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As representações das mulheres: o discurso católico que silenciou Maria e as mulheres

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CAPÍTULO III: GÊNERO E MULHER NA IGREJA CATÓLICA: A

3.2. As representações das mulheres: o discurso católico que silenciou Maria e as mulheres

Como já dito nesse trabalho, o cristianismo projeta a imagem de mulher a partir de Maria de Nazaré. Seus destaques são aqueles que homens de seu tempo quiseram registrar, guardar e perpassar na história. Sua feição, seus gestos, suas inclinações, suas escolhas, sua vida, partem de um relato contado por homens, para dizer aos homens, onde é o lugar das mulheres. Ao dizer aos homens, o papel da mulher, a construção social é forjada, e se faz intransponível no tempo e no espaço, criando regras ainda mais excludentes às mulheres, por exemplo, o caso da impureza no período menstrual. “Em 1878, um membro da Associação de medicina Britânica fez uma comunicação ao Bristish Medical Journal em que declara: ‘é indubitável que a carne se corrompe quando tocada pela mulher no período das regras’; e afirma saber de dois casos em que os presuntos estragaram em tais circunstâncias” (BEAUVOIR, 2016 v.1 p. 210). Se há uma linguagem dessa envergadura em pleno século XIX, quanto mais desde os tempos de Maria de Nazaré.

Conforme lembra Beauvoir (2016 v.1), o livro dos Levíticos, condenam a sete dias de impureza, aos homens que transgredissem essa regra, sob a ameaça de que perderiam definitivamente a sabedoria, a energia, a força, a vitalidade, justamente por considerarem esse período o tempo de força máxima do princípio feminino, receando-se que com o contato íntimo, pudessem triunfar sobre o princípio masculino. Nesse jogo de forças, a mulher sempre esteve em desvantagem, relegada a sua própria história biológica, pouco questionou, e quase nada, de concreto construiu.

As mulheres, não se colocando como Sujeito, não criaram o mito viril no qual seus projetos se refletiriam; elas não possuem nem religião nem poesia que lhes pertençam exclusivamente: é ainda através dos sonhos dos homens que elas sonham. São os deuses fabricados pelos homens que elas adoram. Estes forjaram para sua própria exaltação as grandes figuras viris: Hércules, Prometeu, Parsifal; no destino desses heróis a mulher tem apenas um papel secundário. (BEAUVOIR, 2016 v.1 pp. 202- 203)

A repugnância do cristianismo pelo corpo feminino é tal que ele consente em destinar seu Deus a uma morte ignominiosa, mas poupa-lhe a mácula do nascimento: o concílio de Éfeso no Oriente, o de Latrão no Ocidente afirmam a concepção virginal de Cristo. Os primeiros padres da Igreja – Orígenes, Tertuliano, Jerônimo – pensavam que Maria parira no sangue e na imundície como as outras mulheres, mas é a opinião de santo Agostinho e santo Ambrósio que prevalece. O seio da Virgem permaneceu fechado. (BEAUVOIR, 2016a p. 233)

De acordo com Carolina Teles Lemos, o imaginário difundido pela Igreja Católica acredita no amor materno natural, a ponto de dizer que há o instinto materno, naturalizando também a ideia de amor materno. No entanto, a autora apresenta que essa ideia de amor materno foi difundida no século XIX, cuja necessidade era “idealizar a relação mãe-filho, fato/questão que obedece ao desejo de união perfeita, fantasia de completude que protege o indivíduo das ansiedades e medos mais primitivos de separação, abandono e perda”. (LEMOS, 2006 p. 83)

Lemos salienta que essa imagem da mãe perfeita, acaba por não permitir a distinção entre ela – Maria – e a mulher que de fato é. A mãe humana e Maria em sua maternidade se fundem e dão origem à maternidade sagrada. Nessa imagem que se confundiu ao longo da história, acaba por revelar a face do poder.

O poder é a capacidade de decidir sobre a própria vida e também a capacidade de decidir sobre a vida do outro, de intervir em fatos que obrigam, circunscrevem ou impedem. Quem exerce o poder se arroga o direito ao castigo e ao postergar bens materiais e simbólicos. Dessa posição domina, sentencia e perdoa. (LAGARDE, 1993 p.154, apud LEMOS, 2006 p. 85)

Essa citação assemelha-se a de Weber (1999 p. 43) ao referir-se que o “poder significa a probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo que contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade” (apud LEMOS 2006, p. 85). Nota-se nessas duas citações, a força e a dinâmica do poder, cuja essência é perceptível nos documentos pontifícios, com a construção social da mulher a partir da imagem/modelo de Maria de Nazaré, como a única representação perfeita de mulher para o catolicismo. Por isso, a finalidade é a de que todas as mulheres possam imitar seu papel de mãe obediente, sem sexualidade ou desejos sexuais. Uma mulher, com posturas contrárias, facilitaria essa adesão ao papel de Maria na vida e no seio familiar. Por isso, Eva, a mãe dos viventes traz a mancha do pecado ao mundo e é apresentada como não perfeita entre às mulheres, concepção que ainda hoje permeia a teologia cristã.

Segundo Lemos, Maria é enaltecida como mãe de Jesus pela primeira vez no Concílio de Éfeso, em 431 e é também considerada mãe de Deus. À Eva, firmou-se a inferioridade da carne, originário do pensamento grego dualista, que dividia o ser humano em corpo e alma. Com a ênfase de Santo Agostinho, na Idade Média, de que haveria inferioridade da razão na mulher (corpo) e superioridade racional ao homem (alma), Eva é então definida como o corpo que comete o pecado original, rendendo-se ao desejo no paraíso. Esse desejo implica-lhe a dor eterna no parto, o que se estenderia a todas as próximas gerações, uma vez que é chamada, mãe dos viventes. “Embora Eva não seja responsável pela Queda, continua sendo a tentação ou o veículo para o pecado. Isto porque a conduta dela mostra que, se a mulher tivesse devidamente permanecido subordinada ao homem, os seres humanos não teriam sido excluídos do paraíso”. (LEMOS, 2006 p. 97)

De acordo com Lemos, o projeto para enaltecer Maria, dá-se a partir do século XII, com forte impulso de elevação das virtudes de Maria, no entanto, dogmas Marianos surgem antes e somam quatro no total: a maternidade divina, 431; o da virgindade de Maria, 553 em Constantinopla; o da Imaculada Conceição, 1854 pelo Papa Pio IX e por último o dogma da Assunção de Maria ao céu, de corpo e alma, 1950, pelo Papa Pio XII. Todos esses dogmas foram pensados para reforçar a sacralidade de Maria, e assim consolidar sua perfeição.

Essa dimensão sobrenatural de Maria a afasta cada vez mais da imagem como mulher terrena, o que implica aos tempos modernos, uma maior dificuldade de incorporação por parte das mulheres, dado as condições tão adversas e tão diferentes. Essa construção poderosa, de tempos medievais, é totalmente ineficaz para os dias de hoje. A versão nada assimétrica da

mulher na Igreja Católica, conforma-se ao que diz Ivone Gebara51, em entrevista, sobre: a Igreja

irá perder mulheres que pensam, por justamente não aceitarem esse papel de submissão a que

lhe é imposto. “Porque o que incomoda a Igreja não é o feminino, é o feminismo. Porque o feminino quer dizer, como disse o Papa, a Virgem Maria é mais importante que os apóstolos, esse é um discurso romântico e que serve para que tudo continue igual”. Na sequência da sua visão, Gebara diz das perdas da Igreja, e reafirma:

Não sei falar do futuro, mas no presente o que ocorre é que muitas mulheres saem da Igreja. A Igreja já perdeu os operários, já perdeu o campesinato, e irá perder as mulheres que pensam. As mulheres que pensam e as líderes de movimentos populares. A Igreja Católica já não lhes diz quase nada. No mundo indígena, esta maneira da Igreja com o feminismo comunitário, não lhes diz nada. Sim, algumas permanecerão, mas perderão muitas. (GEBARA, 2018b n.p.)

Para Lemos, essa construção que enaltece Maria, retirando-lhe aspectos carnais e sobrepujando os espirituais, enaltecendo sua maternidade divina não conferiu às mulheres, nenhuma mudança em seu papel e na sua dignidade, quando comparado a posição que o homem ocupa em sociedade. “A maternidade espiritual de Maria é puro serviço, oferta, trilha que aponta e conduz para o único caminho: Jesus” (LEMOS, 2006 p. 102).

A sexualidade e a moral ascética sob os corpos femininos sempre foram discursos controversos desde a origem da Igreja. Dessa forma, a representação de Maria é construída e firmada como modelo perfeito com os dogmas marianos. Ao longo da história a sexualidade feminina, por vezes foi demonizada, incompreendida e domesticada pelos homens, servindo- lhes aos seus propósitos, sobretudo teológicos. Até mesmo a capacidade procriativa da mulher foi instrumentalizada como garantia da manutenção da herança e da propriedade. Sob o jugo da ganância, da posição social e do poder, provavelmente, processos conflituosos se

desencadearam no âmbito psíquico-afetivo, complexificando o desenvolvimento falocêntrico52,

que se sentindo ameaçado pela mulher, capaz de gerar vida, resolve demonizá-la, culpá-la, o

51 De Comillas – Espanha – Gebara participou de algumas conversas organizadas pela Associação de Teólogas

Espanholas, onde faz dura crítica a Igreja, dizendo que irá perder as mulheres que pensam. A entrevista foi concedida em 01 de outubro de 2018, encontra-se disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78- noticias/583314-a-igreja-ira-perder-as-mulheres-que-pensam-entrevista-com-ivone-gebara acesso realizado em 30/10/2018

52 Sobre esse assunto, pode-se aprofundar com o texto de Rose Mary Muraro em: Feminino e Masculino. A

que historicamente e até mesmo inconscientemente, leva-o a violenta-la, numa espécie de catarse de si mesmo.

Até hoje essa questão parece alojar-se entre homem e mulher, o falo e o feto disputam inconscientemente um valor sobrenatural no mundo. O homem que culpabiliza o desejo, na representação do paraíso que então foi perdido, sugerindo que era o falo reinante e supremo nas ordens paradisíacas, opondo-se à aquela que teria se curvado ao desejo e incitado o desejo no homem. São projetos antagônicos, falo e vida, o que faz ao primeiro ver o poder nas coisas, no

ter, e o segundo, busca ver aquilo que está no ser das pessoas, é o exterior e o interior que se

digladiam.

Por isso, na história dos homens, ser herói é mais nobre e importante, do que dar luz à história. A mulher, para ser classificada como nobre na visão masculina, foi necessário permanecer intacta, virginal, “sem pecado”. Um “tal pecado” que a princípio não se comete só, é necessário o rompimento do hímen pelo órgão fálico, tornando-se tão participe do pecado original, quanto a mulher. No entanto, não há história da heroína e nem da deusa, na mulher Maria, que poderia ser cultuada com ares de superioridade, pois não precisou de homem para rompê-la e, assim engravidá-la. Entretanto, a gravidez de Maria não a fez uma heroína, mas seu filho é um herói na História.

Sua vida pública com Jesus é retratada de forma tímida, tolhida, bem como a de outras mulheres daquele tempo, porque, aos filósofos, a mulher era o mal do mundo. Sublinhada como o mal do mundo seria pouco provável que ganhasse espaço para alguma grande desenvoltura no seu tempo, a não ser, alguns pequenos detalhes, como o episódio das bodas em Caná (Jo 2, 1-11). Nessa passagem, que pode ser considerada um grande início da mulher no tempo de Jesus, estaria ele distraído, aproveitando a festa, conversando com os convidados, enquanto sua mãe aponta para algo que ele ainda não havia percebido. A atenção feminina se faz presente, comunicando que é dada a hora de iniciar sua missão. A mulher intuiria o milagre de acordo com os sinais dos tempos. A mulher é que acende o sinal de alerta, a mãe, a mulher atenta, sábia, que na sua infinita capacidade de observação da realidade, sabe a hora de agir.

Olhando para as passagens bíblicas, onde às mulheres surgem, pode-se notar que ao longo da história, elas foram adquirindo maneiras de se infiltrarem nas brechas, nos pequenos espaços, às vezes pouco prováveis, mas que causaram grandes erupções na história. Com Maria de Nazaré temos pouquíssimas passagens e olhando de forma literal, chegam a ser

insignificantes diante dos acontecimentos onde os homens foram protagonistas das cenas53. Portanto, Maria tem como momento mais relevante, enaltecido durante os séculos pela Igreja, somente sua maternidade, o que lhe confere submissão ao conjunto de fatos subversivos que figuram os homens, de ontem e de hoje. A questão é que os evangelhos foram escritos para o evento Jesus de Nazaré, logo ele oferece poucos sinais fora do projeto messiânico.

As mulheres na bíblia acompanhavam Jesus (Mc 15,41; Lc 8,1-13; 43-49), ele as escutava, orientava e instruía (Lc 10,38-42; Lc 16-18; Lc 23, 27-28; Jo 4,7-30; 8,1-11), eram curadas de suas enfermidades (Mc 5,21-43), elas seguiram Jesus até o fim (Lc 23, 55-56), foram a seu túmulo (Lc 24,1-3), voltam e são as primeiras a anunciarem que seu corpo não estava mais lá, que havia ressuscitado (Lc 24,9-11; Mc 16,1-8; Jo 20,1-2).

Essas passagens, obrigam de nós um esforço positivo em relação ao papel de Maria, e das demais mulheres bíblicas, compreendendo que o contexto machista da época e da cultura judaica, foi um limitador de suas aparições, mas jamais um definidor da história. O fato que interessa é perceber que Jesus quebra as regras do seu tempo, pelo simples fato de receber mulheres em seu movimento e ainda mais por conversar com elas, por deixar-se ver por elas. Esses acontecimentos devem ser transferidos ao nosso tempo com a mesma resistência e verdade, superando os discursos androcêntricos para respeitar as inúmeras possibilidades que as mulheres podem ocupar.

Algumas autoridades estão convencidas de que os esforços pelos direitos igualitários das mulheres nada mais são do que “moda passageira” e que a verdadeira ordem querida por Deus é a mesma através dos séculos. Muitos foram os conflitos e até reveses ao longo de sua história milenar, mas a Igreja continua a ser o Corpo de Cristo, Corpo masculino que é sustentado por uma hierarquia masculina que pretende ser responsável por manter sua integridade até o final dos tempos. (GEBARA, 2017b p. 116)

O que no tempo de Jesus foi considerado como superação cultural e religiosa, hoje, o catolicismo romano, insiste em fazer vistas grossas a toda modernidade, a tudo que já foi

53 Segundo a Bíblia, Maria teria participado da vida e missão de seu filho: ouvindo e meditando cada palavra ou

acontecimento (Lc 2,16-21; 2,51), acompanhava Jesus (Mc 3,31) na Bodas de Caná ( Jo 2,3), aos pés da cruz (Jo 19,25; Mt 27,55-56; Mc 15,40-41; Lc 23,49); e após a morte de seu filho, sempre esteve reunida, com outras mulheres e junto com os apóstolos (At 1,14)

produzido por várias teólogas, a todo seguimento feminino, seja por religiosas, mulheres agentes de pastorais e os mais variados serviços prestados de tantas e tantas mulheres, “a instituição Igreja continua com seu antigo idealismo”; “há certo consenso em relação à doutrina social da Igreja, mas um enorme dissenso em relação à doutrina sexual”. (GEBARA, 2017b p. 117).

Como tratado anteriormente, ao longo da história a Igreja trabalhou esse modelo de Maria, mulher perfeita que também não foi evidenciado pelos autores bíblicos. A própria aura da família de Nazaré, que pode ser duvidosa, uma vez que, Jesus fica no templo e só o encontraram três dias depois, poderia se perguntar que família deixaria seu filho em plena solenidade no templo? No entanto, a linguagem da religião forja a representação social familiar, sobretudo da mulher, como sendo perfeita, magnânima e incontestável. Utiliza a força da linguagem para evidenciar detalhes que lhes são interessantes, atribuindo personalidades à Maria tão bem capitadas pela devoção popular. Ao mesmo tempo que a devoção popular diz algo, silencia Maria e automaticamente as mulheres do nosso tempo.

Desse devoção mariana, surgem Maria como: Nossa Senhora da Ajuda, Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora dos Anjos, Nossa Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora Desatadora dos Nós, Nossa Senhora do Boa Hora, Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora da Boa Nova, Nossa Senhora da Boa Viagem, Nossa Senhora do Bom Parto, Nossa Senhora do Bom Conselho, Nossa Senhora do Bom Sucesso, Nossa Senhora do Carmo da Boa Esperança, Nossa Senhora da Consolação, Nossa Senhora dos Desamparados, Nossa Senhora do Desterro, Nossa Senhora Divina Pastora e tantos outros milhares de nomes atribuídos à Maria, oriundos de situações de súplicas humanas.

O fato é que de alguma maneira a mulher de Nazaré resistiu ao tempo e ao espaço, não da maneira como é a vida das mulheres hoje, essa resistência mariana é um tanto alienante, uma vez que a devoção popular, mais paralisa as mulheres, do que ajuda na construção como sujeito, evidenciando atitudes subservientes, devotada aos seus cônjuges, anulando-se como pessoa. Por outro lado, encontra-se a Mãe grandiosa, espelho de força e cuidado para muitas mães, a educar e proteger seus filhos. De alguma maneira, Maria desperta esse misto comportamental nas mulheres, garantindo que a Mulher-Maria atravessasse a história cristã, entre acertos e erros.

Maria chega como a luz na escuridão de um filho, como a divisão das cruzes pela vida, é a companhia silenciosa nos lares tão machistas, de tantas mulheres que a ela suplicam a mudança de seus companheiros. Os nomes atribuídos tiram-lhe a humanidade e revelam sua

divindade, são quase como um sobrenome, geográfico e cultural, pois, na sua maioria, eles estão ligados a eventos históricos de um lugar a outro, como as súplicas por Uma Boa Viagem, título muito utilizado aos viajantes em terras e mares; por uma Boa Morte, quando a hora chegava em meio a angústias e injustiças; por um Bom Sucesso, quando algo precisava ser realizado com êxito; por um Bom Parto, quando às mulheres se viam entre a vida e a morte na hora de dar à luz e tantos outros exemplos que se poderia ir tecendo sobre essa Mulher-Maria.

Dessa forma, entre silêncios e luzes, Maria permaneceu no mundo e dá forças a muitas mulheres, para trabalhar, lutar, mostrar, apontar, seguir. De alguma maneira há uma força oculta, muito maior do que a Igreja fez dela todos esses milhares de anos, com isso, uma força que acompanha as gerações femininas, que a vão levando consigo e, num processo de mutação, Maria segue acompanhando, mesmo que esteja condicionada a trama das devoções populares, vai construindo discursos, através de mulheres simples, e também das renomadas teólogas e teólogas feministas. Isso, dentro do catolicismo e fora dele, porque há uma força na mulher, originária, que a leva para frente, que a põe no caminho, que a faz seguir adiante, que a faz derrubar barreiras, principalmente, as que representam as injustiças.

A história passada forma nosso corpo, apesar dos muitos processos individuais e coletivos de libertação. Carregamos nele a vida de nossas ancestrais mais próximas e a história daquelas que não conhecemos de forma direta. Carregamos igualmente interditos, tradições palavras que formaram nosso corpo e são ainda capazes de nutrir ou a continuidade desses papéis ou provocar o desejo de mudança. (GEBARA, 2017b pp.115-116)

Logo, parece ser nessa perspectiva, que, Maria-Mulher esteve e sempre está no meio do povo. Nessa narrativa, se pode afirmar que o catolicismo nunca foi órfão de Mãe, de alguma maneira, bem ou mal, o papel feminino foi centralizado nela. Mesmo, conduzindo o seu papel pela história, ela é, esta carga de processos individuais, antes dela e, a partir dela, o que permitiu construir em outros espaços coletivos, nutrindo as pessoas e povos, a seguir, a lutar, a formar territórios, povoados e comunidades. Mulher-Maria, não exigiria reconhecimento público, pedestal, nem altar, mesmo que os homens a tenham colocado. No entanto, o interesse em manipular o lugar da mulher na história, se fez por algumas honrarias, como o altar, a coroação

da Rainha do Céu e da Mãe de Deus54. Isso está presente na história do cristianismo, especialmente no catolicismo. A religião cria seus deuses e suplantam as impossibilidades das deusas.

Mulher-Maria é silenciada quando o que mais aparece nela são dimensões divinas e não características históricas. Na vida real das mulheres de hoje o silêncio é imposto quando elas não são ouvidas, respeitadas, valorizadas e, principalmente, quando não possuem a liberdade dos seus próprios corpos. A santidade da Mulher-Maria não confere com a imperfeição das mulheres reais. Mulher-Maria não pode ser Musa: “sendo a própria substância das atividades poéticas do homem, compreende-se que a mulher se apresente como sua inspiradora: as Musas são mulheres. A Musa é mediadora entre o criador e as fontes naturais em que deve haurir” (BEAUVOIR, 2016a p. 249). Isso é o que a metafísica, do pensamento masculino, fez com Maria. Ela se tornou Musa dos homens, é “Rainha do Céu”, “Senhora do Mundo”, assunta ao céu de corpo e alma, para merecer a justa glorificação, na visão masculina da teologia tradicional católica. O que isso diz na prática? Quase nada, só a distância ainda mais das realidades cotidianas. Precisamos de reflexões sobre Mulher-Maria mais na terra do que no céu. Mulher-Maria, musa-divina-santa, materna-virgem-obediente-serva, está para o discurso doce

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