• Nenhum resultado encontrado

Ergonomia da Atividade e Clínica da Atividade: conceitos básicos

O estágio e os dispositivos de formação

Capítulo 2 O trabalho de ensino

2.2 Ergonomia da Atividade e Clínica da Atividade: conceitos básicos

A Ergonomia da Atividade e a Clínica da Atividade fazem as suas pesquisas observando o agir do trabalhador in loco, na própria situação de trabalho. Em razão dessa forma de abordagem, elas já conseguiram detectar e nomear vários fenômenos que ocorrem nessa situação. Os aportes desses grupos, além de auxiliar no avanço de pesquisas com o mesmo tipo de abordagem, também nos permitem aprimorar a análise do trabalho que os textos escritos tematizam, uma vez que apresentam vários elementos do trabalho que podem ser tematizados nos textos. É por essa razão que vamos recorrer a alguns de seus conceitos e definições sobre o trabalho de modo geral e, de modo específico, sobre o trabalho do professor.

Nascida na França, a Ergonomia da Atividade trata o trabalho a partir do ponto de vista do trabalhador, fazendo uma análise que se centra no trabalho

efetivo (os problemas “reais”, em situações “reais”, em tempo “real”), pressupondo que não se pode definir o trabalho efetivo sem se considerar os aspectos que ligam o trabalhador à tarefa que ele é obrigado a cumprir. Assim, assume-se como unidade de análise a atividade da pessoa no trabalho, defendendo-se a idéia de que o trabalhador pode se desenvolver no trabalho.

Logo de início, as pesquisas fizeram emergir os três níveis de trabalho: o trabalho teórico, o trabalho prescrito e o trabalho realizado (Teiger, 1993):

a) o trabalho teórico seria o que existe nas representações sociais, com sede no cidadão comum, ou no trabalhador ou nos conceptores de prescrições;

b) o trabalho prescrito ou esperado seria o que é fixado por regras, por normas, por documentos, etc., nas organizações de trabalho;

c) o trabalho realizado seria o que o trabalhador efetivamente realiza perante as prescrições que lhe são dadas, sendo o lugar em que se constrói a relação subjetiva com o trabalho.

Já a Clínica da Atividade também se fundamenta na idéia de que a atividade do trabalho contribui para o desenvolvimento permanente das pessoas e acrescenta que a própria pesquisa pode se constituir como um espaço para esse desenvolvimento. Para Clot (1999), o trabalho pode ser definido como uma atividade triplamente dirigida, já que se dirige ao comportamento do sujeito trabalhador, ao objeto da tarefa (guiar um ônibus, cozinhar em um restaurante, etc.) e também aos outros (os passageiros do ônibus, os clientes do restaurante, os colegas de trabalho, os chefes, a própria família, a sociedade, etc.). Para realizar o trabalho, o sujeito poderá recorrer a artefatos materiais (ônibus, panelas, giz, apagador) e/ou simbólicos (prescrições, placas de trânsito, cadernos de receitas, etc.), que poderão ser transformados em instrumentos de desenvolvimento se forem apropriados pelo trabalhador, o qual passará a vê-los como úteis para a realização de sua tarefa, mas continuarão a ser simples artefatos se os trabalhadores não os incorporarem. Vejamos o esquema abaixo que, segundo o autor, permite simbolizar qualquer atividade de trabalho:

Figura 1 – O trabalho e seus elementos

Mas a relação entre o sujeito, o objeto, os outros e os artefatos não é tranqüila. Ao contrário, ela é bastante conflituosa, uma vez que os sujeitos durante a atividade “lutam” contra a própria atividade e sua prescrição, contra os seus destinatários, contra si próprios, contra o objeto, contra os artefatos, etc. para conseguirem realizar uma atividade. Imaginemos um professor que tenha preparado uma aula para discutir com seus alunos um certo texto, mas eles não leram e não fizeram as cópias do texto, então o que fazer? Reprogramar a sua aula, buscando na hora saídas sobre como se reorganizar para poder fazer o seu trabalho ou o trabalho que for possível. Nota-se, assim, que há todo um conflito que, se apenas observarmos o trabalho efetivamente realizado, não perceberemos. Por isso, Clot (1999) propõe uma visão de trabalho que ultrapassa aquilo que é visível, observável, ou seja, assume-se que o trabalho real envolve também o trabalho pensado, desejado, impedido, possível, etc. Dessa forma, amplia-se a distinção inicial da Ergonomia, entre o trabalho prescrito e o realizado, que nos levava a falar de uma atividade prescrita e outra realizada, acrescentando, assim, o real da atividade. Com isso, teremos:

a) atividade prescrita: é a tarefa, o que deve ser feito;

b) atividade realizada: é a atividade efetivamente feita, realizada, em uma situação, que pode ser observada;

c) o real da atividade: é tanto o que se faz como aquilo que não se faz, que se procura fazer sem conseguir, aquilo que tenhamos querido ou podido fazer, aquilo que pensamos que podemos fazer em outro lugar, ou seja, tudo o que foi feito, mas também tudo o que ficou impedido de ser realizado.

Para os autores dessa corrente, no trabalho, os sujeitos recorrem a modelos de como se situar e como agir em cada situação, seguindo em parte, assim, regras que não foram diretamente construídas por eles ou adaptando-as conforme as suas necessidades. Dessa forma é que essa corrente reelabora, para o campo do trabalho, noções bakhtinianas de “gêneros de discursos” (Clot e Faïta, 2000) – tipos de enunciados de formas relativamente estáveis (Bakhtin, 1992) como as cartas de leitor, as notícias ou as piadas –, postulando a existência de “gêneros profissionais”, definidos como tipos relativamente estáveis de atividades socialmente organizadas por um meio profissional. Esses gêneros, que se constituem, ao mesmo tempo, como coerções e recursos para um agente, serão incessantemente transformados e reestruturados pelas contribuições estilísticas dos indivíduos durante o decorrer do trabalho. Ao pensarmos em uma aula expositiva, por exemplo, temos de antemão conhecimento de alguns gêneros profissionais que dela fazem parte, como os modos de iniciar uma aula de leitura de um conto, como organizar uma prova de gramática e como agir ao aplicá-la, como fazer a devolução de uma prova, etc., mas, no decorrer de nossos trabalhos, como professores, fazemos alterações e adaptações nos modos-padrão de acordo com o contexto, com nossos interesses, etc.

Essa visão do trabalho da Clínica da Atividade e da Ergonomia da Atividade é muito importante para a análise da situação do trabalhador, que vem sofrendo várias modificações. Com o uso da informatização no mercado, a divisão do trabalho, que era bem clara durante o taylorismo, torna-se mais complexa, exigindo-se cada vez mais competências do trabalhador, a quem é imposto o dever de ajudar a empresa a atingir a chamada qualidade total. O Estado, que antes era o do Bem-estar Social – garantindo ao trabalhador as condições básicas de vida, regulando e interferindo em todos os setores como os de saúde, habitação, educação, direitos trabalhistas, etc. –, também muda com o neoliberalismo, nova política econômica global que garante grande liberdade ao mercado e às decisões econômicas em detrimento dos interesses sociais. Em decorrência dessa política

econômica, o Estado perde espaço para as privatizações e deixa o trabalhador mais exposto às decisões do mercado. No caso dos professores, é crescente, por exemplo, o número daqueles que deixam de ser registrados para serem contratados em sistemas de terceirização, sem registro em carteira e tendo de assumir todos os riscos, já que passa a poder ser despedido (ou descartado!) a qualquer hora, como qualquer outro prestador de serviços, sem direito a receber férias, Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) ou multas rescisórias. Percebe-se, assim, que a fim de conseguir maior produtividade e, conseqüentemente, maior lucro, as empresas buscam estratégias para envolver seus empregados de modo que estes assumam, como seus, os objetivos do patrão. Tal situação, em que os papéis já não são mais claros, leva ao estresse e cria a necessidade de que se compreenda melhor o trabalho e o trabalhador.

Essas alterações do trabalho de modo geral vêm atingindo a todos e mostrando que é preciso compreender melhor o mundo de todas as profissões e encontrar soluções para os problemas vividos. Os estudos sobre o trabalho que tinham como foco fortemente o mundo externo à escola, pesquisando indústrias, hospitais, empresas, etc., ante uma nova sociedade, chegam ao trabalho de ensino com estudos interdisciplinares reunindo aportes da Ergonomia, da Psicologia Social, da Clínica da Atividade, das Ciências da Educação e da Lingüística Aplicada.

Assim, nos últimos anos, têm aparecido estudos que colocam que é preciso “construir um ponto de vista mais integrativo, interacionista, capaz de melhor apreender a complexidade e a multidimensionalidade das práticas educacionais” (Saujat, 2004, p. 19). Fazendo uma análise de base ergonômica, mas já aliado a profissionais de diferentes áreas, Amigues (2002, 2004) mostra que o trabalho do professor é bem mais complexo, indo além de uma mera relação só com o aluno ou só com um conteúdo a ser transmitido. Na verdade, ao examinarmos a organização escolar e o trabalho de ensino, nota-se que o professor é,

ao mesmo tempo, um profissional que prescreve tarefas dirigidas aos alunos e a ele mesmo; um organizador do trabalho dos alunos, que ele deve regular ao mesmo tempo em que os mobiliza coletivamente para a própria organização da tarefa; um planejador,

que deve reconceber as situações futuras em função da ação conjunta conduzida por ele e por seus alunos, em função dos avanços realizados e das prescrições. (Amigues, 2004, p. 49)

Nesses estudos de base ergonômica, procura-se compreender quais são os organizadores das situações de trabalho escolar. Segundo Saujat (2003), as pesquisas ligadas a essa visão consideram que a atividade do professor o faz se engajar em um conjunto de dilemas que exigem dele compromissos e escolhas, que podem trazer-lhe tanto satisfações quanto sofrimento. Nessa concepção da Ergonomia da Atividade francesa, o trabalho do professor consiste, a partir de prescrições que lhe são feitas, em organizar as condições de estudo dos alunos (conforme Amigues, 2002). O objetivo dessa abordagem é compreender como o métier do professor faz essa organização e como modifica o meio de trabalho para cumprir as obrigações prescritas e redefinidas pelo coletivo de trabalho.

Seguindo essa perspectiva, mas aliando-se também a outras teorias, como o Interacionismo Sociodiscursivo, já encontramos, no Brasil, alguns recentes estudos que visam a analisar o ensino como trabalho. Entre eles, podemos citar as pesquisas desenvolvidas pelo Grupo ALTER-LAEL e as publicações e/ou teses de alguns de seus membros (Bronckart e Machado, 2004 e 2005; Lousada, 2004 e 2006; Abreu-Tardelli, 2004 e 2006; Mazzillo, 2004 e 2006).

Na próxima seção, apresentaremos alguns dos elementos constitutivos do trabalho do professor que as pesquisas dos ergonomistas da atividade e dos integrantes do Grupo ALTER levantaram.