• Nenhum resultado encontrado

7 VIOLÊNCIA EM REDE: MARCAS SIMBÓLICAS E MATERIAIS

7.3 Ensaiando uma concepção das implicações psicossociais da violência

7.3.1 Os sentidos construídos sobre violência

De acordo com Barros et al. (2009), o sentido é o processo particular de significação, que dialeticamente é compreendido “através de relações sociais, onde uma gama de signos é posta em jogo, o que permite a emergência de processos de singularização em uma trama interacional histórica e culturalmente situada” (BARROS et al., 2009, p. 179). Tal categoria psicológica tem relação direta com os significados, contudo é uma zona mais fluida, dinâmica e extremamente contextual, ocorrendo transformações a partir das diferentes interações e afetos produzidos, diferentemente dos significados que são mais estáveis e duradouros, sendo historicamente compartilhados culturalmente.

O sentido diz da experiência do sujeito em uma zona de encontros entre processos coletivos e individuais, entre dimensões cognitivas, afetivas e simbólicas, marcadas pelo contexto e pelas interações sociais, sendo para Vygotsky (1994) o significado apenas uma das zonas ou dimensões do sentido, afirmando assim a diferença entre ambos. O conceito de sentido serviria assim “como recurso analítico para a superação de cisões e dualismos interno- externo, social-individual, cognição-emoção, mente-corpo” (BARROS et al., 2009, p. 180). Ainda que os significados sejam compartilhados coletivamente e façam parte dos códigos e entendimentos culturais, o que fica e como cada pessoa percebe os processos?

A partir da análise dos dados encontrei seis principais sentidos sobre a violência na prostituição, tentando agrupar os entendimentos, posicionamentos e expressões das entrevistadas em núcleos temáticos que falam delas e da multiplicidade de perfis e posturas na prostituição: Violência como “desrespeito da alma”; Violência como o que faz se sentir lixo; Violência como crueldade e doença de quem pratica; Violência como lei dos mais fortes; Violência como dificuldade de se impor; Violência como “acabar com uma parte e redescobrir outra”.

Ana acredita que falar da violência do lugar de expectadora, pois como ela batalhou apenas até os 22 anos ela diz não ter vivido agressões significativas. Hoje, há mais de 30 anos administrando bares na zona de prostituição, analisando tudo o que viu e ouviu acredita que a

violência “é um ato de covardia, crueldade, é você usar de uma força com alguém que tá podendo menos ali, é um desrespeito sabe, bem forte, bem fundo. É desrespeito na alma, na pessoa mesmo, no eu” (ANA, E1, 22/11/2013). Ela relata que viu muita gente “se diminuindo” diante da exposição e agressão sofrida na prostituição, apontando assim para uma construção negativa de autoconceito (FERNANDES et al., 2005). Esse desrespeito da alma seria a negação do outro e de sua capacidade de criação, sendo a violência assim um instrumento de manutenção do binômio dominação-opressão (CIDADE, MOURA JR, XIMENES, 2012).

A manutenção desse binômio seria perpetuação pelo que Góis (2008, p.53) chamou de Ideologia de Submissão e Resignação que é: “uma lógica de dominação ou sistema de ideias, valores, crenças, conhecimentos, atitudes, normas, leis, práticas sociais e institucionais que defina as condições e o modo coletivo de viver da classe oprimida” O autor está pensando a população oprimida e compreende essa ideologia como a instalação e reprodução de relações injustas e desiguais de poder.

Ana aponta que o fato das prostitutas conviverem com a violência cotidianamente, em diferentes situações, contribui para que se acostumem com aquilo, como se passasse a aceitar. Dessa forma, quando há o que Ana chama de costume, estamos falando da captação dessa relação para si, para o seu autoconceito. Assim, a própria crença em si e em sua capacidade de agir é posta em jogo, estando o desrespeito da alma ocupando esse lugar de acomodação diante da violência sofrida e a adoção do autoconceito negativo.

O sentido apontado a partir da experiência de Raquel também pode ser analisado à luz destas questões, pois ela, que fala do lugar de quem sofreu e sofre violências revela se sentir “Um lixo... um lixo! A pessoa já não tá bem e vem alguém e te joga lá para baixo. É muita humilhação mesmo, é você ser lixo, pior que sei lá o que” (RAQUEL, E2, 14/10/2013). Raquel revela sentir-se lixo porque para estar na prostituição abriu mão de muitas coisas e essa forma de ser tratada mexe profundamente com o que pensa sobre si, onde a cada nova exposição revive a sensação de culpa “mais uma vez. Você mesmo gosta”. A cada nova agressão é como se a ideologia fosse reforçada e entre um misto de sofrimento e culpabilização, acaba por aceitar essa condição, produzindo comportamentos e sentimentos que agravam tal sentido (GÓIS, 2008). Esse sentido de lixo acaba por ocultar a faceta social da violência, naturalizando-a em um problema ou uma questão dela.

O desrespeito na alma e o sentir-se lixo se encontram em meio a sentimentos de humilhação, vergonha, desmerecimento, gerando sofrimento. Tais sofrimentos são gestados em meio a situações de exclusão social, sendo de acordo com Sawaia (2011), um sofrimento

ético-político, por retratar “especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade” (SAWAIA, 2011, p. 108). Quando Ana diz que viu pessoas se diminuírem, com muita vergonha diante da agressão, e Raquel diz que é humilhação, elas estão falando de um sentimento de inferiorização.

La Taille (2004) conceitua a vergonha e a humilhação, como sentimentos distintos, ainda que empregados com sentidos próximos, onde a humilhação é identificada quando há alguma forma de violência que objetiva inferiorizar alguém ou um grupo, e a vergonha quando efetivamente a pessoa compartilha essa imagem negativa. Assim, na humilhação pode ou não ser aceita a imagem imposta, e na vergonha é compartilhada o sujeito negativo de si. Ana e Raquel usam esses sentimentos com sentidos contrários ao que La Taille (2004) teorizou, quando Ana diz que acha que as mulheres que sofrem violência sentem vergonha, diante do lugar de expectadora ela está supondo, logo ela assiste a tentativa de humilhar e inferiorizar o outro. Raquel, quando diz que se sente tocada e marcada pelo que os outros dizem dela, mais do que sendo humilhada, ela passa a sentir vergonha, já que ela mesmo relata que ouvir isso é reviver o peso de suas escolhas, aceitando de algum modo o peso de ser lixo.

Para Lú a violência é

[...] uma maldade, crueldade, é tipo uma sacanagem, bandidagem... eu penso que fazer o que certos homi faz com nos é doidice, só pode, só pode, só pode, porque tem que ser muito maluco para querer entrar em um quarto e bater em uma mulher para dor [doer]. Assim, Né bater gostosinho não, se é que me entende, é bater valendo, forte, deixar marca forte no bumbum, na perna, no braço, no rosto, já, já, já vi até deixar roxo na barriga. E eu te pergunto: como pode? Porque eu te juro, fia, que eu não sei, né não dona Ana? Depois só falam mais do cara lá de cima, tem muita gente pior aqui em baixo! Ai, ai, viu? (LÚ, DC 29, 06/11/2013).

Lú se emociona quando fala disso, terminando esta frase em lágrimas. Ela é uma mulher com o corpo muito marcado, marcas de diferentes agressões, seja durante programas com seus clientes, seja em briga com outras mulheres, seja quando está embreagada e leva algum tipo de queda. Como disse anteriormente, Lú possui uma profunda dificuldade em organizar suas ideias porque para ela é muito difícil se deixar falar. O campo afetivo envolve todo o processo de significação, e quanto mais difícil se dá o processo de nomeação, elaboração, as experiências ficam em um nível descritivo, difuso e muito pouco elaborado. Desse modo, quanto mais elaboramos e nomeamos as vivências, mais compreendemos o que sentimos e os contextos e relações que nos rodeiam (VALSINER, 2011).

Contudo, em meio a sua emoção fica entendido que o seu sentido sobre violência é permeado pela figura do agressor, supondo que para comportar-se de modo tão violento este

deve possuir algum tipo de doença psíquica. Lú toca em uma questão delicada quando nos propomos a pensar a violência contra a mulher: o papel ou o entendimento sobre o agressor. Lima e Mello (2012) questionam inicialmente porque se utilizar o termo agressor, quando se está discutindo sobre situações de crimes, devendo ser considerando assim os autores dos atos violentos como criminosos. Outra questão apontada é: prisão ou tratamento? Qual distância entre os encaminhamentos a serem dados?

Para os autores conspirar a possibilidade de tratamento psiquiátrico exclusivamente, e como saída óbvia, especialmente em caso de violência contra a mulher, é justificar de algum modo algum desajustamento psíquico que explique o fato, colocando nos aspectos psicológicos os porquês dessa violência. Seria uma legitimação ou uma flexibilização? Quando Lu constrói este sentido sobre violência ela questiona a saúde psíquica de quem a agrediu e parece não querer acreditar em modos de relações deste tipo. Contudo, Lima e Mello (2012, p. 6), apontam que “não é ‘tratamento”, mas sim uma reflexão capaz de questionar as relações de gênero que produzem a violência contra a mulher”, pois, para os autores, pensar sobre violência contra a mulher é pensar em relações violências e envolve desnaturalizar os papéis ocupados, tirando o homem do lugar de agressor e a mulher do lugar de vítima.

É interessante fazer um esforço para compreender que a lógica agressor-agredida; violentador-violentada compõe falsas polaridades de uma relação violenta. Quando observamos de um modo mais ampliado podemos perceber que tais polaridade podem ser analisadas de maneira integradas (ROSSETI-FERREIRA, 2004), visto que os lugares e os papeis são ocupados/atribuídos em meio às contradições ou oposições que compõe o fenômeno da violência, nesse caso da violência contra a mulher.

Pensando essa relação, apresento mais dois sentidos surgidos. Para Luana, a violência se baseia na Lei dos mais fortes, “você precisa se posicionar, ser firme, manter sua moral diante do outro, diante das garotas. Rola agressão, rola? Mas é preciso não deixar repetir mais, não ir mais com o cliente, aprender com o fato” (Luana, DC). Agir de modo mais impositivo, agressivo, no contexto compartilhado pela mulher é uma estratégia de sobrevivência, de garantir um lugar na prostituição, é a representação de pessoas que conseguem transitar e manter-se neste espaço.

São a partir das relações sociais e das interações que vamos delimitando, negociando, reformulando, recriando os papéis e os lugares que ocupamos ou queremos ocupar, em um processo em que transformamos os membros das interações e a nós mesmos (ROSSETI-

FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004). Assim, para Luana ela ganha ao ser violenta, visto que poderá não sentir-se inferiorizada ou envergonhada como trouxe Raquel e Ana.

Já Bia, que assim como Ana, é responsável por uma casa na zona, ela pontua que o problema da violência está na dificuldade de se impor, “tem mulher que parece que pede, que fica se humilhando por cliente, que aceita tudo sempre, que não sabe dizer não, que apanha e volta para o programa com a pessoa, não tem moral, entendeu?” (DC 9, 27/01/2013). Ouvi isso de Bia em uma das nossas primeiras conversas e ela falava isso, no tom impositivo de costume, do lugar da mãe de santo e da dona da casa. Progressivamente, fui aprendendo que Bia também falava isso do lugar de quem foi aprendendo a ser Bia ao longo dos anos na prostituição. Ela, em meio aos elementos contextuais da zona, ativamente no processo se forjou como a mulher forte e que impõe, e que questiona suas “meninas” quando não o fazem. Assim,

[...] não se pode pensar o contexto sem considerar as pessoas que dele participam e as interações que nele se estabelecem. Essas facetas não podem ser pensadas de forma desarticulada, separada, pois não existe contexto sem pessoas nem pessoas sem contexto, sendo que ambos se constituem reciprocamente (ROSSETI-FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004, p. 26).

Essa compreensão da relação entre contexto e pessoa é importante para porque se essa relação é dinâmica, esse sujeito e sua ação no mundo também o são. Fanon (1972 apud MARTÍN-BARÓ, 1998) ao pensar sobre a realidade de dominação psicológica do sujeito colonizado afirma que ela nunca é completa, pois ainda que o sujeito esteja dominado ele não é domesticado e mesmo inferiorizado não está por completo convencido de sua inferioridade. Ainda que em determinadas situações de violência Ana, Raquel, Lú, Luana e Bia possam aparentemente ser tomadas pelos sentidos compartilhados, no mesmo contexto da prostituição elas transitam por diferentes posicionamentos e lugares.

Mesmo que possa existir uma negação do potencial de vida, Sawaia (2009) considera que há existência de uma reação cotidiana e criativa que faz do ser humano um ser em expansão capaz de transformar as significações hegemônicas e buscar sua superação e reconhecimento. Essa potência de vida surge da capacidade de subverter e de se reinventar. Nati, mais uma vez, mostra fragmentos de suas histórias que demostram essa capacidade de recomeçar, quando narra sua relação com um italiano que inicialmente era seu cliente e passou a ser companheiro há 5 anos atrás. Ela conta que ele tratou a ela e as filhas muito bem, pouco a pouco começou a constantemente a agredir verbalmente e a destratar suas filhas, diante disso ameaçou sair de casa. Ele não aceitou, usando como justificativa o amor e o apego à família, com o tempo já não aceitava conversar. A partir dai as agressões ficaram

mais constantes e ele passou a agredi-la fisicamente, tentando em uma das vezes lhe matar sufocada – tendo necessidade neste fato de ter a intervenção do vizinho. As cenas de agressões continuaram até o dia que conseguiu fugir da casa, nesse período já estava sob cárcere privado, e foi ameada mais diretamente de morte.

Por um tempo, deixou de ir a boate na praia de Iracema e depois de quase dois meses decidiu retomar porque tinha acabado com a reserva de dinheiro,

[...] nunca esqueci ele dizer: ‘eu vou te achar, não se esqueça’, e ele realmente me achou. Em uma noite, quase fim da noite, quando eu estou tomando uma em um bar da P.I. avisto aquele homem alto me sacando. Lorena, nem precisei olhar eu senti que era ele. Avisei a uma colega que precisava de ajudar para sair dali e já senti ele se direcionando a porta. Chamei um segurança amigo meu, o Emilio saiu e eu esperei um tempo para sair. Só que eu tremia de medo e eu sabia que não conseguiria sair dali. Apertava os braços do cara. Resultado, quando a gente saiu correndo, era perto da boate la, e ta chegando do outro lado da rua só vejo o sonzão de motor em minha direção. Ele ia nos atropelar se a gente não corresse. Ele parou e vinha me pegar, só que la todo mundo me conhece e foram para cima dele.

No outro dia, ela relata que ele deixou uma mensagem em sua página do facebook dizendo que “sabia que meus planos era ficar com você e com suas filhas, elas dariam umas putinhas lindas, e depois de tirar muito dinheiro de você, te mataria e ficava com elas” (NATI, E2, 6/12/2013). Após relatar o caso, ela revelou que pensou que iria morrer inúmeras vezes enquanto estava com ele, mas que ler aquilo teria a machucado profundamente, “é como se uma parte de mim tivesse se acabado”, dizia. Contudo, em outro momento quando faz um balanço de sua vida e das coisas que aprendeu diz “eu olho para as coisas e dou gloria, pois sou guerreira, dei a voltar por cima, superei. Tenho meus problemas, minhas depressão, tomo meus remédio, mas eu me superei, tenho um noivo, amo uma pessoa, tô bonita, feliz” (NATI, E2, 6/12/2013).

O sentido de violência como “acabar com uma parte de si e redescobrir outra” é essa capacidade de resistência, de formas de enfrentamento, de resiliência, de adaptação por parte dos sujeitos em meio a situações adversas (SAWAIA, 2009). Ainda que reconheça o quanto ficou impactada com a vivência da situação de violência, requisitando ter um acompanhamento sistemático e longitudinal, ela reconhece que não paralisou para a vida e percebe ter se superado por retomar relações amorosas e por ter resgatado a crença em si e a vontade de viver.