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Com ou sem calça jeans? Sobre ser mulher e pesquisadora tendo a zona como campo de pesquisa13.

Esse questionamento me acompanhou por boa parte do campo. Com ou sem calça jeans? Por traz desse questionamento estavam tantos outros: tentar parecer “nativa” e menos “estrangeira” no campo de pesquisa? Tentar me associar à equipe de saúde que transita pelo território? Afinal só eu, as profissionais da área de saúde usavam calças jeans – exceto as ACS, que como também moram no lugar, variava muito mais os tipos de roupa. As moradoras só utilizavam calça quando tinham algum compromisso muito sério no centro da cidade, fora isso, shorts e saias eram seus trajes. Não havia sentido algum usar jeans em um lugar tão quente e ensolarado, mas outras questões também se faziam presente nessa dúvida que se tornou escolha: Usei o jeans!

Por que eu queria garantir uma [pseudo]segurança ao transitar pela zona? Por que evitar mostrar meu corpo? A dúvida de que roupa usar revela um receio/ insegurança pessoal diante dos locais percorridos. E a questão não era as características do bairro... Afinal, sempre trabalhei em comunidades pobres e minha insegurança nunca era a roupa que eu usava. Eu chegava como “a tia que fazia um trabalho legal” ou “a Psicóloga do projeto ou do posto” (nesse caso psicóloga com P maiúsculo por conta do lugar social ocupado). Sempre entrei e sair com muita tranquilidade em diferentes horários confiante com a segurança da rede de apoio e dos locais que circulava.

A questão estava no fato de ser um lugar desconhecido e de eu não ser familiarizada com os códigos daquela Zona. Quem já esteve nesses lugares sabe que andar por esse território é ser olhar-vigiada, olhada-desejada, ouvir cantadas e sussurros, sentir em alguns locais uma ansiedade e frio na barriga quando alguém se aproximava. Também é ser abordada, tocada e receber proposta. Em Salvador já tinha vivido isso, mas confesso que a vinculação com as mulheres me blindava, “não toca nela não, deixa ela em paz, blábláblá”. Eu já comecei a atuação com a marca de ser educadora do projeto, antes de eu chegar na Zona, já tinha chegado o cargo que eu ocupava e a vinculação que o projeto tinha no território a mais de 15 anos. Lembrando-me disso hoje já não sinto a raiva que sentia quando elas me demarcavam em lugar bem específico – um não-lugar da prostituição, pode-se dizer.

Nas duas primeiras vezes que fui só em um ponto específico na Barra do Ceará me vi muito incomodada com os toques e olhares, e percebi que precisava mediar isso de um modo mais tranquilo, pois afastar os clientes delas poderia por em risco toda tentativa de vinculação.

13 Fiquei em dúvida se colocaria essa reflexão na dissertação. Porém, hoje aconteceu algo que me fez trazer para o texto essas questões. Recebi uma série de e-mails de alguém afirmando ter encontrado meu contato na internet e querendo saber se eu fazia programa ou trabalhava com isso. Pensei em responder, tanto para dar uma resposta tão agressiva quanto o conteúdo do texto ou para problematizar os sentidos e significados da prostituição com a/o cliente. Não respondi, além de estar sem tempo, não quis alimentar o fetiche de quem escreveu, mas fiquei pensando como o estigma da puta pega seja lá qual for sua aproximação com o tema e/ou prática e como as pessoas acham-se no direito de investir e ou apalpar o corpo alheio, principalmente se for de mulher. As estatísticas e as vivências estão aí...

Como não tinha ninguém para anunciar “ela não é puta”, me vi optando por usar calça jeans, evitar circular a noite só e blindar meu corpo de uma exposição maior. O fato da Zona está em um território marcado por muitos conflitos por poder entre o tráfico intensificava esse receio... O lugar que o corpo da mulher ocupa na nossa sociedade suscitava essas questões: tá na pista é pra balanço! Não posso negar que me via sim mais exposta por ser mulher ali e sentia sim receio em entrar só em alguns bares e/ou percorrer sozinha à noite o trajeto até o ponto de ônibus. Mesmo com medo, sempre fui, mas com alguns “cuidados”... Só fui à noite acompanhada de algum ACS e depois quando ia diretamente para a casa de massagem. Fora isso, ia de dia... a luz do dia compôs o look proteção junto com o Jeans.

E isso foi ficando muito claro no meu processo reflexivo-analítico de campo. Decidir usar jeans, mesmo sabendo que isso demarcava um posicionamento e um afastamento. Isso, infelizmente, principalmente nos primeiros momentos de visita, fazia com que houvesse silêncio com minha chegada ou afastamento de algumas mulheres. Porém, progressivamente isso foi se revertendo a partir da nossa vinculação – a calça era só mais um símbolo das nossas distâncias socioeconômicas (tipos de roupa e necessidade de manter algum status), e isso não fechada nossas chances de conversa.

Na “necessidade” de eu ter que usar o jeans nós nos encontrávamos. Ao investigar violência contra a mulher eu sentia o receio de ser vítima. Afinal, nossos corpos estavam em jogo naquele território. Elas sabiam do meu receio e da minha exposição. Elas sabiam muito melhor do que eu transitar, chegar, sair, ousar, aceitar, negar. Eu não! Logo, precisei me blindar. Elas foram me dando dica das melhores horas para chegar, das ruas que deveria pegar, dos clientes que eu deveria me afastar ou me aproximar. Pelo menos na nossa relação o jeans foi deixando de ser uma barreira, era uma diferença, mas não um distanciamento como no inicio. O que até hoje não aprendi muito foi lidar tão bem com o meu corpo, com tanta segurança como elas lidavam... Não era o jeans que as blindavam de algum tipo de violência ou à distanciavam das pessoas, era a postura, a segurança do que queriam e do que permitiam – por isso, ao menos queria o título de não puta. Receios e inseguranças nós sentíamos, mas o meu limiar de incômodo e violação era bem menor.

Por um tempo senti raiva por perceber a distância! Por um tempo quis negar que ela não existia! Por fim, parei de tentar me explicar demais. Usei meu jeans sem tanta neura e passei a respeitar, admirar e lutar cada vez mais pelo direito daquelas mulheres em serem donas e seguras dos seus corpos. E talvez tenha sido isso que me fez hoje não ter receio de entrar e sair da Barra e daquelas zonas... e decidir colocar estas palavras na dissertação.

Lorena Brito da Silva, Fortaleza, 25 de abril de 2014.

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