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As relações com o mundo e com a cultura na demência: a linguagem na DA

CAPÍTULO 3 LINGUAGEM, MEMÓRIA E IDENTIDADE: UMA CONSTRUÇÃO SÓCIO-CULTURAL

3.6 As relações com o mundo e com a cultura na demência: a linguagem na DA

Procuramos discutir a demência a partir de uma perspectiva teórica que assume a linguagem como trabalho, uma atividade permeada pela inter-relação entre os sujeitos no mundo: “Esta se situa em relação ao seu uso social, aberta aos fatores que a condicionam e determinam na interação dos interlocutores em suas relações com o mundo e a cultura” (Franchi, 1977/1992: 11).

Como já posto, o autor nos apresenta uma visão abrangente e pública de linguagem, demonstrando preocupações teóricas ao evitar reduzir a linguagem ao papel de ferramenta social, limitando o trabalho científico à observação de sua face exterior, puramente instrumental. Na citação que segue, Franchi destaca o aspecto construtivo da linguagem como uma atividade criadora e o caráter de reciprocidade de suas funções, visto como um instrumento socializador com o qual comunicamos aos outros nossas experiências, estabelecemos laços contratuais, interagimos, nos compreendemos e nos influenciamos mutuamente:

Mas, se queremos imaginar esse comportamento como uma ‘ação’ livre e ativa e criadora, suscetível de pelo menos renovar-se ultrapassando as convenções e as heranças, processo em crise de quem é agente e não mero receptáculo da cultura que temos então que apreendê-la nesta relação instável de interioridade e de exterioridade, de diálogo e de solilóquio: antes de ser para a comunicação, a linguagem é para a elaboração; antes de ser mensagem a linguagem é construção do pensamento; e antes de ser veículo de sentimentos, idéias, emoções, aspirações, a linguagem é um processo criador em que organizamos e informamos as nossas experiências (idem, ibidem: 25).

A propósito da reflexão sobre o que vem a ser o aspecto criativo da linguagem, Franchi redefine a idéia humboldtiana que se opõe à concepção de linguagem como mera função instrumental na comunicação. A seguinte citação exemplifica esta idéia:

A produção da linguagem responde a uma necessidade interior, inata, do homem; o ‘impulso do homem em relação ao outro’ requer o uso da linguagem pelas possibilidades de compreensão que oferece, e de si mesmo e do outro,

pelos recursos que põe à disposição de objetivos comuns; mas ela ‘não é somente esse veículo externo, destinado a manter o intercâmbio social, mas um fator indispensável ao desenvolvimento do poder intelectual do homem e para que tenha acesso a uma visão do mundo. Por isso, independente mesmo da comunicação que se estabelece entre um homem e outro, a linguagem constitui uma condição necessária que governa o pensamento do indivíduo singular ao nível de sua existência mais solitária, em virtude da qual o homem organiza seus pensamentos, produz idéias que se reiteram e compõem, a passo e passo, o quadro de referências de toda sua vida (Humboldt, apud Franchi, 1977/1992: 28).

Pensamos, com Franchi, a linguagem como atividade constitutiva e, com Vygotsky (1934/1994, 1934/1993), como um instrumento para a formação da mente, ressaltando o caráter de dialeticidade para o qual contribuem as relações entre os sujeitos e entre os sujeitos e a linguagem43. A linguagem constitui os sujeitos que, ao mesmo tempo, constituem a própria linguagem. A concordância com tal concepção de linguagem possibilita assumir a inter-relação linguagem, cultura e sociedade.

Aproximamos esses dois autores e relacionamos o conjunto de fatores e as circunstâncias que se estabelecem no ato de comunicação e na relação com o outro que viabilizam a internalização da linguagem, o que Vygostky define como processos interpsíquicos e intrapsíquicos.

Integrando várias formas de interação entre língua/discurso, linguagem/cognição, sujeito/práticas sociais, pretende-se mostrar como fatos da memória e da história de um sujeito com demência são (re)elaborados durante situações de interação e de práticas discursivas, o que pode revitalizar a discussão vigente de que pessoas com demência apresentam perdas progressivas de memória.

Uma vez que consideramos a influência dos aspectos culturais e sociais na cognição humana, faz-se necessária uma discussão sobre essa influência em sujeitos com demência à luz dos autores da abordagem sócio-cultural descritas ao longo deste texto. Essa concepção nos permite delinear um sujeito real e ligado ao

43 Parece-nos oportuno considerar o sentido que Franchi confere à expressão antes de ser, no sentido de concomitância e simultaneidade das funções da linguagem, não devendo ser entendido como anterioridade no sentido temporal do termo.

mundo do qual faz parte, preferencialmente pelas relações e interações que o integram à sociedade.

A esse respeito, faremos uma breve passagem pelo conceito de desaculturação ou desculturização proposto por Goffman44 (1961), na referência aos indivíduos asilados em instituições. Segundo ele, essas pessoas sofrem um processo de desadaptação cultural, sendo forçadas a cortar os laços com o mundo exterior. Esse processo representa o início da construção de uma nova personalidade moral e desindividualizada, enquadrada institucionalmente. Desta forma, o indivíduo, moldado pela organização imposta pelo sistema assume a postura de um indíviduo disciplinado afastado da sociedade em que viveu45.

Estariam os indivíduos dementes à mercê de um processo de desculturação durante o curso demencial, estando ou não institucionalizados? Seria possível continuarem exercendo – e até quando - seu papel de sujeito no mundo em que vivem, retardando possíveis perdas?

Essa é uma pergunta que motiva o trabalho por nós desenvolvido, na tentativa de manter os sujeitos com demência no exercício de suas vidas. E tal condição significa ainda agir no mundo em que vivem, o que remete ao exercício da função práxica.

44 Erving Goffman insere-se num grupo de autores da Escola de Chicago, de uma perspectiva Interaccionista/Simbólica, corrente oposicionista ao Funcionalismo de Parsons (análise macro-social). Reconhecendo no sócio-interacionismo uma interface profícua para seus estudos, Goffman evocava a concepção de que nossas experiências cotidianas são, na verdade, experiências interacionais com um elenco de sujeitos sociais com os quais nos intercomunicamos. Nesta perspectiva, o autor salienta que nossas relações interacionais não são eventos discursivos isolados, mas, ao contrário, eventos constituídos segundo a participação dialógica dos interlocutores envolvidos na interação (1983). O autor explora os detalhes da identidade individual e social e das relações em grupo em um nível micro-sociológico e na situação de indivíduos incapazes de se condicionarem aos padrões normalizados da sociedade. Merecem destaque as seguintes obras do autor: The Presentation of Self in Everiday Life (1959), Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity (1963) e Asylums. Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates.

(1961/1993).

45 Sob um outro enfoque, também Bragança (2002) faz referência ao termo desculturação, ao descrever questões relativas à construção da identidade do povo latino-americano desde o projeto de Colonização da América Latina, em dois momentos específicos: a utilização da idéia de transculturação, a partir dos anos 60/70 (no pós-revolução cubana) e no conceito de culturas híbridas. Segundo a autora, o conceito de transculturação, elaborado pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz e proposto com o objetivo de refletir sobre a história e cultura cubanas, sugere a substituição do termo aculturação por transculturação. O processo aculturador prevê uma perda e um apagamento de uma cultura precedente, onde haveria uma desculturação. O termo original em espanhol, utilizado por Ortiz é desculturación.

CAPÍTULO 4 – UMA HIPÓTESE FUNCIONAL PARA