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2.4.2 As sociedades pré-históricas do litoral: modelos e características

A partir do Tardi-Glaciar (14 000-10 000 BP), o clima torna-se um elemento preponderante nas estratégias económicas por parte da humanidade, a nível das explorações territoriais que se traduzirá em importantes reflexos na cultura material, destacando-se como forma de adaptação à mudança climática, a microlitização patente no último tecno-complexo do Paleolítico Superior, o Magdalenense, que visava uma caça recolecção rápida com elementos materiais de fácil transporte. Contudo, esta teoria tem sofrido alguma contestação, porque recentes estudos (Luiz Oosterbek, informação pessoal) no Alto Ribatejo (Centro de Portugal) têm revelado que algumas indústrias macrolíticas atribuídas ao Epipaleolítico/Mesolítico são na verdade indústrias do Paleolítico Superior Final.

Com isto, é sabido que junto à linha de costa ou nas suas imediações, em regiões como a Península de Setúbal, Alentejo e Algarve, não existe uma matriz de povoamento litoral bem caracterizada da última fase paleolítica e, em certas regiões, essa ocupação, é praticamente desconhecida. “ (…) apresentam [no caso do Algarve] uma ruptura clara

com os sítios do Paleolítico Superior. No que concerne à localização dos sítios

arqueológicos, a sua implantação é muito mais próxima da linha costeira actual do que

no Paleolítico Superior” (Bicho, 2006b, pág.20).

“O Paleolítico Superior não foi até agora identificado de forma inequívoca nem na

Península de Setúbal, nem no Alentejo Litoral. Escassos vestígios, principalmente

encontrados no Cabo de Sines, são atribuíveis a esse período com muitas reservas”

(Silva e Soares, 2006, pág.16).

Desta forma, é na transição para o Holocénico que essa matriz (povoamento) se começa a definir. Surgem (ou ressurgem) no Epipaleolítico Antigo (11 000 BP), correspondente à zonação polínica, Dryas recente (III), os primeiros sítios com

39 características costeiras, visando um processo económico de exploração de recursos aquáticos. O concheiro da Pedra do Patacho (Soares e Silva, 1993), situado na margem Norte do Rio Mira, Vila Nova de Mil Fontes, é um exemplo clássico, destacando-se um nível conquífero que se estende ao longo da arriba, provavelmente inserido em regime de exploração sazonal por parte das comunidades, devido à baixa densidade de artefactos, fundamentalmente macrolíticos e expeditos (Silva e Soares, 2003, p.47), bem como ausência de outras espécies faunísticas, mais especificamente de mamíferos.

A nível artefactual, as sociedades demonstram preferência por cadeias operatórias macrolíticas (uso expedito), no entanto, esta preferência não é exclusiva aos grupos epipaleolíticos. Em variados sítios, não só no Alentejo Litoral, verifica-se igualmente cadeias operatórias microlíticas (uso intensivo) que, a par do último sistema, constituem a base da sua tecnologia, misturando-se e interligando-se em vários contextos ao longo do litoral. De facto, ao referirmo-nos apenas à microlitização, sente- se uma evolução lítica com um substrato no Paleolítico Superior Final, facto evidenciado por Roche (1960) e por Silva e Soares (2003, p.46) “ (…) O subsistema

tecnológico uso-intensivo prolonga claramente as tradições tecnológicas do

Paleolítico Superior, sendo difícil, na ausência de informação complementar, datar tais

conjuntos líticos (…)”

Consequentemente, no Alentejo Litoral e Península de Setúbal e mesmo no Algarve, à medida que nos aproximamos do Mesolítico (correspondente às zonações polínicas, Pré-boreal 10 000-8 500 BP e Boreal 8 500-7 500 BP), a matriz de povoamento começa a definir-se com maior clareza, pois, começam a surgir uma maior quantidade de ocupações litorais, todas elas preferindo zonas arenosas, nas imediações costeiras, com proximidade de linhas de água (Silva e Soares, 2003, p.46). Com estas características destacam-se os seguintes sítios: Casal do Mocinho, Sesimbra (Silva e

40 Soares, 1986); Cabo de Sines (Roche, 1960); Oliveirinha (Sines); Espigão, Aivados, Praia dos Nascedios (Odemira); Palheirões do Alegra (Vierra, 1992; Raposo, 1994, 1997); Castelejo (níveis inferiores) (Silva e Soares, 1997), etc.

No Mesolítico (zonação polínica, Atlântico 7 500 a 6 500 BP) a consolidação da matriz litoral (v.fig.16) intensifica-se muito mais, na faixa sul e litoral do actual território português. Do ponto de vista da implementação humana, verifica-se nas referenciadas regiões litorais, uma continuação preferencial com raízes na fase anterior, ou seja, locais de base arenosa junto à vertente litoral.

Desta forma, os trabalhos arqueológicos (arqueologia de salvamento, a cargo do Gabinete da Área de Sines) efectuados caracterizaram 2 sistemas económicos:

1. Uma nova forma de abordar o espaço - os acampamentos base - que podiam ser ocupados todo o ano, ex: Samouqueira (sobre a arriba, a norte de Porto Corvo); Vale Marim (sobre a arriba, a norte de S. Torpes, Sines); Fiais, Odemira (o concheiro mais interior a cerca de 10km da costa, num afluente do mira). Estes sítios do Alentejo Litoral, de largo espectro, revelaram espólios faunísticos em que as espécies detectadas estavam unicamente relacionadas com a caça, a pesca e a recolecção de marisco (Soares, 1995; Silva et al., 1985; Vierra, 1992). Contudo, surge uma nova componente, ou seja, a integração funerária nos estabelecimentos (ex. Fiais) que sugerem a hipótese de crescentes índices de sociabilidade e territorialidade (Silva e Soares, 2006, p.21) 2. A continuação das fixações esporádicas (constituindo alguns enormes palimpsestos), onde se intensifica a recolecção de recursos marinhos/ou estuarinos, bem como de matérias-primas, não estando presentes fauna mamalocológica, ornitológica e ictiológica. De facto, este último sistema logístico está muito mais relacionado com a área algarvia, pois na região referida ainda não se conhecem sítios de carácter residencial, podendo, estes últimos, estarem localizados no interior do território, como

41 parece indicar os resultados de uma análise isotópica de um molar humano encontrado em Vale do Boi, datado de cerca de 7.500 BP, evidenciando uma dieta alimentar em recursos terrestres e marinhos (Bicho, 2006b, pág.21). Com estas características, destacam-se os seguintes sítios, relacionados com a exploração de marisqueio (1, 2, 3) e com a exploração das matérias-primas locais (4,5,6): 1.Barrando das Quebradas (I, III, e IV); 2.Montes de Baixo (Odeceixe); 3.Castelejo (Vila do Bispo); 4.Armação Nova (Cabo S. Vicente); 5.Rocha das Gaivotas; Castelejo (níveis superiores).

A nível artefactual, continuam as sociedades nas regiões já mencionadas a efectuarem cadeias operatórias mistas, todavia, é na zona do Alentejo litoral, onde se destaca em maior quantidade a utensilagem geométrica, fundamentalmente rica em trapézios elaboradas em rochas de boa manufactura, como é o caso do sílex, como outras rochas siliciosas.

Figura 16 - Intensificação do povoamento no litoral sul português a partir do fim da última glaciação (segundo Soares, 1992, p.34; Bicho et al., 2000)

Legenda:

A. Epipaleolítico: 1 – Casal do Mocinho (Sesimbra); 2 – Cabo de Sines; 3 – Pedra do Patacho (Vila Nova de Mil Fontes); 4 – Palheirões do Alegra; 5 – Castelejo;

B. Mesolítico: 1 – Vale Marim (Sines) 2 – Samouqueira I (Porto Corvo); 3 – Vidigal (Porto Corvo); 4 – Fiais (Odemira); 5 – Montes de Baixo (Odeceixe); 6 - Barranco das Quebradas I e II; 7 – Castelejo (Vila do Bispo); 8 – Armação Nova/Rocha da Gaivota (Cabo S.Vicente);

42 No Algarve, apesar das cadeias operatórias evidenciarem os mesmos procedimentos que o Alentejo Litoral (a macrolítica, sobre rochas de origem local; e microlítica, para a produção de suportes lamelares) verifica-se que os geométricos são bastante escassos. Segundo Bicho (2006b, pág.21), a praticamente ausência de geométricos, relaciona-se com o facto de estes terem sido transportados para os locais de largo espectro que se situam provavelmente um pouco mais no interior do território algarvio.

O Neolítico Antigo, no Alentejo Litoral e no Algarve (v.fig.17), continua com as mesmas estratégias de implantação de habitat em zonas de proximidade com a linha de costa, frequentemente sobre as arribas litorais em locais arenosos.

Os acampamentos identificados nas duas últimas regiões dividem-se, tal como no período antecessor, de largo espectro ex. Vale Pincel, Sines (Soares e Silva, 1981) e de curto espectro ex. Medo Tojeiro, Almograve (Silva, et al., 1985), onde a recolecção

Figura 17 - Sítios arqueológicos do litoral sul de Portugal, correspondentes ao Neolítico Antigo Pleno e Evolucionado (adaptado de Soares, 1997, p.589)

Legenda:

C . Neolítico Antigo Pleno e Evolucionado : 1. Gaio (Moita); 2 – Casal da Cerca (Palmela); 3 – Fonte de Sesimbra (Sesimbra); 4 – Lapa do Fumo e Pinheirinhos (Sesimbra); 5 – Vale Pincel I (Sines); 6 – Oliveirinha (Sines); 7 – Samouqueira II (Sines); 8 – Vale Vistoso (Sines); 9 – Galés (Vila Nova de Mil Fontes); 10 – Água da Moita (Vila Nova de Mil Fontes); 11 – Medo Tojero (Almogreve); 12 – Castelejo; 13 – Vale Santo I (Vila do Bispo); 14 – Cabranosa (Vila do Bispo); 15 – Padrão I (Vila do Bispo); 16 - Gruta de Ibn Amar (Estombar); 17 Caramujeira I (Lagoa);

43 de moluscos constituía, ainda, importante fonte da dieta alimentar por parte das sociedades.

Desta forma, verifica-se a inexistência de espécies domésticas, fundamentalmente nos acampamentos de largo espectro, bem como são raros os elementos que potenciam a prática da agricultura. A grande excepção trata-se das estações da Cabranosa, Padrão e Vale do Boi, onde se detectaram um conjunto de espécies já domesticadas (ovinos, caprinos e bovinos). Os dois primeiros sítios, atrás referidos, inserem-se numa problemática relacionada com a chegada de povos exógenos provenientes do mediterrâneo.

Com isto, desenvolve- se a tese difusionista (Zilhão 1992, 1993, 1997a) inspirada no Modelo A de Arnaud (1982), relativamente à questão das relações entre as primeiras comunidades de agricultores com as ultimas sociedades de caçadores recolectores. Segundo este postulado, a origem do Neolítico,

relaciona-se com a chegada de colonos por via marítima que se instalaram em dois pólos de origem calcária: a Estremadura e o Algarve, regiões muito parecidas com os ambientes originais desses povos exógenos, a Norte e a Sul de zonas mais povoadas pelas comunidades mesolíticas (Zillhão, 1998, p.29); terão sido estas populações que trouxeram o chamado pacote Neolítico (v. fig.18) (cerâmica cardial, a agricultura e a Figura 18 – Vaso de colo apertado com decoração cardial, proveniente da estação do Neolítico Antigo Pleno da Cabranosa (Adaptado de Carvalho e Cardoso, 2003, p.29)

44 domesticação), sendo que as cerâmicas cardiais apresentam paralelos com algumas estações da Andaluzia Oriental (Cariguela) ou de Valência (Cova d’Or e Cedres), onde o mesmo processo de colonização terá ocorrido (A. Figueiredo, 2006 vol.1, p.102) (v.fig.19).

Figura 19 – A Europa das primeiras comunidades Neolíticas, VII-VI milénio a.C. (adaptado de J. Guilaine, 1997, p.23).

Posto isto, os defensores desta tese referem que, nas zonas estuarianas (Sado, Tejo e Mira), as sociedades autóctones, detentoras de práticas económicas baseadas na caça, pesca e recolecção, terão sido absorvidas pelas comunidades neolíticas (Zilhão, 1998, p.42). Desta forma, por volta do VI milénio a.C., o território actualmente português era ocupado por povos distintos que viriam a homogeneizar-se no chamado Neolítico Epicardial. João Zilhão o maior defensor deste postulado, propõe mesmo a diferenciação das comunidades do Neolítico Antigo pela presença de um factor tecnológico – a cerâmica cardial (in A. Figueiredo, 2006 vol.1, p.102).

Todas as outras estações com a presença ou ausência de cerâmica, eventualmente impressas, denominam como de mesolíticas. Como prova (Zilhão, 1998, p.40-41), refere: (1) descontinuidade observada na cultura material, em alguns casos com pendentes (sobre canino de veados), característicos do cardial da cova d L’Or; (2)

45 As rupturas dos rituais de enterramento; (3) as diferenças nas dietas das populações; (4) diferenças na Antropologia Física (diminuição do tamanho dos dentes); etc.

Em sintonia com Zilhão, mas apenas para o caso do Algarve, João Luís Cardoso e António Faustino Carvalho, referem que há uma ruptura significativa na passagem para o Neolítico, só explicada pela introdução de elementos alógenos. Como elementos de descontinuidade referem: (1) a inexistência de restos de animais domésticos (Alentejo e Algarve), com a excepção da Cabranosa e Padrão; (2) a tipologia cerâmica observada (Cabranosa e Padrão) apresenta paralelos com as estações da Estremadura; (3) a presença de tratamento térmico na indústria lítica e o recurso ao talhe por pressão/ou percussão indirecta que parece estar ausente nas estações mesolíticas (Cardoso e Carvalho, 2003, p.40-41).

Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva (2006, p.22) defendem que a origem do Neolítico se processou baseado em factores demográficos e desequilíbrios ecológicos, adoptando as comunidades, progressivamente, novos elementos tecnológicos. Esse primeiro elemento terá sido a tecnologia cerâmica, onde as comunidades mesolíticas começam a utilizar cerâmica lisa ou impressa, mas não alterando drasticamente o modo de vida dominante.

Luís Oosterbeek (1994, in A. Figueiredo, 2006, vol.1 p.106.), defende um modelo multilinear em que as sociedades conectadas em rede partilham soluções pragmáticas, ou seja, desenvolvem estratégias e soluções socio-políticas que lhes permitem adoptar mecanismos de relação eficazes no dia-a-dia. Nesta visão, as estações interagem recebendo inputs externos que traduzem ecos de inovações vindas do Alentejo, Estremadura, Sudoeste, Espanha e Mediterrâneo, sendo que, como qualquer eco, este pode ser distorcido ou rejeitado pela comunidade que o adopta.

46 Nuno Bicho (2003, p.20-21) refere que o modelo de Zilhão para o caso do Algarve, não se adapta à informação existente, mencionando que houve pelo menos alguma continuidade entre as populações mesolíticas e neolíticas locais: a nível da localização e tipo de sítios; do ponto de vista económico e dos recursos naturais. Salientando, ainda, o modelo de Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva, ou seja, da continuidade evolucionária regional destas sociedades, como aquele que se enquadra melhor para a área em apreço.

A nível artefactual segundo Joaquina Soares para os campos de base (1997, p.599) o Neolítico Antigo Pleno situado, segundo a autora, na primeira metade do VI milénio cal BC, é caracterizado

(através dos trabalhos arqueológicos em Vale Pincel, Samouqueira II, Cabranosa) pelo talhe lamelar, ou uso intensivo. A cerâmica apresenta pastas grosseiras, pouco compactas, paredes espessas e decoração (muito frequente) impressa, alguma cardial (na Cabranosa

atinge os 20%) e a maioria obtida a punção actuado obliquamente; dominam as taças em calote de esfera e formas em saco, esféricos altos.

O Neolítico Antigo Evolucionado situado entre finais do VI milénio e a primeira metade do V milénio cal BC (Soares, 1997, p. 592-593) caracteriza-se nos campos de base no litoral sul português, ao contrário da fase neolítica antecessora, por uma produção essencialmente de lascas. Por outro lado, a autora refere (Idem, 1997, p.592- 593) que é durante esta fase que começa a haver um processo de desestruturação da tradição mesolítica, mas ainda presente elementos que atestam essa continuidade,

Figura 20 – Cerâmica incisa e impressa do habitat do Neolítico Antigo Evolucionado do Gaio, Moita (adaptado de Soares et al., 2004)

47 nomeadamente micro-buris e geométricos. Não menos importante, trata-se do

“aparecimento de lâminas estreitas que irão tornar-se frequentes no Neolítico Médio e

Final” (Soares, 1997, p.592-593) – ou seja o talhe por pressão. As cerâmicas são menos

compactas e as paredes dos recipientes menos espessas; a decoração impressa, plástica e incisa (v.fig.20) é mais rica e variada; a decoração cardial pode sobreviver durante esta fase (Soares, 1997, p.592-593).

Segundo Silva (1997, p.578) é no Neolítico Antigo Evolucionado que a ocupação do interior torna-se muito mais relevante, apesar do padrão locativo ser basicamente o mesmo do Neolítico Antigo Pleno, o que pode corresponder a um maior controlo das técnicas agrícolas, com a exploração de solos mais férteis.