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As tendências do trabalho no capitalismo contemporâneo e os desafios para a periferia

Capítulo 2: Emprego, consumo, flexibilização e dinâmica sindical nos governos petistas

2.1 As tendências do trabalho no capitalismo contemporâneo e os desafios para a periferia

 

Durante o século XX, a perspectiva relacional46 baseada na busca do catching-up ou “alcançamento” da estrutura produtiva dos países centrais informou o período desenvolvimentista (1930-1980) no Brasil. Essa perspectiva alicerçava-se na ideia de que a industrialização permitiria que os países atrasados alcançassem o nível de desenvolvimento econômico e social dos países centrais. Já a regulação pública do trabalho, tal como lá ocorreu, se tornaria parte constitutiva de um processo virtuoso de homogeneização dos empregos gerados, refletindo na diminuição das diferenças de renda do trabalho e estilos de vida dos trabalhadores.

Outros, foram, entretanto, os destinos da nação. As mazelas de um capitalismo tardio no Brasil (MELLO, 2009) trataram de mostrar que o “crescimento econômico e as relações entre as classes sociais guardavam um semelhança apenas formal com aquelas observadas nos países desenvolvidos” (MELLO; NOVAES, 2009, p. 69):

As desigualdades relativas em termos de renda e riqueza eram muitíssimo maiores no Brasil. A dinâmica econômica e social se apoiou continuamente, de um lado, na concorrência desregulada entre os trabalhadores, e, de outro, na monopolização das oportunidades de vida pelos situados no cimo da sociedade (MELLO; NOVAES, 2009, p. 69).

A despeito de a indústria nacional ter logrado consolidar a instalação de setores tecnologicamente mais avançados e de as variações na estrutura social terem proporcionado a sensação de uma melhora na qualidade de vida da população brasileira (MELLO; NOVAES,       

46 Debater as possibilidades do desenvolvimento nacional numa perspectiva relacional é um movimento de comparação progressiva que remete ao século XVIII e à ideia de Progresso que prosperou e se enriqueceu no século seguinte. Segundo Koselleck (2006), “um impulso constante para a comparação progressiva proveio da observação de que os povos, estados, continentes, ciências, corporações ou classes estavam adiantados uns em relação aos outros, de modo que por fim – desde o século XVIII – pode ser formulado o postulado da aceleração ou – por parte dos que haviam ficado para trás – o de alcançar ou ultrapassar. Esta experiência básica do ‘progresso’, que pode ser concebida por volta de 1800, tem raízes no conhecimento do anacrônico que ocorre em um tempo cronologicamente idêntico (KOSELLECK, 2006, p. 284–285).

2009), consolidou-se no Brasil um regime fluido de relações de trabalho. Apesar do extraordinário avanço do assalariamento entre 1940 e 1980 e da existência de um modelo de relações de trabalho com ampla legislação47, este regime é marcado por um elevado excedente estrutural de força de trabalho, uma forte instabilidade no emprego, um baixo nível dos salários, uma grande diferenciação no leque de remunerações, além de alta informalidade, heterogeneidade e rotatividade. Nesse mercado de trabalho desorganizado (SILVA, 1991), o livre arbítrio dos empregadores em estabelecer as condições de uso, contratação e remuneração da mão-de-obra é um elemento adicional que atribui ao mercado de trabalho brasileiro um caráter flexível, o que aliado às supracitadas características estabelece uma concorrência predatória entre os trabalhadores (BALTAR; PRONI, 1996; BARBOSA DE OLIVEIRA, 1998; KREIN, 2013).

Essas características históricas se cruzam com os novas tendências que o capitalismo contemporâneo impõe ao trabalho no século XXI. Desde os anos 1970, as alterações no modo de acumulação do capital sob a hegemonia da globalização financeira têm reservado possibilidades, de partida, mais limitadas no que tange ao desenvolvimento econômico, à estruturação do mercado de trabalho e sua regulação na periferia latino-americana. Neste sentido, a compreensão da evolução do mercado e das relações de trabalho nos governos do PT passa pelas características históricas de um país de capitalismo periférico que não conseguiu estruturar seu mercado de trabalho. Ela se relaciona, também, com as consequências de uma inserção subordinada à globalização financeira, a partir da adoção do ideário neoliberal e de políticas econômicas ortodoxas que atendem a uma agenda flexibilizadora no campo das relações de trabalho e à redução da proteção social aos assalariados.

A construção política de uma finança global alterou o antigo modelo de concorrência das empresas que correspondia a uma estrutura organizacional burocrática e rigidamente hierárquica. Conforme Belluzzo (2013), o padrão financeirizado de acumulação do capital permitiu uma nova etapa de “centralização” da propriedade mediante a escalada dos negócios de fusões e aquisições e a terceirização das funções consideradas não essenciais ao core business das empresas. Além disso, no processo de valorização dos títulos em geral independente do capital produtivo, a acumulação financeira passou a ser uma fonte de rentabilidade das empresas em detrimento do enriquecimento proveniente da demanda efetiva.

      

47 Cardoso (2003) e Noronha (1998) definem o modelo brasileiro como legislado, dada a predominância da regulamentação estatal.

Assim, a capacidade de investimento produtivo de longo prazo passa a se concretizar somente diante de uma violenta redução dos custos correntes, dentre eles os gastos com mão-de- obra, acentuando a tendência de precarização dos postos que permanecem e debilitando a força dos sindicatos. Esta tendência aponta para um cenário de dificuldades para a realização do pleno emprego, para a sobrevivência dos direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência e para a criação de ocupações com proteção, não somente nos países periféricos, mas também nos países que outrora viveram a experiência histórica mais bem sucedida do desenvolvimento capitalista (RODGERS, 1989; KALLEBERG, 2011; OIT, 2015; BELLUZZO; GALÍPOLO, 2017) 48.

A produção de bens e serviços em escala internacional impactou a distribuição global da produção e também trouxe consequências aos mercados de trabalho nacionais. A Ásia se tornou produtora de manufaturas baratas, conformando uma grande área manufatureira e importadora de matérias-primas, que pulsa em torno da China. O Brasil e a América Latina ficaram praticamente à margem do processo de reestruturação das cadeias globais de valor. Ao Brasil coube, predominantemente, os fluxos de capital financeiro. No âmbito produtivo, o país possui uma participação marginal nas cadeias globais de valor o que se reflete na especialização regressiva da indústria nacional cuja principal característica é a ampliação do peso dos setores intensivos em recursos naturais e uma perda de importância dos segmentos de maior intensidade tecnológica (BELLUZZO, 2013; AREND, 2014; CARNEIRO, 2017).

Do ponto de vista do emprego esse processo implica a perda de participação relativa de ocupações na indústria de transformação com o deslocamento de empregos das grandes empresas industriais para estabelecimentos menores, e o aumento da participação relativa dos empregos nos setores de comércio e em serviços de apoio às empresas e nas atividades sociais do tipo educação, saúde, previdência e assistência social (BALTAR; KREIN, 2013).

As consequências de uma lógica de acumulação dominada pelo capital financeiro, com uma produção de bens e serviços mais internacionalizada pressiona, também, os padrões de       

48 Segundo Belluzzo (2013), mesmo os países industrializados inseridos no processo de redefinição das fronteiras de acumulação do capital apresentam desafios ao mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo. Esse é o caso da economia norte-americana que hoje acena para uma nova rodada de inovações classificadas como poupadoras de mão de obra. Os novos métodos de produção (nanotecnologia, neurociência, biotecnologia) são destinados “a aumentar a produtividade social do trabalho em escala crescente”, tornando o “trabalho imediato cada
vez mais redundante” (BELLUZZO, 2013, p. 10). Para uma amostra de como o capital interpreta os desafios impostos ao trabalho no século XXI ver World Economic Forum (2016).

regulação do trabalho na direção da flexibilização das relações laborais e da diminuição da proteção social (BALTAR; KREIN, 2013). Segundo os autores:

A globalização financeira e a internacionalização da produção de bens e serviços estão no cerne das transformações contemporâneas no capitalismo. A organização da produção se modificou com tendência à descentralização e flexibilização do trabalho. O quadro político gestado pela predominância do neoliberalismo, não somente promoveu essas mudanças, mas também ajudou a ampliar o impacto desfavorável na regulação pública do trabalho, que, em vez de moldar as mudanças de maneira a evitar a precarização das relações de emprego, reforçou esses efeitos, apoiando a liberdade de ação dos empregadores para se adaptarem ao ambiente de acirramento da competição (BALTAR; KREIN, 2013, p. 289).

As transformações no padrão de uso, contratação e remuneração da força de trabalho estão atreladas também, como apontou Belluzzo (2013), às mudanças na forma de organização das empresas, tendo em vista a disseminação dos processos de terceirização e subcontratação com consequências sobre as características que passam a ser exigidas dos trabalhadores, como a polivalência e a qualificação permanente. Para Boltanski e Chiapello (2009) trata-se de uma transição, a partir dos anos 1970, que marcou uma dinâmica de construção de um novo espírito do capitalismo baseado na busca pela colaboração dos assalariados para a realização do lucro capitalista por intermédio – não mais “da integração coletiva e política dos trabalhadores na ordem social e por meio de uma forma do espírito do capitalismo que unia o progresso econômico e tecnológico a uma visão de justiça social” – mas por meio do “desenvolvimento de um projeto de autorrealização que vincula, por um lado, o culto ao desempenho individual e exaltação da mobilidade e, por outro, concepções reticulares do vínculo social” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 239).

A pressão sobre os sistemas de regulação do trabalho não se encontra somente na esfera empresarial, mas também diz respeito às mudanças na natureza da intervenção estatal. Segundo Dardot e Laval (2016), se durante o keynesianismo essas intervenções obedeciam aos princípios de solidariedade, compartilhamento e respeito a tradições, no neoliberalismo elas compõem uma nova ordem que visa a estender a inserção do mercado, inclusive sobre a vida social, mediante certas políticas públicas que vêm proteger e apoiar o desenvolvimento das empresas capitalistas. A intervenção do Estado tem assim, um sentido contrário ao período anterior: “trata-se não de limitar o mercado por uma ação de correção ou compensação do Estado, mas de desenvolver e purificar o mercado concorrencial por um enquadramento jurídico cuidadosamente ajustado” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 69). Para os autores, esse

enquadramento jurídico no âmbito laboral refere-se às mudanças na legislação social em favor dos empregadores, cuja orientação geral reside no desmantelamento dos sistemas que protegiam os assalariados contra as variações cíclicas da atividade econômica e em sua substituição por novas formas de flexibilidade. A promoção da flexibilidade é, neste sentido, um mecanismo de fomento da concorrência.

As consequências advindas da alteração do padrão de acumulação do capital sobre o mundo do trabalho apontam, também, para um processo de heterogeneização, e segmentação da classe trabalhadora. Segundo Freyssinet (2009), o resultado das políticas de flexibilização da relação salarial significou um processo de fortalecimento da segmentação dos mercados de trabalho, tendo em vista que os empregadores objetivam criar uma gama diversificada de soluções que lhes permitam otimizar as formas de trabalho em função das necessidades da empresa. Boltanski e Chiapello (2009) pontuam que as inovações organizacionais resultaram na existência de um grupo permanente de trabalhadores nas empresas que coexiste com outros mais rotativos e precários.

A menor homogeneização do mercado de trabalho também pode ser visualizada no estancamento do processo de “medianização” da estrutura social como mostra Pochmann (2014). Para o autor, desde o último terço do século XX, o esvaziamento da produção industrial combinado com a expansão do setor de serviços na economia fez regredir a estrutura de classes culminando no esgotamento do processo de diminuição do grau de polaridade entre as classes operária e burguesa e alterando o padrão de mobilidade social nos países avançados. Assim, “o ambiente de anterior homogeneização do mercado de trabalho deu lugar a situações desiguais de trajetória ocupacional e social. A passagem para um assalariamento multipolar levou, por exemplo, ao estilhaçamento da tradicional classe média não proprietária”, gerando um movimento de ruptura do modelo voltado para a sociedade de classe média (POCHMANN, 2014, p. 31).

É deste cenário que derivam os desafios para a ação sindical, tendo em vista que o aumento do desemprego, os processos de fragmentação da tradicional classe média formada no capitalismo oligopólico, a segmentação do mercado de trabalho, o crescimento de relações trabalhistas atípicas, o aumento das ocupações precárias e pouco regulamentadas e o envolvimento e participação crescentes dos trabalhadores nos problemas empresariais à luz do novo espírito do capitalismo são movimentos que possuem um potencial de deterioração do grau

de legitimação da ação sindical e de sua capacidade de buscar a equidade. Nas palavras de Ramalho e Santana:

 

Tais mudanças tiveram repercussão tanto no processo organizativo dos trabalhadores como na relação capital/trabalho. Os organismos sindicais, incluindo aí seus aspectos de movimento e de instituição, passaram a ter muita dificuldade em dar conta do novo cenário, que lhes reduzia grandemente os espaços de manobra, colocando em risco as práticas de ação e as conquistas desenvolvidas ao longo do século XX. Os novos tempos pareciam trazer um tipo de sociabilidade que se contrapunha a quaisquer possibilidades de participação de corte coletivo e público (RAMALHO; SANTANA, 2003, p. 12).

As tendências gerais desse capitalismo financeirizado e neoliberal possuem, entretanto, desdobramentos e especificidades nacionais. O processo de diferenciação de áreas geográficas do capital, conforme Silver (2005), também determina a oscilação periódica do capitalismo histórico entre fases que tendem à ‘mercadorização’ e outras que tendem à ‘desmercadorização’49 do trabalho. Deste modo, a “disputa permanente não só pela definição do conteúdo do que sejam os ‘direitos’ da classe trabalhadora, mas também pelo tipo e pela quantidade de trabalhadores com acesso a esses direitos” é determinada por estratégias espaciais, isto é, por esforços para se demarcar fronteiras que delineiam quem gozará dos direitos e quem ficará de fora (SILVER, 2005, p. 36).

Isso indica que, em países como o Brasil, que em termos de emprego nunca fora uma sociedade industrial50, que nunca assistira a taxa de formalização do emprego ultrapassar 60% da População Economicamente Ativa (PEA) e cuja cidadania mostrou-se historicamente um sistema fluido (CARDOSO, 2016) – as consequências de ocupar um papel marginal no circuito produtivo do capitalismo contemporâneo ultrapassam as dificuldades de geração de emprego e estruturação do mercado de trabalho acirrando, pois, as disputas em torno da regulação do trabalho e dos direitos a ele atrelados.

Os entraves estruturais do desenvolvimento econômico na periferia, por seus determinantes internos e externos, impactam a quantidade, a qualidade e o padrão de regulação das ocupações geradas no Brasil. Do ponto de vista externo, a inclusão marginal do país nas cadeias globais de produção confirmou seu papel subordinado no processo de acumulação do       

49 Conceitos extraídos de Polany (2000).

50 Conforme Cardoso (2013b), o Brasil nunca fora uma sociedade industrial em termos de emprego, pois a taxa de participação do emprego industrial no emprego formal nunca fora dominante. Ela alcançou seu melhor momento em 1980, quando atingiu 44% do total do emprego formal e vem caindo desde então.

capital e plenamente inserido na valorização da riqueza financeira. Do ponto de vista interno, a “posição de resistir à inserção passiva na globalização (...) foi vencida pela posição que enaltecia os efeitos de uma abertura brusca e indiscriminada para acirrar a competição e promover a eficiência no uso dos recursos existentes” (BALTAR; KREIN, 2013, p. 274). A consequência desse padrão de inserção sobre o emprego foi o espraiamento de ocupações portadoras de baixos salários, alta rotatividade e baixa qualificação, sobretudo a partir dos anos 1990, em um mercado de trabalho já bastante desorganizado e flexível.

Isso demonstra que os anos 1990 não inauguraram a precarização e flexibilização das relações de trabalho no país, mas aprofundaram um processo de deterioração dos empregos (KREIN, 2013) que nunca foram majoritariamente considerados como bons e regulados (CARDOSO, 2013b; GUIMARÃES; PAUGAM, 2016). Isso não quer dizer que as condições de trabalho no Brasil não tenham melhorado ao longo do processo de desenvolvimento capitalista, mas sim que o processo de industrialização não foi garantidor de empregos formais com um padrão de proteção amplo num mercado de trabalho flexível e cujo trânsito entre posições formais e informais é intenso.

A união entre os problemas históricos do mercado de trabalho no Brasil com as características do capitalismo contemporâneo amplamente desfavoráveis ao trabalho e à ação coletiva coloca possibilidades mais restritas ao desenvolvimento capitalista na periferia e com ele a ampliação da regulação pública do trabalho e do sistema de proteção social. Com isso em tela lança-se a questão: estaria a dinâmica de crescimento econômico com geração de emprego e renda vivenciada pelo país nos anos 2000 na contramão das tendências mais gerais do capitalismo contemporâneo? É a partir deste ponto de vista que se busca compreender as contradições do modelo de crescimento econômico via indução do consumo de massas sobre os indicadores do emprego e as relações de trabalho e seu consequente impacto sobre a ação sindical durante os governos petistas.

2.2 Os impactos do modelo de crescimento econômico com inclusão pelo consumo sobre