissionais (Clot, 1999). Conforme Amigues (2004), esse conjunto pode ser chamado de as

11 No Capítulo 3, nós retomaremos essa discussão sobre o ator e a aprofundaremos, ao discutir sobre o

“regras do ofício”. Elas se constroem no decorrer da História, fazendo parte de uma memória comum, e podem ser retomadas a qualquer momento como se fossem uma caixa de ferramentas.

Nessas regras encontraremos “gestos genéricos” relativos ao conjunto dos professores, mas também outros mais específicos relacionados à disciplina lecionada. Assim, podemos identificar características comuns no modo como um professor chega até o local e inicia a sua aula, mas poderemos observar pontos diferentes, quando se trata de uma aula de Português na sala comum e outra de Educação Física, na quadra da escola. Provavelmente, também o modo de se vestir desses professores será diferente.

Um exemplo dessas regras do ofício é o modo de organização de uma aula, cujas fases, independentemente de quem é o professor ou de qual é a escola, são as mesmas para muitos. Em Mazzillo (2006), por exemplo, encontramos a detecção das fases de uma aula de língua estrangeira representadas em textos de alunos: início da aula (correção do dever de casa, revisão de matéria, explicação de conteúdos comunicativos e gramática); introdução de matéria nova; atividades ou exercícios (leitura, ditado, produção oral, compreensão auditiva, gramática, vocabulário, redação, preparação para o teste); prescrição do dever de casa. Certamente, todos nós já nos deparamos com uma aula como a descrita acima, o que nos mostra que essas fases são o resultado de uma história e de uma memória coletiva, ou seja, são fases que foram aprovadas por um coletivo de trabalho.

2.3.2 Os coletivos

Ao tratar dos elementos anteriores, em vários momentos, trouxemos algum aspecto do coletivo de trabalho: é ele que pode auxiliar na transformação de um artefato em instrumento, que contribuirá para a revisão e reformulação das prescrições, que criará as regras do ofício, construindo, assim, os gêneros profissionais. Como podemos depreender, o coletivo de trabalho é tanto um grupo de pessoas como também uma memória coletiva que cada professor carrega em si, retomando-a a cada momento de seu trabalho para validar um artefato (“um bom livro de português tem de ter bastante interpretação de textos”), questionar uma regra (“por que a escola quer dar só 20 dias de recesso, se sempre os professores tiveram 30 dias em janeiro?”), criticar um comportamento (“não é esse o jeito certo de se corrigir um texto”), etc.

Essas dimensões coletivas têm grande importância no desenvolvimento do trabalho educacional, já que é no coletivo que várias questões são tratadas. No caso brasileiro, fica bem evidente isso, ao verificarmos as discussões sobre salários e outros benefícios em que, agindo ou não como coletivo, os professores, na qualidade de um coletivo, conquistarão ou perderão algo.

Segundo Amigues et al. (2002), os coletivos assumem funções dinâmicas e diversas no desenvolvimento profissional dos professores. É neles que as prescrições oficiais, como as LDBs ou os PCNs, são repensadas a fim de reorganizar a tarefa dos professores. Afinal, esses documentos muitas vezes são escritos de uma maneira que impossibilita o acesso direto do professor a eles, logo, para implementá-los, é necessário quase que recriá-los no espaço docente.

No ensino das disciplinas específicas também notamos novamente a inerferência do coletivo. Talvez isso fique mais explícito em escolas particulares, mas em todas isso ocorre. Há determinações sobre o que deve ser ensinado em cada série, em cada momento do ano, sobre o modo como deve ser feito o trabalho pelo professor e pelo aluno, e sobre como e quando ocorrerão as avaliações. Essas determinações podem vir de um coletivo maior, mas são recriadas no interior de uma escola. Como exemplo disso, vimos que durante muito tempo foi regra trabalhar com textos narrativos até a 7ª série do Ensino Fundamental, iniciando os alunos na argumentação só depois disso. O livro didático foi colocado como vilão dessa história, mas será que o professor não poderia quebrar essa tradição e desrespeitar o material didático? Novamente, vem o papel do coletivo de trabalho: se este concordasse com essa quebra, a mudança seria feita. Mas se houvesse discordância do coletivo, o professor que fizesse tal mudança deveria estar preparado para receber o peso da avaliação do coletivo.

Mazzillo (2006), em sua tese de doutorado, mostra como um professor avalia o outro qualificando ou desqualificando o trabalho do colega. Nessa avaliação, são julgados os modos de agir de cada professor a partir do que cada um considera ser o correto para dar uma aula. Ainda que não tenhamos acesso direto a essa avaliação, os seus indícios acabam por interferir no trabalho de um professor. Isso fica bem claro quando chega um professor récem-formado em uma escola e precisa se “adaptar” ao novo ambiente. É por meio das avaliações do coletivo e de suas reações a elas que ele vai se constituindo como um professor. E

nessas trocas entre colegas, todos os professores vão se revendo e se desenvolvendo no trabalho docente.

Dessa forma, podemos perceber que o coletivo tem um papel bastante relevante no trabalho do professor, já que, como vimos, ele permite a reorganização da tarefa, a construção de instrumentos para o trabalho, uma avaliação do trabalho, um apoio para as iniciativas, uma acolhida aos novos profissionais, uma troca de saberes entre os professores. Assim, conforme Amigues et al. (2002), o coletivo é indissociável da ação individual do professor.

Em suma, neste capítulo, apresentamos alguns conceitos sobre o trabalho, uma forma de agir, como uma atividade dirigida, em que se pode distinguir um trabalho representado, um prescrito, um realizado e um real, e também sobre os elementos constitutivos do trabalho do professor (o próprio professor, o objeto, os outros como o coletivo, os artefatos ou instrumentos como as prescrições ou as regras do ofício), conceitos esses que poderão nos ajudar a analisar com maior acuidade os aspectos sobre o trabalho tratados pelos estagiários nos projetos de intervenção.

Contudo, como todos esses conceitos e elementos serão estudados em textos escritos, é preciso que completemos nossa fundamentação teórica com uma discussão sobre o papel dos textos no desenvolvimento do agir humano e sobre os procedimentos de análise do agir representado em textos. Para isso, apresentamos, no próximo capítulo, o quadro teórico do Interacionismo Sociodiscursivo e o seu modelo de análise de textos.

Capítulo 3