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As representações sobre a violência na Barra

5 PROSTITUIÇÃO FEMININA E MODOS DE VIDA: O COTIDIANO DA BATALHA NA

5.4 Os Modos de vida das prostitutas

5.4.3 As representações sobre a violência na Barra

A outra expressão dita por Raquel sobre a Barra que destaco é “eu não sei direito como é viver na Barra porque eu não saiu desta casa (risos), só saiu de carro, moto ou moto- taxi, tenho medo, é muito assalto, malocagem, roubo” (RAQUEL, E2, 14/10/2013). Como já tinha descrito anteriormente, essa sensação de insegurança é compartilhada por diferentes mulheres entrevistadas, e ela tem profunda ligação com a presença do tráfico de drogas na região. O domínio das favelas e das regiões pobres da cidade por parte do crime organizado cresce diante da ausência de uma presença e participação efetiva das políticas públicas em territórios vulneráveis, intensificando a segregação social (SOUZA, VALENCIA, DAHL, CAVALCANTI, 2011).

Nas vezes que conversei com Luana sobre a dinâmica da Barra, ela comentava de como muitas mulheres se envolviam demais com as drogas e que estavam se perdendo, porém sempre se negou a falar sobre o tráfico na região, dizendo “tem coisas que a gente vê, sabe e aprende sem ninguém dizer nada. Essas coisas são assim aqui” (LUANA, DC 32, 02/12/2013). Ainda de acordo com Souza et al (2011), o tráfico fixa uma organização, impondo um poder local e dificultando a ação das políticas no território. A violência é a principal forma de comunicação, adotada para resolver os conflitos e as maneiras de participação dos grupos organizados na dinâmica do tráfico de drogas.

É possível perceber assim os processos de silenciamento que envolve a convivência com o tráfico, diante do medo de sofrer represálias. Irene que também evita dar muito detalhes diz

[...] viver aqui é tranquilo para quem não se mete no caminho deles, quem não deve, não tem medo. A minha rua mesmo apesar de ser dentro da favela mesmo, ela é muito calma, se num fosse as bala que as vezes corre por aqui (IRENE, E1, 05/11/2013).

Elas expressam assim uma naturalização com a presença dos conflitos entre os grupos, no passo que também expressam suas estratégias de sobrevivência diante das regras e leis que são extremamente claras. A medo da violência que Raquel se queixa é desencadeada assim, majoritariamente por três situações representação: 1-Relação entre as “gangues”/ grupos urbanos rivais e o tráfico; 2 – conflito entre polícia e as “gangues”/ grupos urbanos; 3 – Ações corretivas na comunidade.

O conflito entre os grupos urbanos na disputa pelo território e pelo domínio do tráfico na região tem sido intenso nos últimos 5 anos, e nesses períodos ocorrem muitos casos de extermínio jovens em ambos os grupos. Irene esclarece que “aqui é divido entre os Diabo do polo, os ratos do morro, os cobra do gueto, e eles a depender da época se aproximam para eliminar o que ta fora da parceria. Ano passado morreu mais de 16 dos dois lados” (IRENE, E1, 05/11/2013). Segundo ela, essa rivalidade entre elas interfere totalmente na dinâmica do bairro, pois é como se os moradores ficassem sob aviso, evitando inclusive circular pelo bairro durante a noite, “Éramos uma coisa só Lago, Cuca, até aqui a praia era uma coisa só, mas aí devido essa droga né, os pontos de droga, como eles chamam foi foi fazendo os moinho20s né?” – moinho seria os guetos de cada grupo.

Souza (2013) aponta que discutir o tráfico abordando apenas a comercialização das drogas e/ou a presença impositiva no território por parte dos traficantes é reportar

20 Moinho é a definição dada para os guetos criados pelo grupos rivais. Cada facção, grupo, seria assim um moinho.

[...] somente à ponta do iceberg, pois existe todo um aparato estatal (juízes, promotores, agentes do poder executivo, polícia, entre outros) e também do capital (bancos, grandes indústrias fornecedoras de insumos para refino e fabricação de algumas drogas ilícitas) que ortogam apoio, subsídios e possuem interesses, mesmo que indiretos, neste comércio ilegal (p. 345).

Ainda de acordo da autora, a dinâmica do tráfico envolve a filiação com outros grupos, criminosos ou não, para seu exercício nas comunidades. Pactos e trocas de interesses e bens são feitos, impactando diretamente na vida dos moradores por conta da disseminação de situações violentas. E é sobre essa outra relação que as entrevistadas falam. Também tem casos envolvendo o conflito entre a polícia e esses grupos, “quando os homi passam correndo na viatura a gente já sabe que algo deu errado, alguém caiu” (ANA, E1, 22/11/2013), comenta Ana sobre os momentos em que a polícia parece estar realizando busca à alguém e intensifica as abordagens e transito pelo bairro. Em conversa com um taxista e rapper que mora na Barra, revela que “o problema dessa confusão é da polícia, eles ficam apoiando o próprio tráfico, a depender da oferta eles dão cobertura para uma das facções e ficam atiçando, no fundo, não nos protege em nada” (DC 49, 24/03/2014).

Percebi diretamente sua insatisfação com a instituição polícia, por conta de uma abordagem policial agressiva que havia recebido dias antes, que ele diz ser focada nos jovens pobres, negros e favelados. Esse explicita os acordos estabelecidos e o modo como a dinâmica na corrupção da instituição polícia desconsidera totalmente a vida e os direitos das pessoas que esta mesma instituição deveria garantir segurança.

Segundo Irene, esporadicamente ocorrem casos onde pessoas da comunidade são mortas para servir de exemplo, evitando que se chame a atenção e a necessidade da polícia entrar na comunidade. Ela conta que isso foi instalado há um tempo, mas que “atualmente a gente tem uma lei, que roubou na área morre, entendeu? Num sei se a senhora lembra aqui nós tivemos um rapazinho que morreu aqui bem na calçada da casa dele. Ele roubou uma bolsa e veio correndo” (IRENE, E1, p. 29).

A minha inserção aqui não foi fácil e foi mediada diretamente pela equipe do posto de saúde, em visitas que inicialmente ocorriam no turno da manhã (a partir da vinculação fui variando os horários e dias da semana),

Confesso ter ficado insegura nas primeiras visitas, visto que o cenário era intimidador, principalmente pelo uso explicito do crack e pela passagem constante de viaturas do Ronda do Quarteirão (Grupo da Polícia Militar do Estado) em alta velocidade com policias utilizando grandes armas para fora do veiculo. Nos primeiros dias, a cada passagem do carro de policia eu me tremia, achando que a qualquer momento uma

batida policial ou tiroteio poderia acontecer. Até hoje, não presenciei tiroteios, mas perseguições e batidas policiais são cenas bastantes presentes (DC 16, p. 29).

Desse modo, para além do trabalho, a batalha revela-se como um lócus de construção da vida coletiva e individual, em meio às ambiguidades de um espaço de mendicância, de privação, de comércio, de moradia (SILVA, 2010). A zona de prostituição surge como um lugar onde essas mulheres

[...] aprendem, trabalham, articulam-se, medeiam conflitos, e exercem ali outros papéis e atividades sociais, tais quais: fazem programa, comercializam roupas e maquiagens, mediam a relação com a polícia, cuidam da beleza, compartilham a criação dos filhos, cuidam-se e celebram suas vidas (SILVA, 2010, p. 2).

Elas habitam o território e nesse trânsito de papéis, temas e relações produzem seus modos de vida, que surgem como as estratégias de construção de seus cotidianos e de modos de resistência, de luta e de enfrentamento (CIDADE, 2012).

Esse lugar apresenta-se como um “arranjo particular do cotidiano” (GÓIS, 2003, p. 19), com valores e costumes que implicam no modo de ser dessas mulheres, Tuan (1983) compreende que o lugar possui uma relação intrínseca com o espaço. O espaço é mais abstrato, indiferenciado, o campo físico, sendo que a partir do momento que passamos a conhecê-lo e valorá-lo, ele torna-se lugar. Enquanto lugar, os pontos de prostituição são permeados por lembranças, afetos, um mundo significado. Aquele espaço, até então, dissociado, amplo, extenso em potência de possibilidades de relação, é codificado, organizado, a partir dos processos de criação e apropriação de significado.

Desse modo, quando optamos por estudar as implicações psicossociais da violência vimos nos modos de vida o campo privilegiado para entender a vivência segregada e estigmatizada nas zonas, bem como suas relações e socializações estabelecidas e os processos de construção da consciência dessas mulheres a partir dessas experiências.