• Nenhum resultado encontrado

2.4 O domínio da História

2.4.2 As velhas e novas questões do domínio

Pela impossibilidade de se alcançar de fato sua totalidade, a História sempre procurou se debruçar sobre histórias específicas inseridas dentro de unidades de sentido que conferem coerência a um corpo de documentos e a uma narrativa. Desde o século XIX, algumas unidades maiores têm predominado nos currículos escolares e literatura da área como os grandes contextos da História: uma civilização, uma sociedade, um estado, uma era (GUARINELLO, 2004). Ainda que a disciplina tenha passado por diversas mudanças metodológicas nos últimos dois séculos, os historiadores ainda circunscrevem suas Histórias dentro dessas unidades: fazem uma História da Roma Antiga, História da França Medieval, História do Brasil Contemporâneo ou História da Cultura Ocidental, por exemplo. São estas as grandes unidades de sentido, os objetos por excelência da História, dentro dos quais se recortam temas específicos: a economia, a política, a sociedade e assim por diante.

É verdade que algumas dessas grandes entidades assumem por vezes um caráter quase permanente, como categorias imutáveis, antropológicas. E ainda que o seu processo de fabricação esteja imbuído do cabedal pré-teórico e contemporâneo que conforma nosso modo

de ver e conceber o passado - num volver anacrônico -, não é possível pensar a História sem elas, sob pena de termos apenas uma sucessão de fatos soltos e desconexos.

A importância por fatos e datas, sem grandes análises de estrutura e conjuntura, prevaleceu na historiografia moderna até o início do século XX e orientou o ensino da disciplina no Brasil em todos os níveis até pelo menos a década de 1970 (CARDOSO, 1997). Era uma visão positivista que pretendia o resgate do passado ‘tal como aconteceu’, ou seja, se apoiando em fatos, grandes nomes e heróis, e privilegiando as fontes documentais primárias. Não à toa, esta tendência se fez acompanhar por um grande esforço de coleta e organização dos acervos de arquivos públicos, conjugando o interesse pelos feitos dos grandes homens e a história de caráter ‘oficial’, ou seja, vista de cima, pelas elites dirigentes (BURKE, 1992).

Contrário a esta abordagem, Marc Bloch (1886-1944) escreve que a história não é a simples acumulação dos acontecimentos, e nem estes o ‘centro’ do mundo. Antes, é preciso entender os fatos ao longo do tempo, estabelecendo suas relações de causa e efeito (SCHWARCS, 2001). O autor vê a História como uma ‘ciência dos homens, no tempo’: o tempo, na mesma medida em que é, por natureza, um ‘continuum’, traz também uma perpétua mudança.

Assim, a partir de meados do século XX percebe-se uma tendência, que logo predominaria, a despersonalizar a ação transformadora e a cadenciar mais lentamente os ritmos de mudança, como forma de superar as limitações dessa velha história política e positivista, para abrir-se às contribuições de outras áreas como a Sociologia, Antropologia e Economia, e para a influência do marxismo58 (GUARINELLO, 2004). Povos, nações, estados e heróis cedem o lugar no palco para outros agentes, mais impessoais. Passam a predominar as grandes estruturas sociais e econômicas, que parecem mais reais e determinantes do que os acidentes de conjuntura, e a História começa a ser abordada pelos seus longos períodos em detrimento dos episódios, e fenômenos inscritos na longa duração tornam-se mais significativos do que os movimentos de fraca amplitude. Os instrumentos de análise passam a consistir de fontes seriais, estudos quantitativos e identificação de constantes sociológicas (FERREIRA, 2003). Aqui um parêntese sobre a sutil distinção que se faz entre História e histórias, ou seja, existe uma História, com H maiúsculo e existem apenas histórias, diversas,

58

A concepção marxista vai preconizar o estudo da sucessão descontínua da história, especialmente no que se refere aos diferentes modos de produção para analisar como as riquezas são produzidas e distribuídas no interior de uma formação social, na qual a ação coletiva dos homens (luta de classes) constitui o motor da história (CARDOSO, 1997)

casuais e distintas entre si. Quando o historiador francês Fernand Braudel (1902-1985) escreve sobre o mundo mediterrâneo na época de Filipe II, ele claramente faz uma apologia da longa duração em detrimento da curta duração, dos eventos. Para o autor, ao que parece, os eventos seriam como os vaga-lumes a brilhar durante a noite, ao passo que esta, longa, densa e contínua, equivaleria à História (SILVA, 2009).

Mas um novo dilema da historiografia contemporânea vem ligar-se, de modo evidente, à crise dessas grandes estruturas. Da política à sociedade e desta à economia, o espaço da ação humana tornou-se cada vez mais restrito, menos eficaz. A capacidade de projetar um futuro e de conceber o passado como sua origem e sua causa, como a explicação prévia de um projeto a se concretizar, esvaeceu-se nas últimas décadas. Essa crise das grandes narrativas foi impulsionada pela ‘nova história’ francesa - originária da chamada École des Annales -, que implicava a defesa de uma concepção da história baseada em ‘novos objetos’, como os marginalizados, as mentalidades coletivas, as estruturas sócio-econômicas (BURKE, 1992; GUARINELLO, 2004). Em consequência, os objetos da História se multiplicaram, não apenas pela introdução de novos atores sociais (trabalhadores, imigrantes, mulheres, homossexuais), cujas histórias se tornaram relevantes, mas pelo recurso cada vez mais intenso ao estudo de caso, ao detalhe, à micro-história que se afasta dos grandes contextos.

Da ação individual e pontual de grandes homens às incursões acionais coletivas, da ação impessoal e cíclica das estruturas econômicas, ao recorte microscópico dos novos objetos de análise, não é possível negar hoje a coexistência de diferentes concepções e modos de fazer História. Segundo Foucault (1972) as velhas questões de análise tradicional – que ligação estabelecer entre acontecimentos díspares? Que continuidade os atravessa ou que noção de conjunto eles formam? Pode-se definir uma totalidade ou é preciso limitar-se a reconstituir encadeamentos? – são substituídas, ou melhor, acrescidas, por interrogações de outro tipo, como: que estratos são passíveis de serem isolados uns dos outros? Que tipos de séries instaurar? Que critérios de periodização adotar para cada uma delas? Que sistema de relações (hierarquia, dominância, escalonamento, determinação, causalidade) pode ser descrito entre uma e outra? Em que quadro de cronologia ampla pode ser determinado sequências distintas de acontecimentos?

Independente dos pressupostos – positivistas, marxistas ou de uma Nouvelle Histoire – existentes por trás destas e outras questões, o importante é que ao submeter a História a um tratamento filosófico, buscam-se os seus fundamentos últimos e o fio condutor que dará

inteligibilidade às miríades de acontecimentos aparentemente desconexos. Ou seja, identifica- se por trás das várias histórias particulares o elemento unificador, a regularidade; elabora-se uma explicação para a história e explicita-se o seu sentido. Os conceitos mais representativos do domínio se moldam, então, às respostas para as velhas e novas questões filosóficas.