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2. NORMATIVA DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E AS QUESTÕES

2.2. AS TENSÕES DA MODERNIDADE E A LUTA POR DIREITOS HUMANOS

Emerge no pensamento moderno o fato de que grande parte da população mundial não é sujeito de direito, e, sim, objeto de discursos de direitos humanos. Os questionamentos levantados levam à reflexão, se esses direitos servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados, dos discriminados, ou tornam essa luta mais difícil. Outro questionamento refere- se aos direitos humanos, mesmo sendo parte da hegemonia que consolida e legitima grupos sociais oprimidos, não poderão ser usados para subvertê-la.

Desse modo, para Santos (2013), a busca por uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos começa pela hermenêutica da suspeita em relação à matriz ocidental desses direitos. É importante perceber que os direitos e o direito têm uma genealogia dupla na modernidade ocidental. A genealogia abissal, constituída a partir do pensamento abissal, “pensamento esse que dividiu abissalmente o mundo entre sociedades metropolitanas e coloniais. As realidades e práticas do lado de lá da linha, nas colônias, não podiam pôr em causa a universalidade das teorias e práticas que vigoravam na metrópole” (SANTOS, 2013, p. 44). Assim, o que estava do lado de lá, era invisível e os direitos humanos foram concebidos para vigorar nas metrópoles. Para o autor, essa linha abissal, que produz exclusões, continua a vigorar sob a forma de neocolonialismo, racismo, xenofobia.

Ao longo dos anos, o discurso de direitos humanos tanto legitimou práticas revolucionárias como práticas antirrevolucionárias, restam dúvidas, se os direitos humanos carregam uma energia revolucionária de emancipação ou contrarrevolucionária. De acordo com Santos (2013), a construção de uma concepção e prática contra-hegemônica de direitos humanos assenta em dois pilares. Um deles é o trabalho político das organizações sociais que lutam por uma sociedade mais digna e justa. O outro é o trabalho teórico que traz o questionamento sobre os direitos humanos e todos os que recorrem a eles para interpretar e transportar o mundo. Para realizar esse trabalho é importante perguntar de que lado estão os direitos humanos, se estão ao lado de oprimidos ou opressores?

Por versão hegemônica de direitos humanos entendem-se os direitos sendo universalmente válidos independentes do contexto social, político e cultural que operam em diferentes regimes de direitos humanos nos mais diversos lugares do mundo. O que se constitui violação dos direitos humanos é definido por declarações universais, organizações governamentais e não governamentais predominantemente baseadas no Norte global.

A construção de uma concepção contra-hegemônica e intercultural dos direitos humanos baseia-se na ideia de que a compreensão de mundo excede a compreensão ocidental de mundo. Desse modo, muitos movimentos de resistência contra a opressão e a exclusão emergem nas últimas décadas, com bases ideológicas sem referências culturais e políticas ocidentais. “Esses movimentos formulam suas demandas de acordo com princípios que contradizem os direitos humanos. Enraízam-se em identidades históricas e culturais multisseculares, incluindo muitas vezes a militância religiosa” (SANTOS, 2013, p. 56).

Desse modo, o autor destaca algumas tensões que atravessam as lutas políticas construídas por referência aos direitos humanos. Dentre várias tensões duas merecem destaque por fazerem referência ao objeto de estudo da pesquisa em tela.

A tensão entre o reconhecimento da igualdade e o reconhecimento da diferença. A luta pela igualdade, enquanto redução das desigualdades socioeconômicas, veio com os direitos sociais e econômicos. A princípio, a igualdade se funda na pretensão de universalismo que subjaz aos direitos humanos eurocêntricos, este paradigma é questionado por grupos sociais discriminados que lutam para pôr em causa os critérios dominantes de igualdade e diferença e diferentes tipos de inclusão e exclusão que legitimam. A luta contra a exclusão e a discriminação deixou de ser uma luta pela integração e assimilação da cultura dominante, passa a ser uma luta pelo reconhecimento das diferenças, o respeito às diferenças. Assim, o reconhecimento das diferenças resulta em intervenções do estado, com ações afirmativas como a política de cotas para mulheres, afro-descendentes, indígenas, revisão dos conteúdos educativos, reconhecimento e proteção às línguas não coloniais, direitos à terra e ao território.

Nesse contexto, destacam-se as políticas públicas para uma educação antirracista no Estado brasileiro, com a aprovação das Leis nº 10.639/03 e 11.645/08. Elas demonstram um avanço no projeto de uma sociedade mais justa e mais diversa, que considera a justiça histórica e cultural como parte integrante da justiça social.

Outra tensão a que se referem Santos (2013) é a tensão entre o direito ao desenvolvimento e outros direitos humanos individuais e coletivos. O direito ao desenvolvimento perpetrado pelo neoliberalismo se torna um dever ao desenvolvimento. Pautadas pelas normas do Consenso de Washington, cuja obediência era garantida pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial e pela Organização Mundial do Comércio, o desenvolvimento capitalista passa a ser uma condição imposta. Esse padrão de desenvolvimento apresenta como característica a alteração da economia do mundo com o surgimento de países emergentes como o Brasil, Rússia, China e África do Sul, os chamados BRICS, que possuem 42% da população mundial, 20% do produto interno bruto e 15% do

comércio internacional. Mesmo assim, a governação mundial do sistema financeiro continua controlada pelos bancos norte-americanos e europeus.

O desenvolvimento capitalista toca os limites de carga do planeta. Secas, inundações, crise alimentar, especulação com produtos agrícolas, escassez de água potável, desmatamento das florestas. A articulação entre diversos fatores de crise leva à articulação entre os movimentos sociais que lutam contra eles. É um movimento lento, mas já pode ver articulações entre direitos humanos, soberania alimentar, contra os agrotóxicos, pela reforma agrária, direitos ambientais, direitos indígenas e quilombolas dentre outros16.

A tensão entre a autodeterminação indígena e o desenvolvimento neoliberal aparece na violência contra os povos indígenas. O modelo de desenvolvimento capitalista é voraz no que respeita à terra e ao território, desse modo transforma os povos indígenas em obstáculos ao desenvolvimento. Os povos indígenas são expulsos das terras, ao defender seus territórios de madeireiras, mineradoras são incriminados. A luta dos povos indígenas e quilombolas em defesa dos seus direitos dependem deles e de nós.

A tensão com os direitos dos povos de se libertarem do colonialismo e do neocolonialismo demonstra como países que foram vítimas do colonialismo europeu, aprenderam melhor com os colonizadores do que com os antepassados que lutaram contra o colonialismo em nome da justiça social. Esses países vivem um neocolonialismo, pois como são emergentes muitas empresas brasileiras se instalam em países africanos e em nome do desenvolvimento tratam camponeses como obstáculos ao desenvolvimento, assim como os portugueses fizeram com os indígenas ao chegarem ao Brasil.

Nesse contexto, a luta pelos direitos humanos, na atualidade, enfrenta formas de autoritarismo que convivem confortavelmente com os regimes democráticos. Para Santos (2013), o sistema capitalista, com sua desenfreada voracidade de recursos naturais, faz „tábua rasa‟ aos direitos de cidadania e humanos, como também reprime e pune os que resistem ao

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Em recente estudo publicado pela Revista Prima Facie, o professor José Gilberto de Souza (2013, p. 5-6, grifo do autor) analisa “as estratégias de apropriação de terras e a gênese central do conflito, na lógica da economia do agronegócio, como síntese de uma “nova hegemonia política” que atua sobre a sociedade e o Estado brasileiro. Uma hegemonia que se realiza, em múltiplas faces, a partir dos mecanismos de expansão mundial de

commodities, caracterizando uma trajetória de reprimarização da economia e comoditização da agricultura;

acumulação e concentração fundiária na lógica da apropriação da renda fundiária; do recrudescimento das forças conservadoras, via criminalização dos movimentos sociais e as alterações no ordenamento jurídico; da expansão do crédito público e a apropriação do antivalor e, não menos importante, do amalgama ideológico do agronegócio pela lógica do valor e da desconstituição dos diversos modos de reprodução social, sobretudo o indígena”

sistema, coloca a todos diante de uma nova forma de fascismo social, o fascismo desenvolvimentista.

Desse modo, o autor luta contra o fascismo e essa luta apresenta três características. A primeira é uma luta com forte dimensão civilizatória e implica novas gerações de direitos humanos: “o direito a terra como condição de vida digna, o direito à água, os direitos da natureza, o direito à soberania alimentar, o direito à diversidade cultural, o direito à saúde coletiva” (SANTOS, 2013, p. 123). Apesar da ideia de civilização prever algo que está em curso e não terminará em curto prazo, essas lutas demandam urgência, há que se proteger agora o meio ambiente, punir severamente quem descumpre leis ambientais e não respeita o direito à terra de indígenas e quilombolas.

A segunda característica das lutas pelos direitos humanos contra-hegemônicos reside em que ela convoca diferentes conceitos de representatividade política. Nos países democráticos, domina a representatividade das maiorias. As minorias, assim denominadas, os são porque vitimados pela colonização de exploração e pela escravização deixaram de ser maiorias e se tornaram minorias. Em sociedades que estiveram sujeitas ao colonialismo europeu, há que se equilibrar representatividade pela quantidade com representatividade pela qualidade, aqueles que são tanto mais necessários para lutar por justiça histórica. As lutas das minorias abrangem as maiorias, pois a preocupação com o futuro do planeta é em benefício de todos.

A terceira característica da luta dos direitos humanos contra-hegemônicos é contra a inércia do pensamento crítico e da política de esquerda eurocêntrica. Consiste em articular as diferentes lutas até então separadas. É necessário ver na luta ambiental, a luta dos povos indígenas e quilombolas; na luta pela igualdade, a luta pelo reconhecimento da diferença. A articulação fortalece a luta para termos uma sociedade mais digna e justa.

Nessa configuração atual, a luta pelos direitos em uma perspectiva contra-hegemônica precisa estar em consonância com as conquistas já obtidas, de modo que os documentos ratificados até então demonstram avanços no que se refere à defesa dos direitos, porém deixam lacunas no que se refere ao contexto da sociedade capitalista atual. As reflexões em relação aos mesmos precisam ser no sentido de perceber essas lacunas e por meio da organização dos movimentos de resistência lutar pela efetivação dos direitos contra- hegemônicos.