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Estratégias e dimensões da ação coletiva para análise das centrais sindicais brasileiras

Capítulo 1: Uma proposição metodológica a partir do quadro de análise da revitalização

1.3 Estratégias e dimensões da ação coletiva para análise das centrais sindicais brasileiras

A trajetória do sindicalismo brasileiro ao final do século XX demonstra que as identidades dominantes que caracterizam as duas principais centrais sindicais do país são marcadas menos pela contraposição entre a ação política versus a atuação econômica do que pela forma como essas duas esferas interagem e se expressam vis-à-vis às transformações no contexto nacional. Além disso, a questão social compôs os repertórios de ação sindical haja vista as

      

41 A adoção de uma estratégia de “conciliação” e de “parceria” também tem sido o vetor principal de atuação do sindicalismo brasileiro durante os anos 2000, como mostram Araújo e Véras de Oliveira (2014), Lemos (2014), Cardoso (2015) e Galvão (2014a, 2016). Entretanto, a participação institucional dos anos 1990 e dos anos 2000 difere profundamente. A isso essa tese se dedicará nos próximos capítulos.

42 Cardoso (2003), lembrando a demissão de 2.800 trabalhadores da Ford em 1998, ilustra essa porosidade relatada por Béroud (2014). O autor mostra que a estratégia do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC fora contundente em reverter as demissões ao colocar os trabalhadores demitidos diariamente na porta da fábrica com disposição ao trabalho. Ao mesmo tempo, essas conquistas deram-se às custas de salários e benefícios subsidiários, com os trabalhadores assumindo parte do risco dos negócios ao comprometerem-se com a busca de soluções para o aumento de competitividade daquela planta de produção. “Parece-me que o preço mais alto a se pagar em casos como este é a indiferenciação de interesses de capital e trabalho e a consequente redução da legitimidade de projetos alternativos de gestão do trabalho e mesmo de relações industriais, que não os propostos (quando não impostos) pelas empresas” (CARDOSO, 2003, p. 56).

carências sociais que historicamente cercam a sociedade brasileira. Assim, o próprio curso da história sindical no Brasil mostra o sentido que os atores vão atribuindo à luta política.

A dimensão econômica da ação coletiva tomou forma, historicamente, na defesa do emprego e na luta salarial, aspectos que num regime autoritário ou fora dele, não podem ser descolados da dimensão política em um país cuja desigualdade social e cidadania limitada são elementos fundantes da nação. Nos anos 1990, a participação institucional das duas principais centrais sindicais brasileiras abriu um novo caminho para a relação entre o político e econômico: tratava-se de, defensivamente, buscar formas de preservar postos de trabalho e salários e, ao mesmo tempo, compor novas institucionalidades capazes de disputar as definições em torno do papel do Estado.

A transformação na orientação da ação sindical e na interface que se estabelece entre as dimensões da ação coletiva ao longo da trajetória do movimento sindical no Brasil indica, assim, que divorciar as demandas econômicas de seus atributos sociais e políticos parece ser um exercício que desconsidera as características estruturais do capitalismo tardio (MELLO, 2009) e a trajetória de luta e formação do sindicalismo brasileiro.

Além disso, a dimensão política da ação sindical não se restringe à atuação na esfera eleitoral-institucional. Ela também se dá nessa esfera, mas abrange outros aspectos como a disputa por um discurso de resistência, a articulação das bandeiras da classe trabalhadora com o acesso à cidadania e aos direitos sociais e a parceria com outros movimentos sociais. Afinal de contas, a luta da organização sindical também é “uma luta pelos corações e mentes das pessoas, em outras palavras, uma batalha de ideias” (HYMAN, 1999, p. 4, tradução nossa)43 e seu envolvimento com um novo discurso utilizando-se de debates ideológicos mais amplos sobre o capitalismo global contemporâneo também configura uma forma de revitalização sindical (FREGE; KELLY, 2004a).

Assim, separar as dimensões da ação coletiva oculta o processo histórico sobre o qual se fundou o sindicalismo no Brasil, um processo histórico em que a manifestação do político deu- se não somente de cima para baixo, tendo em vista a formação de uma estrutura sindical corporativista e a luta contra o Estado autoritário, mas debaixo para cima, por meio de um sindicalismo contestador das formas de produção das condições de vida do trabalhador brasileiro       

43 “The struggle for trade union organization is thus a struggle for the hearts and minds of people; in other words, a battle of ideas”.

que se expressou na luta pela cidadania. Dessa forma, mesmo que se considerasse a possibilidade de diferenciação do econômico ela não poderia ocorrer senão como uma diferenciação no interior da esfera política, como sugerem Wood (2000) e Hyman (1971, 1975), já que em todos os momentos da luta dos trabalhadores no capitalismo a esfera econômica descansa firmemente na esfera política entendida como o lócus do poder coercitivo que respalda o processo de exploração.

Outro aspecto diz respeito à atuação coletiva e seus desdobramentos em torno da contestação ou compactuação com a estrutura sindical corporativa que, no caso brasileiro, é fortemente influenciada pelo contexto. Neste sentido, a relação entre o poder de agência da classe trabalhadora e os condicionantes estruturais estão presentes a todo momento: a luta sindical dos anos 1980 respondeu à busca pela democracia, pela liberdade de atuação sindical e pela cidadania, bem como às consequências de um processo de industrialização tardio, à participação de um Estado autoritário em sua concepção e à experiência degradante do cotidiano da classe trabalhadora; já a luta sindical dos anos 1990 buscou a participação institucional salvaguardada pela conformação prático-discursiva do “sindicato-cidadão” como forma de responder ao desmanche neoliberal, mesmo que com contradições, e aos anseios (ainda não atendidos) dos trabalhadores.

Isso sugere que o caso brasileiro evidencia a importância dos movimentos políticos e sua combinação com a forma como as mudanças no processo global de acumulação do capital atinge a periferia capitalista (SILVER, 2005) quando se trata de entender a dinâmica e a evolução do movimento sindical (ANNER; VEIGA, 2013). Os ciclos grevistas desde a ditadura militar ilustram a complexidade na combinação das variáveis socioeconômicas e políticas que o explicam:

uma transição política para a democracia, sob forte demanda de inclusão social (e não só política), numa economia moderna, herdeira do modelo desenvolvimentista, então em crise, sob instabilidade econômica e aumento da exposição política e econômica internacional. Consideramos que, dessa perspectiva macro, que alia variáveis políticas e socioeconômicas das três últimas décadas, se explica o ciclo grevista de forma mais robusta do que a partir de variáveis econômicas ou concepções genéricas sobre a natureza dos conflitos de classes (NORONHA, 2009, p. 162).

Tal qual na explicação dos ciclos grevistas atribuir a explicação da atuação do movimento sindical às variáveis socioeconômicas, isolando, assim, a capacidade de resposta do

agente sindical não daria conta de explicar a dinâmica da ação coletiva no país. Da mesma forma, colocar a capacidade de escolha estratégica do agente sindical como premissa sob a qual se analisa a performance sindical subtrairia a importância da dinâmica política em combinação com as variáveis socioeconômicas em influenciar o movimento sindical no contexto brasileiro. Isso não quer dizer que não há margem de escolha dentro das instituições sindicais. Significa, apenas, que tais escolhas demonstram uma interação complexa e não linear com o contexto político, sendo esta interação que se pretende levar ao primeiro plano do debate.

O quadro de análise composto pelas estratégias sindicais e sua interação com as dimensões da ação coletiva proposto por Frege e Kelly (2003, 2004a) e por Behrens, Hamann e Hurd (2004) sugere o rastreamento das interconexões recíprocas entre o contexto e a forma como os agentes sindicais tomam suas escolhas estratégicas nesse cenário. Esse é, pois, o objetivo da análise da atuação das centrais sindicais entre os anos 2003-2014. Entretanto, a questão social, tão presente nos repertório sindical no Brasil, está ausente no quadro de análise da revitalização sindical, como destacam Krein e Dias (2017). Também para os autores a questão social é parte constitutiva dos repertórios de ação das centrais sindicais brasileiras, comportando o relacionamento que essas instituições estabelecem com a sociedade em geral seja do ponto de vista das disputas em torno do elemento ideológico, em torno do reconhecimento da sociedade, em torno dos direitos sociais ou mediante a construção de alianças com outros movimentos sociais.

Além disso, as dimensões econômica e política da ação sindical são realçadas como esferas separadas ao passo que a interconexão entre elas é um elemento fundamental que, em diálogo com os problemas sociais, atribui significado político à luta sindical numa sociedade tão desigual como o Brasil. Considerando os aspectos acima pontuados e a crescente atuação das centrais sindicais nos espaços institucionais formados pelo novo governo a partir de 2003 o quadro de análise da tese se inspira na abordagem da revitalização sindical, mas destaca que:

i) a separação analítica entre as dimensões econômica e política da ação coletiva é considerada nos termos da luta sindical pelas demandas econômicas, de um lado, e a luta sindical em torno da regulação pública do trabalho, de outro. A luta política das centrais sindicais não é reduzida à luta pelos direitos trabalhistas, mas é compreendida a partir da interação dessas dimensões da ação coletiva com os problemas sociais no país.

ii) a estratégia de parceria social proposta pelo quadro de análise será analisada em seu sentido mais amplo, isto é mediante a relação do ator sindical não somente com os empregadores, mas principalmente com o governo.

iii) a questão social será considerada, sobretudo em sua relação com a transformação no sentido da cidadania, uma vez que consiste no elemento que justifica a ação tanto em torno das demandas econômicas quanto de uma legislação mais protetiva ao trabalhador.

iv) a escolha estratégica dos atores sindicais será analisada em relação com os elementos do contexto entre os anos 2003 a 2014 que condicionam e/ou potencializam a atuação das centrais sindicais.

Com essas mediações em tela, o quadro de categorias para a análise da atuação das duas maiores centrais sindicais brasileiras durante os governos petistas encontra-se abaixo:

Quadro 4: Estratégias e dimensões para análise das centrais sindicais brasileiras.

Co ntexto Econ ôm ico , Soc ial e P olít ico Parceria Social Parceria com empregadores e com o governo

Pode ser entendida como uma forma de cooperação capital-trabalho entre as instituições sindicais e os patrões. Pode ser encontrada onde os sindicatos são fracos e incapazes de mobilizar os membros para uma ação coletiva ou, inversamente, onde os sindicatos são fortes e os empregadores têm um poderoso incentivo para cooperar.

Pode ser entendida também como a capacidade do ator sindical estabelecer negociações com empregadores e governo, a fim de influenciar na definição de políticas públicas macroeconômicas e

sociais e nas decisões de investimento das empresas. Dimensão econômica Dimensão Política Ação política na esfera eleitoral e legislativa

Refere-se à busca por uma legislação trabalhista mais favorável e por acesso aos direitos sociais. Essa forma de atuação é mais provável onde há um alto grau de regulação estatal da economia, de modo que os sindicatos tenham um claro incentivo para envolver o Estado no processo de negociação.

Construção de coalizões

Geralmente refere-se à união entre o movimento sindical e outros movimentos sociais, como o movimento antiglobalização ou ambiental, a fim de ajudar os sindicatos a adquirirem recursos poder, como o acesso a indivíduos e redes chave dentro de comunidades específicas que poderiam auxiliar na organização de campanhas. Essas conexões também podem servir para ampliar a gama de interesses e as agendas que os sindicatos procuram representar e, assim, ampliar seu poder de representação de segmentos mal representados da classe trabalhadora.

Reestruturação organizacional

Trata-se de fusões ou reorganizações internas que visem o fortalecimento da organização sindical e o aumento de seu poder político, eliminando a competição e a divisão de correntes e/ou sindicatos.

As dimensões econômica e política foram privilegiadas em virtude da atuação nacional dessas centrais sindicais e também por se tratar de instituições que gravitam “consistentemente no universo da política” (CARDOSO; COMIN, 1997, p. 190). Por se tratar de centrais sindicais que não visam à filiação direta de trabalhadores e sim de sindicatos, a estratégia de organização e recrutamento de novos membros também não foi contemplada. Já a estratégia de solidariedade internacional foi excluída por não figurar entre as que objetivavam potencializar a relação do movimento sindical com o governo. Por fim, a estratégia de parceria social não ficou restrita à parceria com os empregadores, já que uma das novidades dos governos petistas foi alargar os canais de diálogo com os diferentes atores sociais na arena estatal. Já os aspectos internos presente na estratégia de reestruturação organizacional são contemplados somente na medida em que auxiliam a entender os entraves que precisaram ser superados para potencializar a relação das centrais com os governos petistas44.

A análise dessas 4 estratégias no repertório prático-discursivo da CUT e da FS permite desvendar como essas instituições buscaram disputar as demandas econômicas e a luta pelos direitos trabalhistas, isto é, a agenda do trabalho, no período em análise.

Considerando que a trajetória histórica dessas instituições foi e continua sendo profundamente marcada pela interação entre as dimensões econômica e política da ação coletiva, a investigação privilegia a interconexão entre as opções estratégicas dessas centrais e o contexto nacional, sem desconsiderar o papel das bases nesse processo. As interfaces da participação institucional como canal privilegiado de disputa das demandas econômicas e em torno da legislação trabalhista com os problemas sociais do país revelam, assim, as possibilidades e os limites dessa estratégia sindical num momento em que as tendências desfavoráveis do capitalismo contemporâneo sobre o trabalho concorreram com as oportunidades abertas por um governo disposto ao diálogo e à negociação. É essa interação que revela o sentido da atuação dessas instituições durante os governos petistas, objetivo final da tese.

Para iniciar o trajeto, o capítulo que segue analisa o padrão de crescimento da economia brasileira entre os anos 2003 e 2014 e a evolução do mercado e das relações de

      

44 Conforme Galvão (2016), a relação entre o movimento sindical e a política contém diferentes aspectos: o aspecto interno dessa relação está voltado para a estrutura organizacional enquanto o aspecto externo diz respeito à relação do movimento sindical com outros movimentos sociais, com empregadores, agências governamentais e partidos políticos. É este segundo aspecto da relação que foi privilegiado nesta tese.

trabalho a fim de indicar os impactos dessa conjuntura sobre a ação coletiva. Afinal, foi nesta conjuntura que CUT e FS avaliaram suas opções estratégicas.